OUTROS TEMPOS

Uma fada foi contratada para tomar conta de duas crianças, enquanto seus pais se divertiam. Ela estava realmente precisando de grana e achou oportuno fazer aquele bico. Ela mesma vai nos contar detalhes daquela noite passada com os pequenos. Vamos ouvir?

Ao certificar-me do endereço, bati na porta. Uma voz masculina convidou:

- Entre!

Eu entrei? Claro que não! Tive medo de que fosse a voz do Lobo Mau. Fui convidada para a casa de crianças. E aquela voz me pareceu de adolescente. Fiquei lá fora, indecisa. Alguns instantes depois, a porta se abriu e apareceu uma garotinha:

- Quem é você?

Antes de respondê-la, olhei pra dentro. O irmão brincava a um canto. Ao notar a minha presença, largou o brinquedo e veio correndo, perguntando também.

- Quem é você?

- Sou a fada que o Programa 1º Emprego enviou para cuidar de Paulinho e Mara. São vocês?

- Somos!

- Com licença.

- Entrei. Deixei minha mochila sobre uma cadeira e comecei a examinar a sala. Que horror! Não era o que se podia esperar de uma família classe média alta, pensei, chegando à conclusão de que a quebradeira é geral mesmo. O garoto interrompeu os meus pensamentos.

- Você é uma fada?

- A menina nem me deu tempo de responder, pois foi logo fazendo uma observação curiosa.

- Uma fada com essas roupas? Não foi isso que lemos nos livros!

- Sou moderna, crianças! E na crise em que estamos, uma fada não pode mais sair dos livros infantis como o autor quer.

- Você também não usa coroa...

- Fiquei danada, mas me calei. Afinal, fui lá para contar historinhas, não para perder a paciência.

- Minha coroa está no prego na Caixa. E cadê grana para tirá-la de lá? Também, andar com jóias é arriscado. A cidade está cheia de marginais.

- Enquanto as crianças se afastavam cochichando, um pensamento atravessou a minha mente: estou desconfiada de que existe por aí alguma escola de formação e aperfeiçoamento de marginais – EFAM -. A cidade ficou violenta demais. Qualquer hora vou visitar o meu amigo Augusto Comte. Quero ver se ele me explica essa transformação que ocorreu na “vida urbana”. Agora, se por acaso calhar de no dia da visita o tal Karl Marx estiver por lá, volto correndo para casa. Não quero me complicar.

- Fada, você nos leva para conhecer a Floresta Virgem?

- Não é Floresta Virgem não, menino! É a Floresta Encantada!

- É essa... vamos?!

- Pirou? Pirou de vez? Vamos é ficar aqui mesmo, sem botar o pé na rua!

- Por quê? – quis saber a menina.

- Por muitos motivos. 1º: a floresta a esta hora da noite está infestada de assaltantes. A cada esquina um pula na goela de alguém. 2º: com esse negócio de crise de energia elétrica, houve corte no fornecimento, provocando um apagão. Nem vaga-lumes tem mais. Os poucos que restam estão sendo aproveitados como fonte alternativa de energia. Portanto, crianças, daqui não saio.

- Podemos chamar a polícia!

- Que polícia, menino? Esqueceu da greve? Olha a rua! Veja! Está completamente deserta... de polícia.

- Então conte a história de Alice no País das Maravilhas!

- “País das Maravilhas”! Tá brincando! Não tem lido os jornais? Não existe mais o “País das Maravilhas! Depois que houve a invasão americana, Alice está sendo julgada nos EUA.

- E Branca-de-neve? Como era mesmo aquela história?

- Branca-de-neve? Branca-de-fome, a coitadinha!

- O desemprego chegou também para os Sete Anões. Não pensem que eles saíam para o trabalho todo dia, deixando Branca-de-neve tomando conta da casinha, não! É mentira! Dadas as circunstâncias, Branca-de-neve foi obrigada a sair de casa às 5 horas da matina pras filas do SINE. Os anões, coitados, eram metalúrgicos e por causa da crise(?) na indústria automobilística, foram despedidos. Receberam o FGTS, é claro, mas um belo dia alguém bateu à porta. Assustados, eles perguntaram:

- Quem é?

- Do lado de fora, uma voz grossa ameaçou:

- Abra senão eu arrebento esta porta!

- Tremendo de medo, os anões foram abrir a porta. Havia do lado de fora um monstro terrível, que assusta todo mundo, chamado Imposto. O monstro avançou casa adentro e lap, papou todo o dinheiro deles.

- As crianças recuaram, com os olhinhos arregalados.

- Por falar em Branca-de-neve, ela gostava muito de ler, mas nos últimos tempos parou de comprar livros. Com razão. Como pode um livro custar uma fortuna dessas? Mas ela dava uma de esperta. Tomava livros emprestados nas Bibliotecas Públicas e não devolvia. Se devolvesse, arrancava capítulos inteirinhos e guardava para si. Um dia, folheando uma enciclopédia, viu escrito:

ÊXODO RURAL:

- Mais embaixo leu: “Saída do trabalhador do campo para a cidade, à procura de melhores condições de vida”.

Como ela não continuou a leitura, não ficou sabendo das conseqüências do êxodo rural. Arrumou as malas, virou a página do livro e viu escrito em letras garrafais:

MIGRAÇÕES

- Então ela partiu de trem, para fazer bonito, para dizer que a malha ferroviária ainda tinha alguma serventia. Foi para Brasília. Na despedida, os anões gritaram: “Até breve, amiga! Volte quando acabar essa tal de crise... ”

- E retornaram tristes pra casa. Ao chegar, encontraram debaixo da porta uma carta. Felizes, rasgaram o envelope, morrendo de curiosidade. Fazia tempo que não recebiam correspondência. Os amigos alegavam que ficou caro botar carta nos Correios. Uns pães-duros! Não queriam gastar. Esta é a verdade.

Os anões quebraram a cara. Aquela era uma carta de amigos sim, mas amigos da onça. Os coitadinhos não conseguiram suportar o reajuste do aluguel de acordo com a “vontade” do proprietário e foram despejados.

- Em determinada hora, já bastante cansada, resolvi me sentar um pouco. Perto de mim havia um bloco de papel. Peguei-o e comecei a fazer umas continhas. Curioso, o menino quis saber:

- Mara, o que a fada está escrevendo naquele papel?

- Ela saiu na ponta dos pés, chegou por trás de mim e olhou. Voltou correndo e ouvi-a cochichar.

- Paulinho, tem um número grandão escrito em cima, um “x” no meio e outro número bem grande embaixo.

- Ele, achando que estava anunciando o fim da guerra no Iraque, gritou:

- Já sei, Mara! Ela está calculando a dívida externa do Brasil!

- Aquele menino era mesmo muito esperto. Ouçam:

- Fada, se Branca-de-neve foi para Brasília ser Funcionária Pública, Alice está sendo julgada nos Estados Unidos ou está escondida em alguma caverna no Afeganistão. Não existe mais o Lobo Mau e a floresta está infestada de marginais, então está tudo acabado merrrrmo (falou com sotaque carioca).

- Para calar de vez a boca daquele garoto, falei. sacolejando as mãos para o alto.

- Aí é que você se engana! Nem tudo está acabado! Ainda tem a novela das 8 da Globo. E com licença que já são 9 e cacetada e a novela já está começando.

2ª parte

THE DAY AFTER

De manhã, após a chegada dos pais das crianças – Paulinho e Mara - a fada decidiu ir a pé pra casa. Estava satisfeita por ter recebido a grana do 1º Emprego.

- Agora vou pegar a fila do Fome 0. Só estou na dúvida se a fila começa no Oiapoque e termina no Chuí ou se começa no Chuí e termina no Oiapoque.

Virando a esquina, ela viu uma multidão. Entrou em pânico:

- Meu Deus, é um tiroteio!

Pensou em entrar correndo numa loja. Estavam quase todas fechadas.

- Era só o que faltava! A crise econômica deu o toque de recolher nas lojas!

De repente ela viu um repórter com um microfone na mão e uma mulher falando.

A fada percebeu que era uma entrevista e se tranqüilizou. Foi passando indiferente, quando ouviu a mulher dizendo:

- “A vida do brasileiro comum está de amargar para aqueles que sentem inveja da “felicidade” dos outros”.

Isto chamou a sua atenção. Ela parou no meio dos curiosos e ficou de butuca. Deu azar porque a entrevista já tinha terminado. Intrigada, perguntou ao repórter:

- Qual é a matéria?

- Vamos passar daqui a pouco no VOCÊ MAIS. Aquele programa que serve almoço às 8h30min da manhã.

- Adianta pra mim o tema. Quero ficar up-date.

- É sobre a situação do brasileiro que luta...

- O quê? Mandaram os nossos homens pro Iraque?

- Não! Do brasileiro que luta pela sobrevivência.

- Ah! O sr. me assustou mais do que o aluguel mensalão que pago.

- Aluguel o quê?

- Um aluguel maior do que o túnel que liga Ancara a Brasília.

- Peraí? Existe um túnel que liga Ancara, na Turquia, a Brasília?

- Se a geografia não tiver mudado de partido, quer dizer, mudado a ordem natural das coisas, Ancara continua na Turquia.

- Tá de brincadeira com esse negócio de túnel!

- Falo sério! Não vão mudar o curso do rio São Francisco? O túnel foi construído com recursos do...

- Calma aí! Você tá me confundindo!

Ela concluiu calada:

- Pensei que repórter fosse mais inteligente!

- Vem cá... explica esse negócio do túnel.

- Rapaz, tô um pouco atrasada, precisa pegar a fila do Fome O.

- Coopera! O povo precisa saber...

- “Tô me lixando pro povo”, já dizia aquele catador de papel, amigo meu, mas como eu estava dizendo, o túnel foi construído com recursos do...

O repórter interrompeu-a com um gesto e disse pro colega que enrolava a fiação dos equipamentos.

- Já tô indo!

- Quer ouvir ou não? O túnel atravessa Hamburgo na Alemanha e a estação final é na Praça dos Três Poderes em Brasília

- Rápido! Meu colega tem que editar a entrevista.

- Também estou com pressa, senão iria te contar coisas dos Palácios, do Planalto, dos Castelos, das enchentes do Nordeste, da seca do Sul... Enfim, das regiões brasileiras.

O colega do repórter acabou de enrolar a fiação e gritou entrando no carro.

- Se a gente demorar mais aqui, Maria Ana Agarb vai ficar falando sozinha com o Periquito Jãozim.

- Tchau, menina! Fica pra outra vez.

A fada ficou chateada. Queria falar mais da geografia-monetária, aquela matéria que trata das cidades e gastos. O repórter não pôde esperar.

A multidão começou a se dissipar. Ela se lembrou do compromisso de pegar a fila do Fome O. Perguntou a um rapaz moreno, todo dark, todo acorrentado, que usava um tênis de uns 900 e poucos reais e comia um pastel-de-vento (é, aquele pastel sem recheio).

- Aí véi, onde a gente pega a fila pro Fome O? É no Oiapoque ou no...

- Não tem fila não, mina! Você tem que ir ali, naquele Ministério, e se cadastrar.

A fada não gostou da idéia. Contudo, dirigiu-se para o local. Chegando lá, teve uma surpresa. Estampada na porta da repartição havia uma placa enorme, escrita até em braile e à prova de balas: ‘NÃO ESTAMOS EM GREVE”

P.S. – se você quiser ler na íntegra a entrevista que a mulher estava concedendo no momento em que a fada passava, leia UM LUGAR IDEAL.