A VIDA, O PERDÃO E O AMOR
A VIDA, O PERDÃO E O AMOR
Osni Silva
Em uma época qualquer,
Em uma trincheira qualquer,
Em um lugar qualquer,
não importa!...
Aconteceu!
A Morte
O que é a morte para mim? Eu nunca pensara na morte, de maneira tão séria como agora. Aliás, para ser sincero, eu sabia que um dia morreria, tal pensamento surgia, raramente e tão rápido que não me preocupava com tal fato.
É diferente hoje.
Como aqui, neste buraco. Trincheira enlameada com cheiro de morte. Meus pensamentos e dores são tão diferentes das minhas emoções infantis e juvenis. Morte tem cheiro? Sei lá! Surgiu de repente este pensamento a respeito do “cheiro da morte”. Deve ser algum cadáver por perto, já em decomposição, exalando este cheiro esquisito. Mal cheiro mesmo! Preciso ser forte. Sentir a dor física e espiritual, sem lamentações. É necessário para que eu sobreviva o quanto possa agüentar. Sei que minha morte é parte da ordem do Universo. Assim como de todos os seres viventes. É parte da vida do mundo. Condição de nossa criação. A maior certeza que temos durante o “viver” é de algum dia morrer. Quando, não sabemos. Se aceitarmos, com tranqüilidade, essa certeza, a única que a vida nos oferece, teremos a chave para a libertação da vida. Em vista desta total incerteza, quanto ao momento da morte, devemos estar sempre preparados para a sua chegada! Mas, hoje, estou preparado para recebê-la? Não, não estou e por isso estou pedindo: - Pai, ensina-me a morrer!...
O Caminho
Não!... Não é pesadelo.
Não é realidade...
Mas a impressão perdura:
Tenho quase certeza de que já estive aqui. Já vivi esta situação. Eu sei que é possível a pessoa ter nítida impressão de estar revivendo algum fato. Os franceses usavam para denominar este tipo de ocorrência, a expressão “déjà vu” que traduzido significa o nosso “já visto”. De repente, num piscar de olhos, o “já visto” aconteceu comigo aqui.
Nossa, não é real. Parece ser. Para mim é tão nítida a cena do “já visto”!...
Sinto-me tão perdido. Tão perdido...
O que devo fazer?
Quem vai ajudar-me? Estou tão só! O frio penetra na pele. O medo arrepia todo o meu corpo. Tudo é tão esquisito. Tão amargo!
Meu Deus, com fui parar aqui nesta luta? Sem ao menos saber o que defendo?
Não quero morrer, não quero mesmo!
Não quero matar, não mesmo. Nem sei como matar! É só mirar e atirar? Se fosse atirar em nada eu até atiraria. Atirar em alguém que se chama inimigo, não consigo.
Por que existe a ira, a disputa, a guerra, a luta? Meu Deus, eu imploro, eu exijo uma resposta. Por que... por que, alguém responda!
O tempo parece ter parado. Existe o tempo, assim como o homem convencionou, noite, tarde, dia, um mês, anos, séculos? Para mim, na imensidão do universo, no seu infinito, não existe o que denominamos como “tempo”!
Meu maior problema é que estou aqui, nesta situação. Morrer ou matar! A cada momento surge tal inquirição. É uma barreira a ultrapassar, sei. Estou bem diante dela...
Vou dedicar momentos, enquanto não surge solução, para meditar a respeito de muita coisa. Preciso de uma mudança, uma mudança íntima, mudança que aconteça dentro de mim. Vou continuar conversando comigo mesmo sobre tudo. Buscando respostas. Não devo ficar distraído. O inimigo está lá na frente. Não muito longe. Devo continuar esforçando-me para conservar a vida. Tenho a convicção de que o caminho mais curto, para a solução de meu problema, é o meu crescimento interior. Sim, crescimento espiritual...
Aqui, na trincheira, sozinho, talvez em tão pouco tempo, antes de morrer ou matar, conseguirei crescer. Não posso esmorecer.
Terei forças bastante para resistir ao frio e a dor?
A Indecisão
Mestre,
meu mestre,
tuas palavras surgem aos borbilhões em minha mente. Relembro teus ensinamentos. Porém a indecisão permanece ainda:
- matar ou morrer?
Tu mestre, através de teus ensinamentos, também não tem a resposta certa.
E sabe o por quê?
Porque acreditamos, tanto você quanto eu, em um Ser Superior, e se tudo na natureza é vida, como matar? Como morrer? Sim, como posso ter o desejo de morrer? Ele foi o responsável pela minha vida. Devo conservá-la até o momento em que Ele permitir. Então, devo ficar aguardando?...
Esperando inerte, é o mesmo que entregar-me nas “mãos da morte”. Silenciosamente, aguardando sua vinda. Isso é contra a vontade desse Ser Supremo: parar e nada fazer. Mas fazer? Fazer o quê? Matar?...
Tenho que ser auto-criativo, Mestre? Tudo depende de mim.
Tu, mestre, ensinaste-me que posso ser um Buda, um Bahaudin, ou posso me tornar um Adolf Hitler, um Benito Mussolini. Posso me tornar um assassino ou um mediador. Bem, mestre, prefiro ser mediador. Mas é o que estou fazendo Mestre, meditando... meditando! Para o meu problema não encontro resposta. Veja as duas soluções, até então encontradas por mim: matar ou morrer! Não sei matar e nem morrer! Se eu matar, vou ferir o mais sagrado dos princípios. Como não sei morrer, deverei deixar-me ser morto? Não é como se fosse suicídio? Quando chegar a hora e eu partir, não levarei comigo bens materiais. Levarei meus comportamentos, atos, pensamentos, e, principalmente, a maneira pela qual tratei meu semelhante, assim como o Mestre ensinou: “amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a si mesmo”.
Desejo, de todo o coração, encontrar uma solução. Assim como encontrou aquela pessoa, num dia qualquer de sua vida:
“- Acabei de descobrir uma árvore maravilhosa, bem em frente a minha casa!
O tronco é vigoroso, a copa é frondosa e as folhas têm os mais lindos tons de verde!
- Mas como é isso? A árvore apareceu de repente?
- Não, respondeu ela. Ela esteve sempre lá, mas eu nunca a reparei”.
A Entrega
Sim, ela nunca tinha reparado naquela árvore. Dedicava o seu tempo com outras coisas. Outras obrigações, e, também, por que não, a tantas futilidades que surgem na vida e que abraçamos com tanto vigor, sem meditarmos em outros fatos mais sublimes, assim como aquela árvores, seu tronco, sua copa, suas folhas.
Aquela árvore um dia foi semente, germinou, despontou, cresceu e exibiu toda sua beleza e utilidade, como a sombra de toda ela agasalhando alguém do sol num dia quente.
Dia quente? E eu, aqui, com dores e sentindo frio...
Sentindo minhas forças exaurindo-se. Meus pensamentos, embora borbulhantes, não me levando a nenhuma solução diante do perigo, do inimigo lá na frente!
Mestre, não sinto ira. Não sinto preguiça. Não sinto apego a nada a são ser a minha própria vida, já que não sei morrer.
Como aquela mulher, da metáfora da árvore, estou procurando, nesse meu infortúnio, aprender. Aprender? Só se for relembrando o passado. Mas não desejo estar vivendo o passado, mas tão somente relembrar de tantos fatos e quando minha consciência doer, redimir-me pedindo ao Mestre o seu perdão, pedindo, embora por pensamentos, a todos os que magoei o perdão que liberta.
Sim, Mestre, a felicidade verdadeira é germinada em nosso interior e cultivada, até florescer resplandecente, através de nossas boas ações. Encontrarei, nessa situação, em meu interior, essa felicidade? Sei que sinto frio e dores, mas a dor maior é essa que surge em meu interior, é o egocentrismo, o egoísmo. Mas egoísmo de que? De querer ficar nessa situação, ou, por milagre, surgir uma solução que apazigue meu coração? Mas em ambos os casos será o egoísmo surgindo firme? Egoísmo em querer continuar aqui ou encontrar solução mais salutar?
Sim pode ser isso: - a entrega nas mãos do Mestre dos Mestres. “Senhor”, em tuas mãos entrego minha vida, meu destino. Em tuas mãos entrego meu corpo, minha vida, meu espírito. Fazei o que lhe aprouver de meu destino. Aqui estou, entrego-me a Ti! Não conheço teu plano para mim, mas Tu conhece o caminho que percorri.
O Frio e a Dor
Nem ao menos tenho, neste momento, uma intuição de como agir. Não quero matar. Não sei morrer. Não quero mais sentir essa dor interior, adubada pelo egoísmo desde o meu nascimento. Minha entrega, Senhor, é total!
Não quero viver no passado. Não quero mais pensar no amanhã! Mas sim viver o “agora”, o “presente”. E não encontro um modo de conseguir este anseio. Viver o “agora”. Como? Para viver o “agora” tenho que reviver o passado e pensar numa solução para os minutos, as horas que virão!
Mestre?
Nunca morremos? Somos imortais?
Sim, acredito que nosso espírito é imortal. O invólucro carnal, nesta vida “retorna ao pé”. Mas o que de bom meu espírito vai levar para outras vidas, outros mundos? Qual foi, então, o objetivo do meu viver? E por que encontro-me nesta situação? Nesta trincheira, diante desse horrível dilema: MATAR OU MORRER?
Sim, Mestre, a voz do meu coração, meu espírito, meu amor, pode preencher essa angústia que me invade por completo. Não ouço mais barulho, nem o sibilar das balas e nem o trovoar das armas mais pesadas. Lá está o inimigo, pressinto, tenho certeza.
O que estará pensando e fazendo o inimigo agora? Quantos serão? Dezenas, centenas, milhares. Milhares? Não, não podem ser milhares. Muitos, como os de cá, em nossa trincheira, foram mortos. Houve muito confronto, muitas mortes, lá e cá.
Tenho plena convicção: - até o momento não matei ninguém, embora tenha disparado a arma incontáveis vezes... mas sempre acima do inimigo. Não sei, não quero matar! Nunca matei antes. Não vou matar!
Sinto limitação física. A dor aumenta. O frio fere.
Lá está o inimigo.
Aqui estou eu.
Mas, somos iguais? Temos o mesmo desejo? Pensamos do mesmo modo?
Não, não pode ser. Cada qual estará sentindo toda essa situação de modo diferente. Cada um de nós, envolvidos em combates, sem ao menos sabermos por que, temos um grau de evolução. Sim, só pode ser assim. Uns matam, outros não. Muitos morreram lá e muitos morreram aqui. O cheiro de carne podre, o frio, a dor física e a dor que surge de meu interior, dá uma sensação pior do que a morte. Parece que já estou querendo morrer...
A Escolha
Amado Mestre,
mas afinal, a vida é uma miséria?
E o mestre, em sua resposta, assim começou:
“- Isso depende de você. A vida em si é uma tela vazia: torna-se qualquer coisa que você venha a pintar. Você pode pintar a miséria, você pode pintar o êxtase.
E com toda sua sabedoria concluiu:
“- Esta liberdade é a sua glória.”
Nesta trincheira lamacenta, cheia de cadáveres, exalando o “perfume” próprio das carcaças humanas, tenho esta liberdade que é, conforme ensinou o mestre, a minha “glória”.
E a minha liberdade, no caso, é conforme já disse:
- Matar ou morrer!
Qual é a glória em matar?
Qual é a glória em morrer?
E o mestre continuou:
“- Você pode usar essa liberdade de maneira tal que toda a sua vida se torne um inferno, ou de maneira que sua vida se torne bela, abençoada, cheia de êxtase, uma coisa divina. Depende de você, o homem tem toda a liberdade”.
Sim, eu sei. Depende de mim o final desta tragédia. Por enquanto paralisado, com frio e dores, fico aguardando... aguardando...
Aguardando o que?
O mestre já afirmou, depende de mim a escolha, e, no caso, são três as escolhas:
- Ficar como estou. Parado. Paralisado mesmo. Aguardando...
Aguardando não sei o quê! Como o mestre, também tenho a convicção, tudo dependerá de mim. As outras duas opções serão:
- Matar! Não sei como matar...
- Morrer! Não sei como morrer...
E ele, o mestre, continuou:
“- É por isso que existe tanta agonia; porque as pessoas são tolas e não sabem o que pintar nas telas”.
Ora, por não saber matar, por não saber morrer, agora sou um tolo?...
Matando, permanecerei em agonia. Como estou agora. Pelo resto de minha vida. Morrer; vai depender do inimigo. Ele saberá quando e por que vai matar-me?
A Indecisão II
Como depende de mim? Como devo pintar essa tela? Devo procurar por todos os meios, matar o inimigo.
Mas,
e Deus? Esse poder superior, inexplicável, ensina que devemos amar nossos inimigos. Como então conseguir o que, no momento, sem ainda conhecer a real razão dessa batalha da qual participo, repito como conseguir matar ferindo tudo o que de mais sagrado encontra-se gravado no meu íntimo?
Deus!
Como será Deus?
Nada como nenhuma coisa que meus olhos já viram. Meu conceito não admite uma imagem nítida mental. Prefiro enxergá-lo através da existência de leis da natureza que se aplicam em todo o universo, é claro... por este prisma, consigo acreditar na existência de Deus, de um Poder Cósmico que nossa mente e os conhecimentos até hoje adquiridos só podem concebê-lo através dessas leis da natureza e de equilíbrio de duas forças: o bem e o mal, o frio e o quente, aqui (onde estou) e lá (onde meu inimigo está)...
Surge, no momento, a dúvida:
- Acredito em Deus?
- Sou ateu?
- Tenho fé?
A fé... ela é o elo de ligação entre nós e Deus? Tenho confiança? Confiança em que. Em um Deus? Sim, a fé. Devo aceitar e não mais conjecturar: a fé, creio, é o modo de finalizar nossas dúvidas sobre tudo o que é transcendental. Sim, isso mesmo, é o modo encontrado para preencher o “vazio transcendental”. O significado para a própria existência.
De onde vim? Por que estou aqui? Para quê? Para onde irei e tantas outras perguntas que, para não enlouquecermos, temos que colocar o ponto final nessas inquirições, usando a palavra chave: - a fé!... “Ter confiança”, e só!
Nada mais!
Sim, mestre, tento firmar em minha mente, tua afirmativa!
“- O homem é totalmente livre. Esta é a beleza, está é sua glória”.
Tenho convicção. Sim, sou livre. Por isso essa liberdade é minha “glória”.
Mas...
Mas como explicar agora, a indecisão: matar ou morrer? O que mais posso fazer diante do inimigo?
O Amor
Surpreendente! Eu, nessa situação, dizendo essas palavras. Baixinho, como se meu pensamento estivesse conversando com meu coração. Mas! É intrigante mesmo. Já é tão tarde! Posso perceber o avantajado da hora pela posição da lua. Interessante, parece dia. Está tão claro. É a noite mais bonita que já vi. Embora os males que sinto, aflora no meu íntimo, um grande amor! Sim. Amor por tudo e por todos. Isto é que é engraçado. Noite bonita, situação deplorável e eu a sentir amor! Interessante...
Se mamãe me visse assim, neste estado. Na certa iria chorar. Estou tão sujo, barbudo...
“Deprimente”, diria meu Pai. Fazendeiro abastado, roçando os dedos por sob os fios brancos de sua barba, naquele rosto senhoril e austero.
“Você está tal qual um porquinho nos primeiros dias de vida. Todo atolado na lama”. Diria, quase xingando, a preta velha. Dama de coração grande. Amiga para todas as horas, de mamãe. “Eta menino! Num tem jeito não!” Finalizaria, balançando a cabeça, puxando-me pelas orelhas, para fora da lama.
Aqui, agora, onde estou, neste buraco imundo, sinto bem profundo o amor daquela velha preta, puxando-me pelas orelhas nas horas de traquinagem.
Meu Deus, meu bom Deus! Como seria maravilhoso a presença daquela preta velha agora, aqui, nesse fim de mundo. Seríamos felizes. Ela tirando-me, sem perigo nenhum, deste buraco imundo. Pelas orelhas. E eu, enlameado. Acho até que escorria a lama escura que me cobre quase todo. Ficaria limpo. Deixe-me ver: até o rosto está sujo. Choraria tão alto e gritaria tanto de felicidade. Com certeza acordaria o inimigo! E se tal acontecesse? Se ela viesse aqui tirar-me dessa lama e o inimigo acordasse? O que aconteceria?
Não tinha pensado nisso. Aliás, nem imaginei. Sua presença aqui, em pleno campo de batalha, agora, noite avançada, tão longe de casa.
A Prece
É simplesmente impossível! Mas será mesmo impossível ou pode acontecer?
O que está havendo comigo? Meu Deus. Santíssima Mãe, estou ferido ou febril?
Não sei bem. Só sinto o corpo imóvel. Sinto calor também. Pode ser febre. Ou é realmente este maldito pântano que é quente. Não sei mais nada. Penso ser tudo realidade. Estou confuso. Desejo estar em casa. Em minha cama, quentinha, ouvindo e vendo lá na porta do quarto, em pé, toda de preto, com seu xale branco, minha mãe, orando e na certa por mim, como sempre.
Sei que ela me ama!
Estou aqui mesmo. Neste campo de batalha. Nesta lama. Neste pântano. Ou é tudo um sonho ruim? Como fazer para saber ou conhecer a realidade? Meu Deus, ajuda-me a encontrar a realidade. Necessito da verdade. Seja lá qual for. Preciso saber o que está havendo comigo. Realidade ou sonho?
Deixe-me tentar. Vou pensar em mamãe, papai, na preta velha, nos amigos, em casa, e sobretudo, no Senhor, meu Deus. Depois vou rezar, necessito da verdade! Rezar? Pouco adiantará.
Ficarei bem calmo. Tentarei pelo menos me acalmar.
Primeiro, pensarei no meu cachorrinho.
Vejamos.
Ah! Lá está ele. No terreiro. Perto do curral, correndo atrás daquela vaca.
O Medo
Meu Deus, como sóis tão poderoso! Meu pedido foi atendido. Não é sonho, é realidade!
Estou aqui mesmo. Nesta noite. Neste campo de batalha, tão longe de casa, dentro deste buraco. Buraco imundo!...
Ou sou eu o imundo, quem sabe? Parece até que fui eu quem sujou este buraco tão desprezível.
Mas não. Eu me sujei aqui. Existe lama por todo lado. O pior é o cheiro da lama. É horrível. Como fede!
Meu corpo ainda doe, febril. Não me lembro mais se fui ferido ontem ou se fazem dias. Feriram-me o braço. Algum inimigo. Talvez como eu. Moço e temeroso, atirou. E o projétil atingiu meu braço. A febre deve ser por causa do ferimento. Ou por causa da umidade deste fétido e horroroso pântano.
Por que viemos parar aqui? Por que escolheram este pântano? A luta em si já é tão triste. Tudo muito desumano. Por que estas cousas, assim tristes, têm que acontecer em lugares também tristes?
Bem que poderíamos estar vagueando por alguma planície agora. Sob a luz do luar. Como este que vejo tão lindo, daqui desta trincheira tão horrível.
Mas não. Aqui estamos. Sim, nós. Não devo estar só e se assim fosse já estaria longe. Bem longe deste pântano. Devo ter companheiros por perto ou mais adiante. Mais soldados na mesma situação. Não devo estar só. Não vou chamar e nem gritar por ninguém. Não sei se lá atrás, ou aqui mais na frente, tem algum inimigo à espreita do mínimo sinal para atirar.
Eu até que não sou covarde. Posso sentir-me valoroso. Medo tenho. É claro! Mas não de tudo. Por exemplo: haverá bichinhos neste pântano? Desde pequeno sempre tremia ao sentir a presença de algum bichinho. Seja lá qual fosse. De boi bravo, não tenho medo não. Mas livra-me, meu Deus, de sentir agora, na pele, o roçar de algum desses pequenos bichos, seja lá qual for, me apavora.
Lá na fazenda, tive uma infância e juventude tão feliz. Tão diferente desta noite!
O Amanhã
Aqueles dias passaram tão depressa. Surgiram e rapidamente sumiram, só restando, agora, no infortúnio da guerra, a lembrança. Esta noite é longa. Parece eterna. Sinto tremores, de frio e febre.
Não sei mais se lutarei contra o inimigo ou contra o frio e a febre. O que ocorrerá comigo? O que fazer? Não consigo descansar. Necessito descansar. Esquecer e dormir. Amanhã teremos grandes problemas. Mas, não posso dormir. Não consigo. Não posso fazer nada. Estou inerte. Prisioneiro da noite, do pântano, da lama, desse cheiro de podre.
Quem sabe amanhã tudo terminará, e como terminará?
Mas, raiará o dia, ou estou vivendo a noite infindável dos pesadelos? Haverá o amanhã? Como será ele?
E o que farei até amanhecer? As horas não passam. Está claro, mas é o luar. O dia ainda está longe. E este pântano, povoado por bruxas, diria meu irmãozinho caçula, segurou a noite em suas entranhas. O dia não raiará tão cedo.
O que fazer, meu Deus? Vou orar de novo!
Não consigo orar...
A Provação
Somente poucas vezes, ouvira em casa alguém falar sobre fatalidade. Castigo de Deus e outras justificativas para certos acontecimentos. Nunca dei importância a tais conversas. Ouvia e sem preocupações desviava minha atenção para alguma brincadeira. Estava sempre tranqüilo. Era feliz. A conversa dos mais velhos não me prejudicava. Vivia minha infância tão movimentada. Minha juventude foi tão colorida!
Agora, nesta situação deprimente, chego a pensar que ocorre alguma fatalidade. Ou é mesmo castigo... de Deus! Mas, por qual crime? Sempre vivi sem prejudicar ninguém. Entretanto, sinto que realmente tenho que passar por esta provação. Não sei qual o motivo. Sinto no íntimo uma necessidade de sofrer, sozinho...
Nítidas, em minha lembrança, aquelas histórias, contadas à noite, em minha casa, pelos parentes e amigos. Histórias de heróis, tombados em campos de batalha. Por que as pessoas gostam desse tipo de história? E por que, ao ouvi-las sentimo-nos extasiados, desejando que fossemos também heróis em campos de sangue?
Eu ia dormir com a cabecinha envolta naquelas histórias. Imaginando como seria maravilhoso participar de uma guerra. Correndo à frente de todos, de lança em punho pronto a fincá-la no primeiro que tentasse nos deter. Cheguei, inclusive, a organizar o meu exército. Com pedaços de chuchu, abóboras e tudo o mais que caísse em minhas mãos e que se prestasse a tal objetivo. E como eram garbosos os meus soldados! Os cavalos, então nem se fala! Mas nunca, naqueles momentos, pude imaginar sequer o quanto é doloroso e quanto sofrimento traz a luta. Não vejo hoje nenhum mérito em ser herói. Em matar ou ser morto, mormente aqui neste lugar horrível. Quanta imaginação no passado, digladiando-se, agora, com a realidade! Quanta felicidade ao montar, em dias idos, o meu pequeno exército de chuchu e de abóbora. E quanta tristeza e dor hoje nesse campo de batalha! Por que? Por que, somos assim?
O Morto-vivo
Ontem disposto a matar com frieza, se necessário, para dar asas a minha imaginação, à procura de um lugar entre os heróis aqui na terra. E hoje, quando a realidade assume, desprezo tudo o que sonhei. Não quero mais ser herói. Não sou capaz de matar e de morrer. Saberei morrer? Como é que a gente morre? Sentimos dor? Definhamos aos poucos, feridos ou morremos de imediato? Quando dermos o último suspiro, alguém virá nos buscar? Estaremos sozinhos? Ou seremos acompanhados? E por quem? E para onde iremos? Levaremos conosco a lembrança triste deste pântano? As lembranças alegres e felizes lá de casa, levarei comigo? Encontrarei, algum dia, novamente, meus pais, meus amigos?
Devo continuar meditando assim? Ou só pensar no dia de amanhã? Na luta que se avizinha necessária? Devo passar o resto da noite orando? Não quero orar, não me lembro. Morrerei mesmo amanhã? Ou voltarei para casa? Como proceder, se estiver marcado para morrer amanhã? Durante as horas que faltam para o fim, devo pensar, orar, lembrar? O que será certo?
Seja lá qual for a verdade, acho que não posso esquecer de onde estou: neste maldito pântano. Frio intenso. Lama. Cheiro que nos penetra azedo e nos faz maldizer o momento em que empunhamos a arma mortífera.
A lua desceu um pouquinho no céu. Estava mais alta. Tenho medo do amanhecer. Não quero continuar nessa situação de morto-vivo nesta lama. Desejo que tudo termine, mas ao mesmo tempo não quero. Tenho medo da morte. Não a conheço. Não sei como será. Entretanto, estou certo: nunca fui muito de agradar a Deus. Nunca senti necessidade de conversar com Ele.
Devo fazer isso agora. Conversar com Deus. Onde ele estará? Prá que lado? Acompanha a lua em sua trajetória? Aquém de minha imaginação? Onde afinal devo vê-lo? Ouvirá minha conversa agora?
Não será muito tarde? Pensar se Ele é ou não é? Se existe ou não? Pensar sobre tudo isso?
Só conheço uma prece, aquela que mamãe ensinou a todos nós, o Pai Nosso. E hoje não consigo fazê-lo novamente!
A Ilusão
Embora eu tente, com muita calma, forçada, aceitar toda essa situação, na realidade não encontro a paz para o resto da noite. Se não medito, desespero. Se medito, não encontro razões.
É uma situação diferente! Nunca imaginei, antes, haver possibilidade de encontrar-me, algum dia, em tamanha desdita. Inerte, abandonado neste poço de amargura que é o meu buraco neste pântano. Atolado de lama!
Quando relembro dessa situação, comparando-a com os dias já passados, não consigo, por mais que tente, medir ao certo, com honestidade, o quanto sofri mais: durante aquele período, antes de aqui estar, ou a partir do momento em que empunhei a lança da rivalidade mortal entre os homens.
Talvez agora o corpo esteja sendo mais sacrificado, estou todo úmido, sujo, maltrapilho mesmo, ferido! Antes, porém, sentimentalmente, a dor era mais aguda. Será? Acho que sim. Não posso afirmar a diferença exata. Talvez, quem sabe, amanhã de manhã? Ou daqui a alguns anos se sair vivo daqui?
Hoje, aqui nesta lama, só e confuso, tudo escuro, com a morte espreitando e, ontem, no passado, lá na minha terra, com conforto. Qualquer um diria, sem dúvida, de imediato, (porém, sem a minha vivência) que a “vida lá, com conforto, era mais feliz, não havia dor, o bem estar supria os problemas que surgissem, você não sofria”. Entretanto é pura ilusão. Palavras de quem não conhece, realmente, a realidade. O que se passou e o que se passa. Pensei sobre isso. Não sei a medida exata. Não raciocino direito. Pelo menos aqui, sofro só, sem envolver mais ninguém. Os que lá ficaram devem estar, também, sofrendo. Conforta-me pensar que o sofrimento deles seja menor. Estou ausente. É como aquele dia em que trouxeram a notícia: -“seu cachorro foi morto”. Senti muito, chorei! Pior seria, entretanto, se eu estivesse junto, vendo-o aos poucos definhar, caminhando para a morte, sem nada, nem um pouco ao menos, poder fazer por ele.
A Estrela
Ah!... Benditas estrelas... se uma delas pudesse conversar comigo! Hoje. Agora. Quem sabe, encontraria justificativas para tudo. Ela diria: “tudo que ocorreu por isso e por aquilo... acontecerá isto ou aquilo” e assim por diante, desenrolando em minha frente o tapete do passado, do presente e do futuro. Confirmando, ao final: você está certo! Chegará a algum lugar, onde ninguém sofrerá mais. Não haverão desilusões, amores incompletos, saudades, renúncias, resignações, arrependimentos e assim por diante. Tudo será muito claro, ninguém sentirá dores. Somente alegria e felicidade ao redor de todos!
Se aquela estrela pudesse conversar comigo! Passaríamos a noite toda falando e ouvindo. Será possível? “Não, não soldado, não é possível! Você vai continuar sozinho”. Parece-me ouvir alguém dizer isso.
- “Não, não pode. Pelo menos ela, a estrela não falará com você, pode ter certeza!”
Mas, penso eu: é uma idéia linda! Em vez de pensar nesta lama. Neste buraco. Neste pântano. Nos bichinhos, no escuro que envolve tudo, na morte traiçoeira, eu posso... sim, eu posso, embora ela não vá falar comigo, eu posso falar com ela. Posso contar-lhe tudo, o que magoa o coração pois o corpo dela deve estar vendo e tudo já sabe. Deve estar vendo, porque ela está ali em cima. Eu a estou vendo. Vou continuar a pensar assim: ela deve estar vendo o que se passa com o meu corpo!
Vou torná-la minha confidente, mas sobre a dor do coração. É aquela estrela ali, bem perto. Não é grande, mas me é simpática. Vou falar com ela.
O Obstáculo
Olá estrela!...
Você agora será minha confidente. Vamos conversar. Vou contar-lhe tudo a meu respeito. Minhas emoções, meus...
Nisso ouvi estrondos de armas. Fortes. Talvez canhões, antecipando o avanço do inimigo. O que deve acontecer? Se for uma tropa numerosa o estrepe, esta peça militar de ferro, com pontas cravadas no chão, ao longo desta trincheira, com certeza não será empecilho para o inimigo! Pelos dias que já passei aqui, neste horrível buraco encharcado de lama, posso afirmar que o inimigo é forte. Está decidido atravessar a trincheira, já cheia de cadáveres, um dos últimos obstáculos para avançar cada vez mais, buscando a vitória final.
Olho para alguns cadáveres caídos ao chão, perto de mim. Quando chegamos estávamos muito unidos. Limpos e bem dispostos. Hoje só restam alguns de nós ao longo da trincheira. Esfarrapados e sentindo as mesmas dores que sinto. Embora não os veja, sinto que não estou só. Impossível estar sozinho, pois do contrário estaria morto e o inimigo teria atravessado a trincheira. O estrepe dificulta a incursão do inimigo. Porém não é intransponível. Devemos, pois, sermos as “pedra”, dificultando sua penetração.
O Pesadelo
Mas... sentindo dores por todo o corpo quero acreditar, firmemente, que não estou só. Companheiros devem estar espalhados ao longo da trincheira.
Quero ter certeza da presença de alguns deles. Por isso vou verificar. Com voz trêmula grito:
- Ei, companheiros, vocês estão aí?
Ei, amigos, respondam, por misericórdia, onde estão?
Em meu desespero, estou sendo imprudente. O inimigo certamente vai localizar-me. Acabei de pensar e dito e feito! Esticado no chão estou agonizando.
Atônito ouvi novamente os estrondos. Num sobressalto, levantei-me!
Esfreguei sofregamente os olhos, várias vezes. Olhei para o céu e vi, através da janela de meu quarto, o sol radiante, um amanhecer lindo! Graças a Deus, foi um pesadelo, estou vivo...
O Ferimento
Sim...
Não havia mais dúvidas, eu tivera um pesadelo. Dos brabos... horrível mesmo!
Foi o primeiro pesadelo em toda a minha vida. Não me lembro de outro igual ou pior. Nunca tivera pesadelos antes, podem crer!
Refeito do susto, esfreguei novamente os olhos. Passei as mãos em meu cabelos. A mão direita passei e esfreguei a orelha. Ao mesmo lado onde senti uma coceirinha.
Realmente foi um pesadelo. Olhei para minhas mãos... sujas de sangue! Abaixei-me. Sem pensar em mais nada. Não tive dúvidas. Um projétil atingira-me, de raspão. O barulho de fuzis era mais intenso. No ferimento, na orelha, eu não sentia dor, mas os outros ferimentos ardiam... o sangue nas mãos não deixava dúvidas. Fui atingido por um dos inimigos, pensei firmemente. Quem seria esse inimigo? Alguém como eu? Jovem ou idoso? Casado ou solteiro? Se fosse casado, teria filhos? Seus pais ainda eram vivos? Dezenas e dezenas de perguntas surgiam em minha mente. Numa rapidez incrível... todas a respeito do autor de meu ferimento recente, em minha orelha, - um projétil que passou de raspão, - ainda bem. Do contrário eu já estaria morto... Para ter atingido minha cabeça, foi por pouco, milímetros talvez. Raspou a orelha. Devo pensar de modo mais racional: - não posso ficar aqui parado. Tenho que agir. Levantei-me. Fui correndo, ouvindo o “pipocar” de arma do inimigo e zumbidos. Pisando e saltando por cima dos cadáveres, enlameados, de companheiros de ontem, vivos, e hoje, mortos! Alguns estrondos fortes. Canhões, cujos projéteis atingiam o solo, distante de mim, em minha retaguarda.
Até aquele trecho, onde parei após escorregar na lama, não vi nenhum dos companheiros vivos. O sangue ainda escorria pela minha face. Tive a impressão de que talvez aquele projétil não tenha atingido somente a orelha mas a face também, na testa. Respirando com dificuldade pelo cansaço, fome e sede, lembrei-me de uma história que li há muito tempo. A respeito de um gato. Mais ou menos, resumindo: - “um gatinho com fome escondeu-se no porão onde havia um ninho de pássaros com filhotinhos; um deles caiu e sendo agarrado pelo gatinho este exclamou: ‘- Pai, ensina-me a matar!...’”
O Limite
A qualquer momento necessitarei também pedir:
“- Pai ensina-me a matar!...”
Como aprender a matar? Durante toda a minha vida, fui levado a crer que sou um ser de luz e amor. Sempre serei responsável por tudo aquilo que conquisto. Com amor e sabedoria, durante o meu caminhar, estarei em busca de meu rumo de paz e equilíbrio.
Sempre procurei estradas que levassem a um desenvolvimento espiritual e que, ao final de meus dias, pudesse eu sorrir e esperar a morte com tranqüilidade, pedindo ao Pai chegar mais rápido ao “reino dos céus...”
Como poderei pedir, então, a qualquer momento: “- Pai, ensina-me a matar!”?
Ou deverei pedir: “- Pai, ensina-me a morrer!”
Aprendi; não devemos nos prender ao passado. Nem sofrer pensando no futuro. Porém viver intensamente o presente. O passado serve bem como experiência. O futuro sempre será o momento presente, em que eu estiver vivendo intensamente! É bom pensar no passado, mas não viver sempre o passado. Se acertei ou errei, foi através do conhecimento que eu adquirira até aquele momento. Como agora. Tudo o que eu fizer, amanhã servirá para que eu possa, quando necessário, pensar a respeito, porém nunca recriminar-me por decisão tomada hoje. E vou divagando, enquanto a respiração, aos poucos, vai normalizando: - como sobreviver, sem lutar, sem matar? Matar!... em nome de quem, porque, para quê? Não vejo nenhum sentido de estar sofrendo. Pior ainda diante da indecisão: “matar ou morrer...” Estou mendigando paz. Tranqüilidade. Amor. Mendigando sim. Implorando até o “como encontrar felicidade nesta trincheira, diante do inimigo, e se devo matar ou ser morto”.
Ser morto? Como? Só existe uma maneira: - deixar-me ser morto...
Mas, não estou preparado nem para matar e muito menos deixar-me ser morto. Será que, neste momento, o inimigo está pensando como eu?...
Nunca matei uma mosca sequer. Tenho medo do desconhecido. Tenho medo da morte. Sinto a dor física. Os ferimentos doem. Sinto dor de cabeça, tonteira. O fato de ter que ficar bem imóvel, provoca dormência, cãibra. Se piorar posso entender chegar o momento em que desejarei a morte. Será meu limite, claro! Não é dor física. Mas muito mais intensa. Talvez porque acredito ser imortal, diante do inexplicável, - “a existência da alma”. Minha fé?
O Charco
Se eu tivesse realmente fé, não estaria sofrendo tanto! Física e espiritualmente! Devo pensar em sobreviver. Sem matar e sem ser morto. Vou pensar seguidamente neste propósito. Como um sonho a ser perseguido. Ainda estou vivo. Devo ter este sonho. A vida sem sonho, não tem sentido. Minha presença aqui, nesta trincheira, tem como objetivo o sonho de sobreviver. Quanto mais intenso, mais perto ficarei para alcançá-lo! Não posso deixar de ser realista. São duas as alternativas: “- Matar, ou deixar que me matem!” A pergunta surge bruscamente: “- Pai, ensina-me a matar. Pai ensina-me a morrer...” Tenho que ser forte em meus pensamentos e atos. Já superei tantos obstáculos em minha vida... No momento não sei como sobreviver, sem matar ou deixar-me diante do inimigo para ser morto! Meus companheiros na trincheira mataram e já morreram. Não deixaram de matar. E não sobreviveram. Percebo agora, estou sozinho! Todos morreram. Mais ainda: os estrondo que eu ouvi não eram de canhões, mas sim granadas... Granadas lançadas e que atingiam minha retaguarda pois a distância que me separa do inimigo não é tão longe: eu, aqui neste buraco e o inimigo naquela mata. Onde estou? Reconheço agora, é mais um charco do que pântano. Toda imundice é de lama verde, azul, arroxeada. Sei lá, mas que parece podre, parece sim. O cheiro podre da morte.
Sempre pensei que, se algum dia, por algum motivo, sentisse-me acuado, no ímpeto da ira ou na vontade de viver, seria capaz de matar!... Infeliz pensamento. Não sou capaz de matar, porém sinto uma vontade extraordinária de viver.
Essa dor física, é uma dor ardida. Vai aumentando com o frio. Parece atingir os ossos. Sim, o frio e minha posição, sempre agachado nesse lodo. Engraçado, onde fui ferido, no local e ao redor, pouco sinto dor talvez porque ela está em todo o corpo. Quantas e quantas noites, bancando o seresteiro, boêmio, ficava horas e horas na farra. Até o raiar do sol. Sentia-me daquele jeito, feliz. Em casa, cama, lençol e cobertor. Ambiente quentinho. Eu nem ao menos, naqueles dias, do quarto e da hora certa para dormir. Hoje, quanta falta me faz uma cama, cobertor e o silêncio do quarto. Tranqüilamente eu adormeceria! Outros pensamentos surgem. Essa dor interior, essa dor n’alma, é mais forte. Deve ser o início de um distúrbio emocional. Depressão, talvez.
Não sei quantas noites já passei neste buraco. Não sei por que o inimigo ainda não avançou. Já não ouço, como antes, os estrondos que pensei serem tiros de canhão e nem o som de fuzis, tiros disparados por mim ou pelo inimigo. Os tiros mortais que partiram desta trincheira foram de meus companheiros. Desde o começo, não atirei sequer uma vez, a não ser para o alto, sem mirar no inimigo. Não desejei matar ninguém. Nos momentos em que fui atingido, várias armas eram disparadas.
A Saudade
Faz algum tempo que não ouço o som de armas. Aqui estou e o inimigo? O que estará fazendo, pois daquele lado o silêncio é completo.
É inacreditável! Mas será que no campo inimigo também só reste um? Ou nenhum? Estarão todos deste e daquele lado, mortos, com exceção de mim e de um inimigo? Se existir, agora, somente um inimigo, na certa estará planejando um modo de atingir-me mortalmente...
Se forem muitos, na certa farão, mais uma vez, aquele tipo de ataque seco, violento e súbito para matar e testar, ainda mais uma vez, nossas forças e posições. Se assim for, descobrirão uma trincheira completamente cheia de cadáveres e um só homem – eu – sem desejo de matar ou de morrer. Sim, se acontecer mais um desses ataques permanecerei quieto. Como agora. Imóvel. Aguardando... talvez, se eu não reagir, me levarem como prisioneiro! Como prisioneiro não terei que matar ou morrer. É isso mesmo, é a solução ideal. É o que quero mais do que qualquer outra coisa: - ser prisioneiro!... Num relance olhei para minha mochila. Toda rôta, imunda, rasgada, ou, melhor, para o que restava dela. Lembrei-me de algo que ouvira há muito tempo de um andarilho: - “tudo o que preciso na vida é de uma mochila!” Neste instante nem de mochila necessito. Mas sim de amor, paz, ternura. Mas dei razão àquele andarilho. Tudo o que a gente precisa na vida, cabe numa mochila! Tudo o que necessito é paz. Esta é uma das piores noites que passei nesta trincheira, inalando o cheiro horrível de cadáveres e de lodo podre. Lodo podre, só pode ser o que eu pensava ser lama. A lama suja, mas não fede, penso eu. Quanta saudade sinto daquele aroma gostoso de terra molhada pela chuva após uma manhã ensolarada. Uma saudade tão simples!... Terra molhada pela chuva... Saudades sinto de meus pais e irmãos. Minha mãe, então, que com tanto carinho servia-me um prato delicioso de sopa quando eu estava febril. Aconteceu poucas vezes, pois seu zelo para com os filhos era tão grande e doenças, raramente, penetravam em nosso lar, - ficava do lado de fora. As poucas vezes em que, febril, deitado na cama, em meu quarto, eu pude experimentar como ela sabia fazer, com muito amor, uma gostosa sopinha! Sim, minha vida foi muito rica de sentimentos e emoções tão agradáveis. Cada noite, ajoelhado, agradecia aos céus tudo o que tínhamos recebido e pedia somente o que nos fosse necessário. Estou até lembrando de novo da mochila: o que precisamos para viver, cabe numa mochila e no coração de mãe e de filho afetuoso. Sinto cãibra. Estou nesta posição um bom pedaço da noite. Não demora amanhecer.
O Pai Nosso
Em minha volta parece estar mais claro. Olho para os lados. Para o céu. Vejo os primeiros clarões de um dia chegando. O que vai ser de mim? Devo tomar uma decisão. “Pai, ensine-me a matar. Pai ensina-me a morrer!”
Inesperadamente, sinto um arrepio por todo o corpo.
Fixo o olhar para o céu. Com voz firme suplico:
“Meu Pai,
Mestre,
ensina-me a rezar!...
Mostre-me a luz!”
E com a voz macia, pausadamente, vou orando:
“Pai-nosso que estais nos céus, santificado seja o vosso nome,
venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade,
assim na terra como no céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.”
“Pai, reino, pão e perdão”; é do que necessito.
Num movimento muito rápido, sem pensar em mais nada, levanto-me da trincheira.
Estou em pé. Sem arma. Olhando lá prá frente, onde penso estar o inimigo. É isso mesmo. Vou render-me. Saio da trincheira. Com os braços para o alto, começo a caminhar. Bem devagar, em direção ao inimigo. Nada mais penso, a não ser em caminhar, até lá na frente, com os braços levantados. Passo a passo, entregando-me ao inimigo.
Surge lá, entre árvores, alguém. Está só. É, como eu, um soldado! É o inimigo... Mas só vejo um. Os outros, onde estarão? Não importa. Tomei minha decisão. Os braços levantados, simbolizam rendição. E lá na frente, o vulto do inimigo vai ficando mais nítido...
Oh! Meu Deus!
Não é possível. Estou vendo nitidamente o inimigo. O único inimigo vivo! Caminhando, como eu, passo por passo, em minha direção, com os braços levantados, sinalizando rendição!...
Sim, ele é igual a mim, graças a Deus! Ele não sabe matar e não sabe morrer...
Ele, como eu, com as mesmas dores e sentimentos, deve ter exclamado, durante a noite, em seu esconderijo, como eu tantas vezes fiz: - “Pai, ensina-me a matar. Pai, ensina-me a morrer.” E sua decisão, foi igual a minha...
O sol soltou seu primeiros raios, iluminando o dia que surgia. Eu, assim como ele, o inimigo, continuamos andando. Passo a passo. Diminuindo a cada passo, a distância entre nós.
De repente, agradecendo ao Criador, cada um de nós, em direção ao outro, saímos correndo. Abraçando-nos, sentíamos o calor de nossos corpos, antes tão frios, apesar de sujos e feridos olhamos um para o outro, sorrimos e abraçamo-nos novamente!...
De nossos olhos as lágrimas escorriam, rosto abaixo, e sussurrando exclamamos:
- Pai, obrigado por nos ter ensinado o valor da vida e do perdão! O valor do amor!...