A LENDA DE KÓRA & ALSVID - parte 3: O soldado
Inesperadamente as ruas de Elgartem foram invadidas por cavalos montados por ofidianos. Ao ver tal fato ocorrendo, Kóra dirigiu-se imediatamente a Ottavius:
— Papai, o quê está acontecendo? Ofidis está nos invadindo!
— Ah, sim! — sorriu Ottávius. — Digamos que vieram prestar um serviço a Elgartem.
— Quê serviço?
— Eu fiz um acordo com Ofidis, para que suas forças viessem a nossa nação treinar nas montanhas e também ensinar técnicas de batalha ao nosso exército...
Kóra foi à praça onde haviam vários soldados de ambas as nações, e uma grande parte da população que morava nas proximidades do local rodeava o grupo de militares. No dia da festa em que ela conheceu Victor, os soldados ofidianos que levaram os alimentos eram apenas guardas comuns. Desta vez estavam presentes os soldados das tropas de campo, vestidos com suas armaduras negras com detalhes em bronze. Eram sem dúvida alguma imponentes, e atraíam a curiosidade de todos.
— Kóra! — alguém chamou em meio a multidão.
Ao virar-se, ela avistou a sua melhor amiga, Marjorie.
— Marjorie! Curiosa também? — disse Kóra, feliz em ver a amiga.
— Sim! Encontrei Alsvid!
— Ele está aqui?— indagou ela, arqueando uma das sombrancelhas.
— Sim, está. Eu passava por aqui, quando a sacerdotiza me chamou para revê-lo — disse Marjorie. — Ele está ajudando na construção dos acampamentos lá no vale, ao lado do rio Tríade. Fiquei de encontrá-lo
Alsvid era filho de Valquíria, uma antiga sacerdotiza do reino. Kóra e Marjorie conheciam ele desde criança, quando costumavam brincar juntos, mas há muito tempo não o viam. Quando Alsvid completou dez anos, o pai dele decidiu levá-lo para servir às forças de Ofidis, pois achava que lá o filho teria mais chances de ser bem sucedido; o sr. Sallas não achava que o filho teria um futuro próspero trabalhando de ferreiro, como ele próprio fizera a vida inteira.
Desde então Alsvid jamais retornara a Elgartem, mas a família o visitava em Ofidis a cada mudança de estação. Kóra gostaria de ver como ficara o pequeno Alsvid, agora já não mais pequeno, e teve a oportunidade algumas horas mais tarde...
Era próximo do meio-dia quando junto de Marjorie e mais um grupo de jovens que moravam na região, Kóra foi ao vale onde o acampamento já estava montado. De longe o acampamento parecia um mar vermelho que havia surgido do nada em pleno vale.
— Vamos, apressem-se! — gritou Marjorie — Alsvid já deve estar nos esperando na entrada do acampamento.
Não demorou para que eles chegassem à entrada do acampamento, marcada por dois pares de lanças cravados nos chão, formando um portal. Um soldado com o rosto encoberto pelo seu elmo os esperava, e acenou ao vê-los.
— Alsvid! — exclamou Marjorie. — Trouxe comigo alguns amigos, e também a princesa!
— Eu percebi... — disse Alsvid com certo nervosismo. — Olá para todos, olá princesa...
— Tire esse elmo Alsvid! — disse Kóra chegando bem perto. — Faz tanto tempo que não nos vemos!
— Bem, é que... — tentou se explicar.
— Deixa que eu tiro Kóra! — disse Marjorie, agarrando rapidamente o elmo do soldado e o retirando.
Alsvid havia se tornado um homem, mas ainda carregava feições de garoto. Seus olhos azuis e seus cabelos castanhos eram inconfundíveis. Ao ter o seu elmo retirado, ficou vermelho de vergonha e abaixou a cabeça. Kóra sabia exatamente o porquê.
— Você! — disse Kóra num tom de espanto.
— É... — ele hesitou, mas confessou. — Sim, eu. Me perdoe princesa.
Os outros ao redor não tinham a mínima noção do que estava acontecendo.
— Ei, do que estão falando? — indagou Marjorie confusa.
— Hum... Será que poderiam nos deixar a sós por um instante. — pediu Kóra.
— Hum...está bem, vamos gente. — concordou a amiga.— Estaremos te esperando logo ali, na margem do rio. Vê se vocês não demoram.
Assim que o grupo se afastou, Kóra olhou séria para Alsvid:
— Então você era o soldado que estava na torre aquela vez.
— Me desculpe princesa, sei que errei... — disse sem jeito.
Kóra abriu um sorrisão e abraçou o velho amigo.
— Não se desculpe! Eu é que deveria me desculpar pela reação exagerada do meu noivo. Mas me conte Alsvid, o quê é que você estava fazendo lá na torre do sol naquela noite? Você não é soldado de campo?
— Sim, sou soldado de campo — confirmou Alsvid. — Mas eu pedi para acompanhar a guarda até aqui, pois eu estava com muita saudade de casa. Pelas regras Ofidianas, não se pode abandonar a nação em nenhum momento, apenas em missão oficial.
— Hum... mas o que fazia na torre do sol? Por quê não disse quem era? — perguntou Kóra, demonstrando muita curiosidade.
— Sabe... — Alsvid parou por um momento, como se pensasse a melhor maneira de contar sua história. — Senti saudade dos velhos tempos, da época em que ficavamos na torre contando estrelas, observando as constelações. Não me identifiquei porque realmente tive vergonha na hora.
— Vergonha? Do conde?
— Também, também. A notícia de que seu pai havia encontrado um noivo para você correu o mundo. Naquele momento em que percebi que alguém vinha me escondi, e quando vi vocês, percebi que você já não pertence ao mesmo mundo que eu...
Kóra olhou com certa indignação para Alsvid.
— Como pode pensar assim? Não é por que vou me casar que vou deixar de ser quem sempre fui!
— Mas...
— Sem mas! — disse Kóra. — Éramos amigos e continuamos sendo! Prometa que deixará de bobagens. Sabe que eu sempre tratei todos como iguais, e sabe que a igualdade é o pilar mestre de nosso reino.
— Se você quer assim... então está bem! — disse Alsvid sorrindo.
Eles então foram ao encontro do grupo que os esperava próximo a margem do rio.
— O quê estavam conversando? — indagou Marjorie curiosa.
— Segredo — disse Kóra. — E não adianta insitir que eu não conto!
Eles conversaram por um longo tempo, cada um contando as novidades que ocorreram em mais de uma década. Quem mais falou óbviamente foi Alsvid, que tinha muito a contar à respeito de sua vida em Ofidis.
— Nosso exército costuma viajar constantemente a regiões distantes; treinamos nos mais perigosos penhascos, e nas mais ermas terras deste mundo.
— Já conheceu a região de Skog? — perguntou Kóra. — Dizem que as feiticeiras que moram lá são terríveis!
— Sim, já visitei. Mas não as considero tão perigosas quanto dizem! — falou Alsvid. — Os vampiros que vivem em Asgarnofe são piores, e com certeza muito mais traiçoeiros.
— Meu pai já falou sobre eles! — exclamou Marjorie empolgada.
Alsvid então diminuiu um pouco o tom da voz:
— Nada porém, se compara aos Róz, os lobos gigantes...
Kóra olhou para Alsvid com temor. Os outros também estavam surpresos.
— Você já viu algum? — perguntou a princesa.
— Vi de longe, de muito longe — respondeu. — Considero que sejam as criaturas mais perigosas que existem; são ferozes, ágeis e muito espertos. Não lembro de registros de alguém que tenha os encarado, e saído vivo.
Os dias se passaram, e sempre que podia, Alsvid encontrava seus velhos amigos e continuava seus relatos. Porém, a pessoa que ele mais gostava de encontrar era Kóra; juntos riam, lembravam dos velhos tempos e chegavam a brincar como duas crianças. Ambos tinham a mesma idade, eram jovens e seus pensamentos e idéias se assemelhavam muito.
Ao longo de dois meses Kóra e Alsvid se encontravam quase todos os dias, até que Victor retornou a Elgartem.