Luz (Vampiro - A Máscara)

Luz

Eu caminhava displicentemente pelas ruas de uma movimentada New York. Noites abundantemente iluminadas, impecáveis em beleza, desprovidas de calor.

Noites secas.

E de um frio tão profundo... Um frio que minha pele morta já não sentia mais.

Após alguns séculos, é incrível com as coisas tornam-se diferentes. É incrível como algumas coisas perdem o pouco significado que lhes restava.

Lembro-me de quando fui forçado a entrar nessa noite eterna, e lembro-me cercado de nostalgia – lembranças são preciosas, no meu estado. Veneza, um carnaval, muitas máscaras, uma voluptuosa e bela senhorita. Uma mordida e uma maldição disfarçada de benção. Era isso a minha noite: um eterno e alegre Baile de Mascaras.

E continua sendo, com a diferença que a alegria se foi. O baile tornou-se decadente, e morbidamente embalado pela triste melodia de uma missa fúnebre. E a mim restou apenas a tristeza disfarçada no sorriso cínico de um Pierrot sem lágrimas, que insiste em fingir que é um Arlequim.

Sigo, andando com a leveza e graciosidade que me são inerentes. Escuto os suspiros e os comentários. Sinto os olhares repletos de luxúria caindo sobre mim. E nada disso desperta meu interesse. Ninguém mais consegue despertar em mim um desejo que não seja por aquilo que corre em suas veias.

Porque o desejo genuíno não é nada senão uma fagulha da vida.

Olho para a lua crescente, cuja bela luz prateada é a inspiração dos amantes. Mas meus olhos não mais brilham ao contemplar esta lua. Eu não tenho mais direito de olhar mais para ela.

Baixo o olhar, como se o ato de contemplar o chão fosse o mesmo que contemplar minha desgraça. Continuo andando. Meus passos me levam sem rumo e sem vontade, movimento-me por mero capricho, uma vez que estou morto.

E uma vez que a morte me deixou cansado.

Olho ao meu redor, e tudo parece tão morto quanto eu. E eu sinto que não vou aguentar isso por muito tempo, e à medida que a sanidade se distancia, vem uma vontade alucinante de ver por uma última vez o brilho do Sol.

Mas a quem quero enganar? Eu jamais teria coragem de encarar o Sol novamente. Aquela luz e aquele calor estavam perdidos - pela eternidade, espero eu.

E foi com esse pensamento em mente que meus olhos se depararam com os dele.

Parecia ser jovem ainda, tinha uma face de traços delicados, e o pesado casaco não conseguiu esconder de mim a beleza do seu corpo. Da mesma maneira, o grosso cachecol de lã foi inútil na tentativa de impedir que meus aguçados sentidos de pregador capturassem o adocicado cheiro do sangue que corria dentro de si.

Mas isso era o de menos.

E eu notei esse fato ao ver-me perdido na bela luz prateada que cintilava em suas cristalinas orbes cinzentas. Ele olhava de maneira quase iludida para a Lua, e eu repetia seu ato, olhando para todo aquele fulgor refletido.

No instante em que vi aqueles olhos, eu os amei.

Eu os amei não apenas pela sua simples beleza. A prata de minha pulseira e o diamante do meu brinco brilham de maneira semelhante ao olhar daquele humano.

Mas não estão vivos, e é esse o ponto.

Aquele brilho não era mero efeito da luz lunar refletindo-se em claras íris. Não... O brilho daqueles olhos era reflexo da vida contida neles.

Aproximei-me, decidido. Sentei-me ao seu lado, assustando-o um pouco, afinal, sabemos como nova-iorquinos gostam de preservar seu espaço. Ainda mais quando se trata de um estranho, em uma madrugada, em um parque quase deserto.

Ele me olhou com desconfiança, e ainda assim seus olhos me pareciam encantadores.

Eu o encarei e sorri, apenas isso. Palavras se faziam desnecessária para mim, e apenas com meus olhos mortos eu consegui com que os dele se enchessem de algo que ficava entre o temor e a admiração.

Beijei-o.

Um mero pretexto, devo dizer. Uma mera formalidade, repleta de falsa doçura. As únicas coisas realmente reais ali eram minha paixão, meu desejo, e a vida dele.

E minha inveja também, por que não?

Aquilo era uma farsa. Um teatro muito bem montado. A estratégia de um sagaz predador que, armado de sutileza, seduz sua vítima para então devorá-la.

Mas ele era especial.

Ele era lindo. Ele era encantador. E eu, como o cavalheiro que sou, tenho o dever de ser gentil. Vejo suas pálpebras fecharem-se em deleite, aprisionando o brilho que me atraiu. Eu abandono seus lábios um pouco frustrado por ter sido tolhido de minha luz e então me direciono ao seu pescoço.

Ele suspira, imaginando ser alguma carícia. E eu não o decepciono.

Manha língua passeia pela sua tez, sentindo em antecipação o gosto daquele sangue. Meus caninos rasgam com suavidade a sua pele, e sua preciosa vitae começa então a pulsar contra meus lábios.

Perco-me em seu sabor, enquanto meus ouvidos escutam com descaso mais um suspiro. Pergunto-me de ele está aproveitando isso tanto quanto eu. Provavelmente não, mas que ele está gostando, é inegável.

Todavia, o tempo é curto e o meu prazer é destrutivo.

Mas eu não queria destruí-lo. Não poderia conviver com a culpa de ter destruído aquela luz que me encantava, seria como me privar do Sol uma segunda vez.

E ao sentir as batidas do seu coração cessarem, ao mesmo tempo que o calor se sua pele se esvaia, o desespero me tomou. Eu não podia deixá-lo morrer. Eu tinha que mantê-lo ao meu lado. Eu tinha que ter toda aquela perfeição para mim, e para sempre.

Nem tentei conter minha vontade de completar aquela loucura. Sabia que não conseguiria, afinal. Procurar pela luz é como um vício par mim. E francamente? Sou muito fraco contra meus vícios...

E quando dei por mim, meus lábios entravam-se cortados e mais uma vez unidos aos dele, dessa vez compartilhando do meu sangue e da minha maldição. Compartilhando da falsa vida eterna em uma espécie de batismo profano que nos ligaria para sempre.

Esperei angustiado por alguma reação, a qual logo veio.

Observei absorto, com um pingo de sadismo, seus músculos tencionarem-se violentamente ante aos fortes espasmos de dor. Aquilo era terrível, eu sabia. Minha mente nunca se esqueceria da dor da morte, nem a dele, eu tinha certeza. Mas ele também não se esqueceria do prazer lascivo do renascimento, e essa certeza se confirmava à medida que eu era capaz de ouvir alguns sussurros impudicos.

E eis que ele abriu os olhos.

E eis que meu mundo desmoronou. Uma vez mais.

Ele era minha última escolha.

Ele era aquele com quem eu queria passar o resto do meu tempo.

Ele deveria ser aquele que eu sempre amaria.

Então por que aquilo tinha que acontecer? Por que o brilho dos seus olhos sumira de maneira tão repentina e avassaladora?

Por que eu não poderia ter pelo menos aquele Sol para mim?

Por que eu sou amaldiçoado?

E agora, apenas agora, vejo o quão imperfeito é o método da preservação da perfeição. E após algumas noites, ele estará tão seco quanto eu.

E eu? Ah... Eu me cansarei.

Como sempre.

Ryoko
Enviado por Ryoko em 07/07/2009
Código do texto: T1686856
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