Sobre Anjos e Homens - 6ª parte

Depois de atravessar a escola inteira, chegou ao seu canto escuro predileto. Encostou as costas na parede e foi escorregando de vagar, como a lágrima que escorria pelo seu rosto. Sua respiração era ofegante, ela puxava o ar com força e o soltava com a mesma intensidade. O coração... Doía. Já sentada no chão, olhava pro nada que estava à sua frente e chorava como sempre fez. Fechou os olhos e lembrou-se das milhares de cenas que desde os quatro anos imaginava.

Após minutos, que mais pareciam horas, imaginando, sentiu que havia a presença de alguém. Abriu lentamente seus olhos, e constatou que sua intuição estava certa.

- Mayara é seu nome, se estou certo.

- É – ela disse, um tanto quando surpresa – quem é você?

- Aquele que tem a mesma maldição que você. Por outra pessoa, obviamente. Eu era de uma ordem diferente, mas era um anjo também. Há muito mais tempo que você.

- Então voc...

- O décimo primeiro. Não responderei a mais perguntas, vamos andando, há muito a aprender, de sua parte.

- Mas...

- Não fale. Não sei por que, o número treze nunca me trouxe sorte. Mas parece que você é o número treze que mais vai trazer problemas.

- Posso pedir desculpas, já que lhe trago azar?

- Sou-lhe grato.

- Grato? Acabou de dizer que eu sou azar.

- Eu estava precisando de um pouco de emoção mesmo. Isso aqui está chato faz tempo. Quinhentos anos perseguindo uma mulher que, ao decorrer deles, uma vez só soube meu nome.

- Como?

- Hahahahahaha – ele riu – Deus, olhe por esta menina que mandas! Sabe que vocês dois vão viver “juntos” pela eternidade, não?

- Sei.

- Pois é, meu amor é a pessoa mais pecadora que já conheci. Se depender do que ela comete em uma só vida, vai encarnar pela eternidade.

- Encarnar?!

- Tem coisas que precisa aprender. Não irá tardar para acontecer, fique tranqüila.

- Perdoe-me, mas nada estou compreendendo. Para começar, com...

- Já disse, sem perguntas – ele disse friamente, enquanto caminhavam pelo jardim de inverno do colégio.

A caminhada parecia um tanto quanto vazia, para quem apenas passava os olhos sem interesse, o que se faz sempre. O que não era verdade. A caminhada era tão profunda que eles poderiam atravessar o chão com os pés e chegar ao lugar onde já viram de perto.

A garota olhava seus pés caminhando pelo solo, andando docemente. Se estivesse em sua forma real, não os usaria, tão pouco o solo. Saudades ela tinha de muitas coisas que uma “vida” de anjo pode trazer, e ódio ela tinha do que uma vida de mortal pode lhe trazer, inclusive, o ódio.

As suas horas restantes na escola passaram tão rápido que parecia que no instante seguinte ela estava em casa, com um pedacinho de papel de caderno na mão. Nele, havia um endereço escrito à tinta azul escura, numa letra quase que totalmente ilegível.

Largou sua mala no sofá da sala e foi em direção ao seu quarto. Não almoçou, pois não estava com fome. Apetite era um sentimento tão nobre que, agora, era dispensável. Ela estirou-se no chão gelado, e olhou para as sombras que dançavam no teto do quarto, pensando em coisas que não tinham coerência alguma.

Pensou em tudo. Tentou resgatar na memória as vastas lembranças de tudo, de como o conhecera, até o último momento mais marcante em que falara com ele. Momentos marcantes não são, necessariamente, momentos bons. Acabou caindo no sono, e sonhando.

Era uma tarde de inverno ensolarada. A luz do sol entrava pela janela totalmente aberta, mas os raios eram filtrados pela cortina entreaberta. O vento que batia nas folhas era ouvido ao longe, e parecia cantar em tons encantadores e fascinastes. As vozes das crianças de quatro anos brincando também faziam o ambiente, e eram um tanto quando irritantes, para quem não participava da brincadeira.

Uma pequena garotinha no canto da sala não fazia absolutamente nada. Ela estava sentada no canto, recolhida com a dor. Era possível ver em seu olhar. Assistia a todas as crianças brincarem, como uma mera expectadora que nada quer fazer, apenas uma analisadora do comportamento humano, parecia-me. Tinha cabelos castanhos e compridos, que iam até a cintura. Seus olhos eram amedrontadoramente castanho escuro, e observavam cada movimento em falso, como alguém que nunca tinha vivido e estava só assistindo, para aprender a fazê-lo.

A professora apontou o lado de fora da sala, e todas as crianças saíram correndo da sala, largando seus brinquedos, largando suas antigas brincadeiras e aventuras para começar novas, do lado de fora da classe.

A garotinha foi a última a sair da sala, a que fechou a porta e a única que teve cuidado para descer a escada, mas que não sabia, também, o que era cair de uma. Dirigiu-se ao balanço, e lá sentou, mas não para balançar, e sim para ter uma visão mais confortável, ampla e isolada dos acontecimentos. O balanço ao seu lado estava vazio, obviamente, já que ela era a única criança que brincava nele.

Viu um menininho aproximar-se dela. Olhando-a fixamente, como se fosse um novo lugar inexplorado. Ficou parado à sua frente por alguns instantes, ainda estudando-a com o olhar. Ela, por sua vez, apenas examinava-o no fundo dos olhos, apesar de mal saber falar o português, sabia que havia alguma coisa que a levava lá para dentro da alma dele.

- Você não vai brincar?

- Eu não sei.

- Não sabe brincar?!

- Não, nunca me ensinaram.

- Quer que eu te ensine?

- Você não vai gostar de mim.

- Eu nem sei nome, não posso gostar de você ou não. Quer brincar comigo?

- Você deixa?

- Aham, não gostam de mim, então, eu tenho que gostar de você.

Ela apenas sorriu. O garoto dirigiu-se à balança ao lado, e eles ficaram se olhando, ainda tentando se conhecer apenas pelo olhar.

- Qual é seu nome?

- Mayara, e o seu?

- Rodrigo.

Ela apenas sorriu, de novo.

- Por que você não brinca?

- Oras, eu não sei. Já te disse.

- Você não tem amigos?

- Pra ter amigos, você tem que brincar. Eu não sei brincar.

- Vem aqui, eu te ensino... Aí, você pode ser minha amiga, pra sempre.

O garoto desceu do balanço e puxou a menina pela mão. Ficou segurando a mão dela por alguns segundos, enquanto a levava para um local coberto, um tanto quanto longe do sol e do alcance dos olhares de qualquer um.

Quando pararam, ele soltou a mão de garota e parou à sua frente, estudando-a pelos olhos, novamente.

Algo o qual a garota não sabia o que era invadiu seu coração e sua mente, a levando para bem longe dali. Ela olhava fundo nos olhos do menino, e isso começou a amedrontá-la. Na verdade, ela não sabia muito bem o que estava acontecendo com ela. Era tudo tão confuso, tão desconhecido. Ela não sabia mais de nada.

De repente acordou do sonho, assustada. Seu coração estava extremamente acelerado, e as lágrimas corriam pelo seu rosto novamente. As lembranças vieram à tona, e, agora, ela se lembrava de muita coisa. Mas, do final dessa história, ela não sabia.

Levantou-se do chão e abriu seu armário. Pegou o sobretudo que havia ganho de aniversário de sua avó, dois anos antes, e uma blusa preta com capuz. Colocou-os por cima da roupa e saiu de casa, sem ser notada por ninguém.

Débora Dias
Enviado por Débora Dias em 23/06/2009
Código do texto: T1663973
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