Enseada - Capítulo I
Assim que coloquei os pés naquelas areias mágicas e encantadas senti um arrepio a me correr pelo corpo, ainda posso perceber a intensidade de seu olhar a queimar em mim. Era uma pequena menina a observar de longe, estava meio escondida atrás de uma das rochas à beira da praia, pude notá-la ao mesmo tempo em que tentara se esconder, mas era tarde. Os belos olhos verdes me prenderam a atenção.
Quando se diz que os olhos são os espelhos d’alma, tenho que concordar. Naquele momento vi toda a alma daquela “colleen” *. Sentia toda dor e mistério que rondava a pequena enseada.
Percebia uma mensagem naquele olhar intenso, ela me chamava através de sua mente para segui-la por entre as trilhas à nossa frente. Confesso não sentir medo de nada, ou pelo menos, quase nada. Mas senti neste momento e, não sabia se minhas pernas teriam forças para ir adiante, um pouco zonza, como se estivesse sendo atraída sem chance de escapar, acompanhei-a pelo caminho mesmo assim.
Os arrepios não cessavam e a vertigem ainda me dominava, enquanto mais adentrava pela exuberante mata, mais sentia que sua energia aumentava.
Ela seguia, às vezes olhando para trás e me observando, com um leve riso nos lábios.
Levou-me até uma grande árvore, uma protegida e encantadora árvore que parecia ser o centro daquela mata ainda intocada. Um carvalho milenar, que movia seus galhos delicadamente como um sussurro. Mostrou-me um lugar onde me sentasse, ela não me diria nada, pelo jeito como agia alguém mais estaria ali para desvendar aquele mistério.
Sim, após alguns minutos, realmente alguém mais apareceu. Movia-se lentamente, vestia uma espécie de capa com capuz, não era possível que visse seu rosto, ele andava meio curvado, parecia ter muita idade. Quando ouvi aquela voz rouca, mas segura do que dizia estremeci novamente.
Ele me chamara pelo nome, dissera para que o acompanhasse até a entrada de uma gruta que ficava próxima dali, lá poderia me explicar tudo. Até mesmo o motivo de ter sido chamada à ilha.
Chamada como? Tudo bem que havia sonhado com aquela ilha algumas vezes, mas nunca fui chamada até lá! Isso estava ficando muito estranho.
Tentei dizer isto a ele. Mas a menina pressentindo o que ia fazer ergueu uma das mãos levando-a aos lábios como se fizesse sinal para que ficasse em silêncio. No que atendi prontamente, ainda intrigada.
A voz forte desta pessoa não parecia lhe pertencer, sentia que vinha de todos os lugares e ao mesmo tempo de lugar algum. Não combinava com sua estatura franzina e encurvada. Não parecia ser tão velho assim, mas a voz rouca aumentava sua intensidade de acordo com o que ia dizer. Fazia um tom solene e não mostrava de forma alguma o rosto. Percebi que ele crescia enquanto profetizava suas palavras, inteligíveis para mim, mas que pareciam ter grande poder. Até as aves que cantavam alegremente pela mata não ousavam deixar ecoar seu belo canto neste momento, como se respeitassem o ritual que presenciavam. Mais tarde, vim saber, que era um truque usado por druidas que ali existiu um dia.
Não sei dizer quanto tempo fiquei com eles, em uma espécie de transe fui levada a terras distantes, lugares onde tenho certeza nunca haver pisado antes. Pelo menos, não nesta vida.
Presenciei a guerra, o massacre de um povo e percebi que em meio a toda aquela confusão, eu segurava nos braços uma pequena criança, uma linda menina a quem, no momento do perigo, dei um colar de água-marinha. Ela tinha pouca idade, hoje não saberia dizer qual, não precisava usar palavras com ela, apenas nossos olhos expressavam o que deveria ser dito. Transferíamos uma para a outra, mentalmente, todo conhecimento que possuíamos. Sua pouca idade não significava ter vivido menos que eu e nem pouca sabedoria. Ao contrário, ela era uma pequena sábia da vila onde morávamos.
A cada momento vivido ali, uma surpresa chegava repentinamente, homens sendo arrastados, cruelmente mortos por bárbaros cavaleiros de tribos distantes que saqueavam e destruíam tudo o que viam pela frente. Não poupavam ninguém, idosos, mulheres, crianças e, principalmente, os homens. Pareciam estar à busca de alguém, olhavam em todas as casas e não sossegavam. Intuindo que seriamos as próximas a passar pelo fio cortante de suas espadas, ela passou-me o significado de viver naquelas terras, a história de uma vida de amor, aprendizado e conhecimento recolhido por séculos.
Só não sabia que seria ela a perecer naquele momento, eles a queriam. A profecia estava começando a se realizar, ela estava com momentos contados e, eu Merenwen, seria sua sucessora. Cuidaria daquele valioso legado.
A Banshee** começa a profetizar palavras encantadas e envia-me a terras distantes onde estaria protegida. Neste novo lugar, não iria parar nas mãos daqueles brutais homens, protegendo assim, nossos costumes e segredos. Vi-me sozinha naquela ilha, atordoada, sem saber o que fazer, mas ali sentia-me segura.
Cansada e ainda assustada com tudo o que presenciara, caí em sono profundo e fiz a viagem astral até onde poderia reencontrá-la aprendendo mais preparando-me para o futuro. Encontrei-a vestida como a sacerdotisa primeira, aquela a quem devíamos respeito e obediência. Trajada com um pesado manto, sua aparência já não era a mesma da criança da vila. Agora, tornara-se uma belíssima mulher, cabelos longos e negros, olhos verdes e profundamente fortes. Cada gesto seu cheio de segurança, firme, porém suave. Quando se movia emanava de si um delicioso e inebriante aroma de jasmim.
Fez um gesto para que me sentasse à sombra de uma grande árvore, foi ai que notei o carvalho. Seria impossível não percebê-lo, era imponente, o senhor de todas as árvores ali existentes. Ambas estávamos conversando através de telepatia, não havia motivo para palavras soltas ao vento. Um aprendizado como este só interessava a nós, as guardiãs de uma tradição. Era regra não passar a outros nossos costumes, somente a quem era delegada a missão.
Não sei quanto tempo durou este momento, a noite inteira seria pouco para a riqueza que me era ensinada...
Continua...
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*Colleen = menina
**Banshee = espírito feminino/ fadas = cultura celta.
***Água-Marinha = A pedra da regeneração da aura e da alma.
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