Plano de Resgate (II de III)

LÁ ESTAVAM. FAZIA PELO MENOS quatro dias que Anna, Daniel e Zâner haviam chegado até a colônia das fadas, fugidos do cativeiro onde o monstro os havia prendido. A colônia era um lugar escondido das vistas das outras criaturas, dentro de uma gruta cortada por um grandioso rio, que despejava suas águas a uma velocidade incrível, criando uma nuvem de gotículas em sua nascente.

Um amontoado de pesados livros estava a frente dos três, que se mantinham sentados em uma das mesas da biblioteca. Zâner, que no cativeiro havia se transformado em um gato, agora voltara a sua forma de criança-fada, com seus cabelos avermelhados e seus dentes tortos e afiados.

- Como vamos fazer? – perguntou Anna. – Já estamos aqui há quase uma semana e ainda não temos a mínima ideia de como iremos salvar os outros! – ela disse.

- As escrituras de Thales já foram lidas e relidas, mas ninguém nunca chegou a conclusão alguma. Temos uma prateleira inteira de livros dele, e a maioria dos textos são poemas exaltando a natureza e as fadas. Nada muito conclusivo. Muitos diziam que ele nunca se perdoou por não conseguir voltar. E, quando as fadas começaram a desaparecer novamente, ele simplesmente sumiu. Voou para algum lugar e nunca mais retornou. Alguns dizem que morreu, mas eu duvido muito disso.

Subitamente, enquanto ouvia as palavras de Daniel, uma coisa chamou a atenção de Anna, assim que virou a página seguinte do livro que folheava: uma pétala de rosa estava ali, no meio das páginas, seca e sem vida, fina e frágil. Anna observou-a com dúvida. Havia alguma coisa desenhada ali, pequena o bastante para passar despercebida. Eram inscrições minúsculas. Cuidadosamente, levantou a folha contra a luz e, espremendo os olhos, pode ler:

Revestida de mais puro amarelo

Ouro na presença do sol poente

Cai a noite, ela brilha infinitamente

Harpias pousam sobre sua superfície

A luz da lua faz dela prata límpida

- Pelos deuses, o que é isso? – perguntou Daniel, aproximando-se. Zâner também chegou perto, curioso. – Onde achaste essa pétala, menina?!

- Ela estava aqui dentro do livro... – disse Anna, assustada com a reação de Daniel. – O que aconteceu?

- Não faz bem tocar em pétalas de rosas! Os gnomos são donos das flores, não as fadas! Vamos, esconda isso antes que alguém veja! – ele sussurrou. – Tu nunca mais serás tocada por um semelhante se te virem com essa coisa nas mãos! Tens sorte por eu não ser supersticioso!

Anna pôs a pétala de volta na página do livro e colocou-o de lado. Não entendia muito bem as superstições de seu povo, mas não iria discutir com um ancião sobre tradições. Sem encostar as mãos no livro, Daniel colocou os olhos o mais perto que pode da pétala, tentando ler o que estava escrito.

- Leia para mim, por favor.

Anna espremeu os olhos e releu o poema, alto o suficiente para apenas Daniel e Zâner ouvirem.

Daniel ponderou por um momento, pensando no que aquelas palavras queriam dizer.

- Ei! – gritou Zâner, sobressaltando todos. – Eu sei onde fica isso! É a pedra do limoeiro!

Raras vezes Anna ouvia a voz de Zâner, mas, sempre que ouvia, ele tinha algum apontamento interessante a fazer. E dessa vez não foi diferente.

- Onde fica isso? – perguntou Anna. O nome não lhe era estranho.

- Santas fadas, criatura, você tem certeza que não é um gnomo ou um duende? – Daniel tinha um ar carrancudo e ao mesmo tempo divertido. – A pedra do limoeiro! – ele olhou pela janela e apontou. – Está vendo?

Anna olhou para onde Daniel apontava: uma pedra gigantesca, fora da gruta onde a colônia das fadas se mantinha. Ali, o limoeiro gigantesco e de caule grosso crescia em meio ao musgo da pedra. Por algum motivo, aquela árvore conseguiu sobreviver ao solo pedregoso – os velhos anciãos falavam sobre uma magia antiga, os teóricos atuais sobre as condições atípicas e os fatores cromossômicos do limoeiro.

- Por que o poema fala sobre ela ser dourada e prateada, e sobre harpias pousarem nela? – perguntou Anna.

- É uma metáfora. Deve ter sido a forma que Thales encontrou de deixar uma mensagem! – disse Daniel. As palavras saíam atrapalhadas de sua boca, como se ele tivesse chegado a uma conclusão genial. – Ele não queria que qualquer um lesse, senão não teria escrito as coisas em uma pétala de rosa! E a colocou nesses livros carcomidos pelo tempo. De alguma forma, ele sabia que só iria abrir esse livro quem estivesse interessado em descobrir como ele fugiu daquele lugar!

- Devemos ir até a pedra! – exclamou Zâner. Puxou o pai e Anna, correndo.

Rumaram até o lado de fora da biblioteca rapidamente, e, quando lá chegaram, adquiriram a forma de luz. A pedra não ficava longe, mas o voo foi reconfortante: Anna voou muito próxima da extensão de água que separava a gruta da pedra limosa, sentindo o frescor percorrer todo seu corpo luminoso. Daniel e Zâner, animados, voavam a um ritmo acelerado, querendo montar todas as peças daquela charada o quanto antes.

A árvore era muito maior do que parecia. A época de outono deixava a região completamente deserta: as folhas secas caíam sobre a pedra e logo deslizavam para o rio, que as levava para longe, e, sem a sombra, as crianças pouco se preocupavam em brincar por aquela região.

DEPOIS DE MUITO TEMPO EXPLORANDO todas as minúcias da pedra, os três já perdiam as esperanças. Gritaram, chamaram, tentaram voar até o topo do limoeiro, mas nada do que faziam surtia algum tipo de efeito. Estavam já a ponto de desistir quando Zâner descobriu um detalhe que passou despercebido a todos.

- Olhem! – ele exclamou, apontando para um ponto próximo às raízes do limoeiro.

Lá, escondido em meio às folhas secas e raízes retorcidas, havia uma pequena abertura. Pequena até mesmo para as fadas. A abertura fora feita na casca da árvore, formando um arco que mais parecia uma porta.

- Isso é... a entrada da árvore? – perguntou Daniel. – Acha que devemos entrar ou...

Mas, antes que Daniel terminasse a pergunta, Zâner e Anna já haviam se esgueirado sorrateiramente pela minúscula entrada.

O corredor parecia infinito. O caminho escurecia a cada passo que davam, e a entrada logo se tornou um minúsculo ponto esbranquiçado em algum lugar muito distante.

Então, de súbito, ouviram um barulho. Um som apavorante, que ecoava de longe e se tornava cada vez mais alto. Pararam, gélidos de medo e apreensão. Zâner segurou na mão do pai, apertando-a com força.

- Imbecis! – gritou uma voz ecoante e fantasmagórica. O som de algo que mais parecia cascos batendo repetidamente no chão chegava cada vez mais perto. – O que estão fazendo aqui, suas crianças mimadas?! Voltem pros seus pais, demônios dos mil infernos!

- Resolvemos vir aqui depois que vimos a pétala com as inscrições! – apressou-se a dizer Anna. – Estamos procurando por Thales! Somos refugiados do cativeiro do monstro e procuramos informações para resgatarmos as outras fadas!

Ouviram que o barulho dos passos se aproximava, mas a voz calara-se.

- Pelos deuses de todas as criaturas mágicas! – o dono da voz exclamou, dessa vez com menos ódio. – Então quer dizer que os boatos que ouvi não são mentiras?!

Uma luz tênue acendeu-se, iluminando a face de um homem excessivamente encurvado, com barba branca e desgrenhada. O aspecto sujo e envelhecido não o tornava atraente.

- Desculpem a intolerância... – ele apressou-se em dizer com uma voz esganiçada. – Essas malditas crianças vivem entrando aqui e me perturbando. – ele aproximou-se de Zâner. Colocou o lampião que carregava no chão e bagunçou o cabelo do garoto.

Zâner observou-o nos olhos e os dois se encararam por alguns segundos. Anna e Daniel mantinham-se imparciais, observando os dois. Os olhos do velho brilharam.

- Não pensei que encontraria outros como eu... – o velho sussurrou. – Somos muito raros, sabia, garoto?

- Do que estão falando? – perguntou Anna, exasperada. – Precisamos encontrar Thales!

- Sigam-me imediatamente! – o velho ordenou, pegando o lampião e puxando Zâner pelos braços.

- Ei! – reclamou Daniel, mas o velho já estava a passos de distância. Andava com tamanho vigor que Anna ou Daniel tiveram dificuldade de acompanhá-lo.

- Sabe onde podemos encontrar Thales? – perguntou Anna, andando pela escuridão, tentando acompanhar o velho.

- Sou eu, sua fada estúpida! – ele disse sem diminuir o passo. – Por acaso conhece alguma outra fada que tivesse a ousadia de escrever em uma pétala de rosa?

Após andarem mais algum tempo, finalmente chegaram até um quarto. O lugar era iluminado por lampiões dispostos estrategicamente na frente de espelhos. Uma infinidade de livros espalhava-se por todo o chão; papéis iam para todos os lados, rabiscados, cheios de cálculos e teorias. No entanto, uma coisa ali chamava mais a atenção do que todo o resto: uma caixa amarela, cheia de furos, pequena e brilhante.

- Eu já descobri como voltar para lá há muito tempo atrás – Thales disse, largando o lampião em qualquer lugar e correndo aos seus papéis. – Os cálculos já estão feitos, a matriz já está montada, tudo, tudo, tudo...

- Então por que ainda está aqui? – perguntou Anna, apreensiva.

- Energia! – ele gritou, sobressaltando a todos. – Não tinha energia suficiente, nunca pensei que teria. Mas esse menino, ele é... ele é igual a mim! Como vocês acham que conseguiram sair daquele lugar? Se esse menino não estivesse entre vocês, nunca iriam conseguir sair!

- Nós construímos uma máquina... – disse Daniel. – Conseguimos sair graças a magia fresca de Anna...

- Besteiras! – Thales exclamou. – A menina pode ter doado a energia necessária para fazer a máquina funcionar, mas vocês nunca sobreviveriam a uma saída tão brusca se não fosse a força do menino!

- Como tens tanta certeza de que ele é como você? – perguntou Daniel, abraçando Zâner, preocupado.

- Os olhos dele fustigam energia! – Thales estava animado. – Suponho que, assim como eu, ele se transformou em um animal quando foi capturado. E, como não tem consciência de seus poderes, não conseguiu se transformar em fada novamente, estou certo?

- Ele é uma criança, é por isso que se transformou em um gato! A mágica dele ainda não está completamente acertada no corpo! – Daniel tentava justificar todos os acontecimentos de seu filho.

- Ele transborda energia, sua fada estúpida! Vamos, não podemos perder mais tempo. – correu até o armário e pegou um pote. Abriu-o, distribuindo um tipo de fruta seca para cada um. – Tomem, cada um coma um desses. Irá impedir que se esqueçam de tudo o que sabem. Aquele lugar e aquela criatura são traiçoeiros, não se esqueçam disso.

- Como vamos conseguir resgatar as outras fadas? – perguntou Anna, mastigando a fruta. Tinha um gosto horrível.

Thales abriu a caixa amarela que estava sobre a mesa. Depois cortou o dedo com um canivete e, antes que Daniel pudesse impedi-lo, puxou Zâner e também cortou-lhe o dedo. O sangue dos dois pingou no recipiente.

- Se todos os meus cálculos estiverem corretos, acho bom que se segurem. A viagem não será agradável.

O vento começou a soprar os papéis da sala para todos os lados. O chão estremeceu e as luzes do lampião de súbito se apagaram. Os quatro foram sugados pelo portal aberto dentro daquela caixinha amarela, diretamente para o cativeiro do monstro.

*

Ela não sabia onde estava. Abriu os olhos de súbito, acordando assustada. Não se lembrava do que havia acontecido na noite anterior.

Então o gosto amargo da fruta seca a fez lembrar-se de tudo. Um gato, um homem e uma águia jaziam desacordados aos seus lados. Estavam de volta ao cativeiro do monstro.