O Príncipe Maldito VI
Perigo é ter o seu pescoço prestes a ser espetado por espadas, lanças e facões enferrujados por todos os lados. Se os heróis desta história soubessem que acabariam numa situação semelhante, rodeados por dezenas de piratas, teriam pensado duas vezes ao tomarem a rota mais curta para as terras do norte. Não teriam seguido para o porto da cidade de Pag-Owmorra. Não teriam arriscado tanto. Bem, antes é preciso contar como eles chegaram até lá, para que se possa entender como entraram nessa enrascada.
Do Vale Sombrio para as Terras Geélidas havia dois caminhos principais. Um, mais longo e seguro, pela estrada de tijolos enferrujados que cruza os incontáveis quilômetros da floresta-labirinto nº 52. Só teriam de enfrentar alguns monstros inimagináveis, de vários olhos e garras, babando em cima deles. Coisa básica em qualquer uma das outras cinquenta e uma florestas-labirinto. A outra opção era a rota pelo Mar de Areia, pegando um navio na cidade portuária de Pag-Owmorra. Não teriam maiores problemas para chegar lá. O problema seria A cidade. Pag-Owmorra era conhecida por ser reduto das piores espécies de humanos e não-humanos de todo o globo. Um problema que, depois de considerado entre o grupo, não foi levado como algo tão sério que Belarmina Beladona, Gordulfo, Carpeaux e o druida calado não conseguissem superar. Alguns deles até chamavam Pag-Owmorra de segundo lar e votaram em ir por lá. Três deles, para ser mais exato. E como a maioria costuma ser democraticamente burra, seguiram o caminho que os conduziria a borda do Mar de Areia e a um perigo que sequer imaginavam.
É claro que existia a hipótese de se contornar o imenso Mar de Areia, mas ninguém era louco o bastante, nem mesmo os mais loucos, a passarem pela infinitude de reinos e pedágios e impostos e taxas cobradas nas margens do Mar de Areia. Era um verdadeiro assalto! Sem falar que a burocracia era tamanha, que os que haviam optado por este caminho ou tinham abandonado o destino final, porque a viagem demorara demais e acabaram esquecendo aonde queriam chegar, ou porque acabara todo o dinheiro, consumido pelos governantes litorâneos.
"Os piratas não costumam ser muito corteses com estranhos, como vamos embarcar em um navio sem termos dinheiro?" - perguntou o druida mudo, não exatamente nestas palavras e sabe-se lá como, aos companheiros.
- Fique tranquilo, druida, existem outras formas de se convencer um pirata a colaborar - respondeu a pequena BB, com um sorriso angelical e diabólico.
O porto de Pag-Owmorra, que tinha o mesmo nome da cidade, não era algo comum de se ver. Pelo menos, não de ser ver e sair vivo de lá para contar depois. Localizado bem no meio de dois despenhadeiros, ficava às margens do Mar de Areia, o maior e mais mortífero deserto do mundo. Tratava-se de um deserto tão mortífero, mas tão mortífero, que tentar atravessá-lo à pé ou em caravanas era suicídio. Isto por causa das intermináveis tempestades de areia, que além de desorientar qualquer senso de direção eram, no mínimo, sufocantes. Mas, o mesmo vento fortíssimo que tornava o deserto tão terrível também o fazia navegável, por galés e caravelas adaptadas para serem impelidas sob a areia. Em uma época de crise, os únicos corajosos ou idiotas o suficiente para fazer o transporte de mercadorias e passageiros pelo Mar de Areia eram os piratas. Eles aprenderam e catalogaram os fluxos dos ventos e este era o seu maior tesouro. Era um segredo passado de geração em geração, geralmente com a ajuda de uma espada no processo. Quem soubesse a direção, força, hora e duração de determinado vento aprenderia facilmente a navegá-lo. Pag-Owmorra era o ponto de encontro de navios piratas para qualquer uma das extremidades conhecidas do Mar de Areia, incluindo as Terras Geélidas.
A cidade cresceu ao redor do porto e por causa dele. Construída verticalmente com casas, tavernas e bordéis encravados nos dois despenhadeiros, tinha uma confusão de cordas e pontes suspensas interligando um lado ao outro. Os navios chegavam e partiam impelidos pelo vento e atracavam passando rente as precárias construções. Como havia espaço somente para um navio atracar por vez, formava-se uma fila de espera. Se o navio que estivesse na frente fosse contratado logo, após a sua partida o próximo da fila assumia o seu lugar. Contudo, enquanto não eram contratados, os piratas aproveitavam para beber rum, bater (e apanhar) de homens e mulheres, e fazer outras coisas do mesmo tipo nas tavernas de Pag-Owmorra. Isso contribuiu muito para a boa má fama que a cidade se orgulhava em espalhar pelos quinze cantos do Mar de Areia.
O grupo de viajantes chegou ao anoitecer à cidade-porto. O druida olhava admirado todas aquelas casinhas dependuradas nas encostas, iluminadas por lanternas ou velas, parecendo insetos noturnos de formas e cores variadas em uma noite escura. Refletiu que mesmo sem planejamento, aquelas pessoas sobreviviam em um ambiente hostil e perigoso. Os sons de brigas e gemidos e outros barulhos que não se sabe ao certo eram de algum bicho ou humano ficavam mais intensos ao escurecer. Misturavam-se aos cheiros de bebida, urina e carne frita, e de toda uma leva de mercadorias carregadas e descarregadas nos navios.
Carpeaux sugeriu que descobrissem qual a primeira embarcação da fila, para, de algum jeito, forçá-la a ir para o norte. Ele e BB riram juntos ao perceber que o primeiro navio era a caravela Darius Drome, pois conheciam o capitão daquele navio, o famigerado pirata Barbarrala. O pirata já estivera enamorado por BB há alguns anos, mas na atual situação em que ela se encontrava, presa em um corpo de menina, esta não seria uma moeda de troca muito boa. Barbarrala era vidrado nas formas do corpo de BB, da antiga BB, e até mandara pintar um quadro à óleo dela e colocara em sua cabine. Como seria muito difícil convencer ou forçar o navio a ir para o norte sem o pagamento em dinheiro adiantado, e sem a vantagem que BB tinha sobre o pirata, elaboraram o seguinte plano: entrariam sorrateiramente no navio e ficariam escondidos na cabine do capitão até ele zarpar. Depois, quando já estivessem dentro do Mar de Areia, mudariam a rota convencendo Barbarrala ou intimidando-o ou fazendo-o de refém. Naquela hora, a maioria da tripulação do Darius Drome estava se divertindo, aguardando a hora do vento certo para partir, e BB facilmente fez um feitiço sobre os vigias para que estes cochilassem por um momento. Assim, entraram na cabine do capitão e aguardaram por várias horas até o momento oportuno.
Ao amanhecer, chegou a hora de zarpar. Como um relógio, o vento Zé Firo começou a soprar forte. Ele era a via principal para se sair de Pag-Owmorra. Depois os navios poderiam pegar outros ventos e tomar as rotas desejadas. A tripulação já tinha carregado tudo o que precisava à bordo, e na hora aguardada, alguns retornaram embrigadados, ou fugindo de cobradores ou mulheres bravas, ou até com partes do corpo remendadas e enfaixadas. Quando o navio içou as velas, a já conhecida força do Zé Firo começou a mover, primeiro lentamente, depois ganhando mais e mais velocidade, todo aquela estrutura adaptada especialmente para locomover-se no deserto. Da cabine, os nossos heróis só escutavam o zunido ensurdecedor do vento, e alguns gritos aqui e acolá para soltar alguma amarra ou içar outra vela. Depois de um tempo, ouviram o barulho de botas descendo as escadas para a cabine, e prepararam-se para agir. Assim que o capitão entrou, fecharam a porta atrás dele e o renderam.
- Mas o que é isso?
- Calma, Barbarrala, são apenas velhos amigos querendo acertar algumas continhas - respondeu Carpeaux alisando o único lado do bigode que tinha.
- Acertando as contas, ora seu... Se me lembro bem, são vocês que ficaram me devendo uma fortuna na última vez... Onde está Belarmina? Quem são estes outros?
- Estou aqui, meu bem - disse a menina sentada sobre a mesa em uma posição sensual, pelo menos a mais sensual que ela tentou fazer, mostrando um pouco as perninhas, o joelho esquerdo tendo um esparadrapo tapando um machucado.
- Então é verdade o que me contaram, você virou uma pirralha! - e soltou uma gargalhada segurando a barriga e virando a cabeça para trás.
Porém, a gargalhada foi só uma distração para sacar duas pistolas que trazia escondidas no casaco e apontá-las para BB e Carpeaux. Gordulfo dormia em um canto chupando o dedão. Apesar de ser muito forte, era notório que quando ele caía no sono, ninguém conseguia mais acordá-lo. Mas o que o pirata Barbarrala não contava era com a rapidez do bastão do druida, que de um golpe só, jogou para o ar as duas armas da mão do capitão e ainda o imobilizou contra a parede.
- Golpe de sorte, filho. Vamos ver como se sai contra uma tripulação inteira com este pedaço de pau.
- Cale a boca, pirata - uma vozinha doce ameaçou - Você agora é nosso refém e a sua tripulação vai fazer o que nós mandarmos.
- Essa eu quero ver - respondeu maliciosamente Barbarrala.
Saíram os quatro para o convés, Barbarrala na frente, com uma faca no pescoça segurada por Carpeaux, e logo atrás BB e o druida. Os piratas, quando viram a cena, por um instante não souberam o que fazer. Até que Carpeaux gritou:
- Piratas, ouçam bem. O seu capitão é nosso prisioneiro. Um gesto brusco e eu corto o pescoço dele. A partir de agora, o controle do navio é nosso.
O silêncio durou exatos dois segundos e trinta e sete milésimos. Depois, ouviu-se uma gargalhada uníssona que soou mais alta que o vento Zé Firo. Talvez até ele tenha rido junto. Enquanto BB, Carpeaux e o druida olhavam-se sem entender nada, Barbarrala explicou:
- Seus idiotas, eu não sou mais o capitão deste navio. O plano de vocês quase teria dado certo, se não tivessem deixado passar este pequeno detalhe. Agora, sofram as consequências da sua burrice.
- Mas quem é o capitão agora? - murmurou BB, ao perceber que várias facas, espadas, lanças e facões enferrujados agora apontavam para os seus pescoços.
- Alguém bem mais traiçoeiro, vil e apavorante do que eu. Aquele que fará vocês se arrependerem de ter entrado nesse navio - e apontou o nariz torto para a popa da embarcação.
Os três olharam para o leme e estremeceram. Seriam os dois olhos mais maléficos daquela embarcação, se um deles não estivesse com um tapa-olho. Esboçava um sorriso cruel, se é que aquilo poderia ser capaz de sorrir. Era uma visão selvagem, mais ainda, era uma visão totalmente desumana. Os olhos e sorriso que miravam aterradores para os três eram o de um papagaio verde, que usava um tapa-olho e um mini chapéu de capitão.
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