A menina não sobe mais em árvores
Nos dias nublados, a menina gosta de subir até o seu balanço no galho mais alto da cajaraneira, porque dali pode saber tudo sobre histórias reais.
Vó Chiquinha chama porcos e galinhas com um "cuxe, cuxe", um "tico, tico, tico". Vaidosas, elas não querem molhar a plumagem e logo se empoleiram, ao ouvir do Vô Joca que o pai da coalhada anuncia um pé d´água. O porco Joaquim, coitado, que ficou surdo com o barulho da bigorna do Janúncio, nesse dia não voltou ao chiqueiro. Nem nesse dia nem nunca mais. Dizem que anda de bicicleta na Granja do seu Ramiro, entregando cartas nas redondezas.
Um vento azulzinho de anil, passa correndo, vindo da casa de tia Maria e assobia a música preferida dela:
"Seu Zé Paraíba / Seu Zé das 'criança'
Foi pro Paraná / Cheio de esperança
Levou a 'muié' / E seis barrigudinhos
Pedro, Joca e Mané / Severina, Zefa e Toinho...
No norte do Paraná / Todo serviço enfrentou
Batendo enchada no chão / Mostrou que tinha valor
Dois anos de bom trabalho / Até cavalo comprou
(...)
Se nordestino é pesado / É do ofício cavar
É como diz o ditado: / 'Corda só quebra no fraco
Deus quando dá a farinha / O diabo vem e rasga o saco'
Aquele fogo maldito / Que o Paraná quase engole
José brigava com ele / Acompanhado da prole
Vosmecê fique sabendo / Que José nunca foi mole
Depois de tudo perdido / José voltou pro ranchinho
Foi conferir os 'menino' / Tava faltando Toinho
Voltou em cima do rastro / Gritando pelo caminho
Cadê Toinho...
Cadê Toinho..."
A libélula gigante transporta o sapo-cururu que vai pra festa no céu e desce pra descansar um bocadinho na folha enferrujada da bananeira que caiu de fraca porque tomou clorofila e foi dormir na sombra. Todos os vagalumes da comitiva que alumiam o caminho também apagam as luzes e se deitam, observados pelos olhos enormes dos girassóis que usam relógios atrasados e pensam que ainda é dia.
Uma rodilha de cobras cascavéis cai dentro da rede do irmão pequeno e a menina a retira com um pau e as mata bem matadinhas. Se arrepende quando percebe que elas vão ter filhotes e lhes devolve a vida. Mas antes, pede que elas não venham mais assustar o irmão. Se teimarem, vão morrer de verdade, porque dessa vez não sobrou nada da varinha de condão. A mãe usou os pedaços como gravetos para acender o fogo de lenha.
Antes do café da manhã, a menina e os irmãos comem o sereno da noite misturado com orvalho, cebola branca, asas de anjos de açúcar, pedacinhos de estrelas cadentes e migalhas de lua cheia. Assim, garante a mãe, os meninos não morrem afogados no riacho. Nem também de bexiga, ou de sarampo e muito menos de papeira e mau-olhado.
A vaca malhada mastiga e remastiga uma moita de mastruz e espera deitada enquanto ouve uma cantiga pra boi dormir, que o pai venha tirar o leite que vai curar a perna da ovelha Belinha e o braço quebrado do primo Davi. Quando o tio Amor mata a Belinha pro casamento da Rita, encontra a linha verde-escuro que costurou o osso da ovelha. O Primo David ainda vive até hoje.
A rouxinol, que fez seu ninho na cabaça pendurada no brabo da cozinha, (o que tem pregada a foto desbotada do Jânio com a Vassoura) vem reclamar chorosa que o gato mourisco comeu todos os seus filhotes recém-nascidos. O pai castiga o gato e o faz virar o biscuit que enfeita o petisqueiro e ainda é obrigado a vigiar para que os ratos não comam a compota de goiaba. Os rouxinóis, consolados, namoram no pé de juazeiro.
A menina sabe que a palavra aluno, que a professora Terezinha pronuncia na escola dos meninos grandes, não é outra coisa senão uma plantação enorme de guarda-chuvas feitos com papel prateado de carteiras de cigarros, que pendem vertiginosamente do teto da sala da casa de dona Cléa e encandeam os olhos.
Seu Nonô passa com um balaio de pão doce, cuscuz e solda preta. A menina bebe todos os cheiros dos acepipes e os guarda consigo ainda hoje. Seu Nonô passou a vender pamonha, chouriço e cavaco chinês. Desconfiado, se benze todo quando passa na estrada e não chega nem perto da casa da menina.
Uma nuvem em forma de elefante passa rente ao pé de favela e fura a barriga. Chora tanto que rega a horta de cebolinha da mãe e a plantação de milho, feijão e melancia do seu Emídio. É consolada pelo sol, que abre o olho e a convida pra brincar de pintar arco-iris até o céu ficar escuro e acabar toda a tinta.
O calango verde e gordo come todos os melões caetanos enroscados nos arames da cerca e a mãe quase morre de susto quando o encontra bem amarelinho dentro do jerimum que cozinha pro jantar. Ele foge apressado, cai dentro da tina de novelos de fios da tecelagem e sai verdinho da silva de novo.
O beija-flor entra apressado pelo ouvido da menina e sai pela sua retina, indo comer o mel na flor do algodão e da chanana. A menina, por isso, só gosta das flores vivas. Para ela, receber flores arrancadas do pé é o mesmo que ganhar arame farpado. E arame farpado para ela é algo que machuca.
A mãe reclama: Menina, já é noite e vai chover. Desça já daí e entre pra dentro, senão você vai virar poeta feito seu pai. Você não me ouve, menina?
A menina ouve.
A menina desce.
A menina ouve e desce e entra
A menina ouve, desce e entra e se arrepende.
O pai continua poeta.
A menina não sobe mais em árvores. Constroe castelos lúdicos e com cacos de espelhos d'água monta novas histórias