Plano de Fuga (I de III)
Ela não sabia onde estava. Abriu os olhos de súbito, acordando assustada. Não se lembrava do que havia acontecido na noite anterior. Lembrava-se apenas do coração batendo rápido demais e a respiração ofegante. Sim, era isso. Ela estava fugindo de alguma coisa, ou de alguém. As lembranças eram turvas e nebulosas demais para que ela pudesse colocá-los em ordem.
Levantou-se lentamente, sentindo o corpo inteiro doer. Onde diabos estava, por todos os deuses? Esfregou os olhos, olhando para cima. Via, no céu, pontos de luz branca que pareciam sóis. Contou dez, pelo menos. Mas, mesmo com toda aquela claridade, o lugar parecia lúgubre e soturno.
- Olá. – disse uma voz asmática e envelhecida.
Os pelos da nuca dela levantaram-se. Virou-se, assustada. O som daquela voz pareceu-lhe hostil demais; no entanto, a curiosidade de descobrir seu interlocutor foi maior do que o medo e o instinto de correr dali o mais rápido possível.
No fim, não havia motivos para medo. Quem falava era um velhinho de barbas cheias e acinzentadas. Tinha os olhos remelentos e um sorriso amarelado e sustentava-se de pé graças a uma bengala de madeira. Ao seu lado, um gato aninhava-se entre suas pernas, miando baixinho.
- Olá. – ela respondeu automaticamente, deixando de lado toda a dúvida e medo para dar lugar à boa educação.
- Como te chamas? – ele perguntou, coçando o queixo.
- Anna. – respondeu. – E você?
- Daniel.
O gato correu até as pernas de Anna para analisá-la. Cheirou-lhe os pés e logo correu de volta ao seu dono. Anna podia jurar que o vira sorrindo, mas logo esqueceu da ideia. Gatos não sorriam.
- Ele gostou de você. – disse Daniel. – Se chama Zâner. É meu filho.
Ela estranhou, franzindo o rosto.
- Antes de chegarmos aqui ele era um meninote muito do esperto. Mas quando chegamos, por algum motivo ele se tornou um gato.
- O senhor está falando sério? – ela perguntou, com um meio-sorriso no rosto. Até o momento, achava que ‘filho’ não significava nada além de um título que um velho solitário dera a seu bichano de estimação. Mas, ao que parecia, aquela bola de pelos era realmente o filho do velho Daniel.
- Certamente que estou, menina. – ele disse. – Por acaso sabes como chegaste aqui?
- Não faço ideia. Pode-me dizer onde estamos, para começo de conversa?
- Ah, se eu soubesse disso seria o homem mais afortunado desse lugar! – ele sorriu antes de continuar. – Não somos os únicos aqui, se te interessa saber. O acampamento não fica muito longe.
- Então o que está fazendo andando por aqui?
- É minha vez de procurar por lenha. Vamos, me ajude! Assim chegaremos mais rápido ao acampamento.
Mesmo com todas as dúvidas e desconfianças, ela aceitou ajudá-lo. Era melhor do que continuar ali, vagando sozinha naquele lugar estranho, onde não conhecia ninguém.
Colheram lenha rapidamente. Apesar do fato de que não havia sinal algum de árvores, o chão estava repleto por pequenos pedaços de madeira, como se um pássaro gigante tivesse se dado ao trabalho de criar um ninho por ali, deixando toda aquela madeira para os dois colherem. Em menos de dez minutos, Anna e Daniel estavam com as mãos repletas de lenha, o bastante para abastecer uma fogueira ininterruptamente por pelo menos dez dias.
- Há quanto tempo o senhor está aqui? – perguntou Anna, enquanto os dois seguiam seu caminho até o acampamento.
- Ah... – ele disse, perdendo o olhar em algum lugar distante. – Tempo demais, se queres saber. Quando cheguei aqui, nem barba tinha ainda! E olhe como já estou!
- E como veio parar aqui?
- Não faço a mínima ideia. – ele disse, sorrindo. – Já faz tanto tempo que nem mais me preocupo com os motivos. Só me preocupo em sair daqui o quanto antes.
- O senhor já tentou ir embora?
- Muitas vezes! Assim que cheguei aqui, tentei exaustivamente sair de qualquer forma que achasse possível. Esse lugar tem limites, e nosso acampamento fica perto de um deles. São muros gigantescos que parecem não ter fim. E já tentamos de tudo para derrubá-lo: usamos força bruta, inteligência, palavras mágicas, mas nada faz aquela maldita coisa cair. Parece que está colada ao céu.
- E já tentaram escalar o muro? – ela perguntou, curiosa.
- Até tentamos, mas é uma tarefa impossível. O muro é completamente liso. Não há nenhuma ranhura para nos segurarmos, e nada consegue perfurar aquilo. Então, é uma missão quase impossível.
Anna fez uma careta de frustração.
- Mas temos um plano novo agora, e tenho certeza de que esse dará certo.
Anna ia perguntar no que consistia o tal plano, mas, antes que o fizesse, os dois – três, levando-se em conta Zâner – chegaram ao acampamento. Anna arregalou os olhos, vendo que não eram necessárias mais perguntas para saber o que eles estavam tramando. A resposta estava bem ali, aos seus olhos.
Uma grande estrutura de madeira elevava-se a quase cinco metros de altura por três de largura. Todo amarrado com cordas e montado com madeira, a estrutura parecia delicada e precária. Em cima, três pás de madeira lisa giravam lentamente. Um homem encurvado, com aspecto de atarefado, dava um nó apertado em uma corda.
- Esse é o nosso novo equipamento de fuga. – disse Daniel, assim que chegaram. – Todo feito com derivados dessas madeiras que achamos: as cordas são feitas de fibras de madeira, as hélices são feitas de madeira lixada e cortada.
- Vocês pretendem... voar? – perguntou Anna, abismada.
- Exatamente. – Daniel respondeu, animado.
- E como vocês pretendem fazer isso... funcionar? A não ser que tenham feito um motor a base de madeira e um combustível a base de madeira, não sei como isso vai sair do chão.
- Quem és tu? – perguntou o homem que trabalhava no aparelho, limpando as mãos nas calças. – Daniel, quanto foste atrás da madeira estava só com Zâner. Quem é esta criança?
- Estava perdida, assim como nós. – ele respondeu. – Chame todos aqui. Quero apresentá-la. Acho que ela pode resolver o problema da máquina.
Antes que ela pudesse perguntar qual era o problema da máquina e como ela poderia resolvê-lo, todos já estavam ali. Eram homens em sua maioria – havia apenas duas mulheres no grupo – e todos pareciam incrivelmente envelhecidos, como se estivessem presos ali durante muito tempo. Olhavam para ela com olhos duvidosos e curiosos, como se a imagem de Anna lembrasse a eles de uma juventude esquecida há muito tempo.
- Como a achou, Daniel? – perguntou uma das mulheres, uma velhinha sorridente e animada.
- Ela simplesmente estava aqui, como todos nós. – ele respondeu. – Achei-a sentada perto dos limites do oeste.
- O que estavas fazendo lá, criança? – a velhinha perguntou.
- Não sei. Apenas estava lá. – Anna respondeu. – Vocês podem me dizer o que está acontecendo aqui?
- Já lhe disse, Anna, nenhum de nós sabe onde estamos nem porque estamos aqui. Mas estamos aqui, e temos que sair o quanto antes.
- E como eu posso ajudá-los?
- Traga a caixa, por favor.
Uma das mulheres entrou na tenda, saindo com uma caixa branca nas mãos logo em seguida. A caixinha brilhava intensamente, assim como os orifícios do céu.
- Essa é uma caixa de magia, Anna. – disse Daniel. – Veja bem: dentro de cada um de nós existe um pouco de magia, e é essa magia que vai fazer a máquina funcionar. Nós já estamos aqui há muito tempo, então nossa magia já não é mais tão poderosa nem suficiente. Mas, com você aqui, talvez consigamos. Sua magia é fresca, nova e poderosa. Se pudéssemos coletar apenas um pouco dela, talvez consigamos fazer a máquina funcionar.
- Como vocês pretendem sair daqui, caso consigam fazer isso funcionar?
- Segundo as escrituras de Thales, primeiro homem a habitar esse lugar, os orifícios no céu não são nada mais do que portais para o outro mundo. Talvez, se conseguirmos voar alto o suficiente, possamos sair daqui atravessando um desses portais!
- E a minha magia pode tirar vocês daqui?
- Não podemos subir todos de uma vez na máquina, mas se pelo menos dois de nós conseguirmos sair daqui, poderemos arranjar alguma forma de libertar os outros assim que possível.
- E como posso doar essa magia?
- É só concordar em doá-la. – disse Daniel.
- Tudo bem... – ela disse, olhando para todos, que tinham uma expressão apreensiva em seus rostos. – Eu concordo.
A mulher que tinha a caixa em mãos abriu-a, e logo Anna sentiu um puxão em seu peito. A energia, em forma de luz, passava de seu corpo para a caixa branca.
Assim que o fluxo de energia foi cortado do corpo de Anna, a mulher levou-a até a máquina. A caixa, ainda aberta, começou a despejar sua energia na estrutura de madeira. As hélices, no topo, começaram a se mover. A caixa desintegrou-se, dando sua energia integralmente para a máquina.
- Quem irá subir?! – gritou Daniel, vendo que as hélices começavam a rodar com maior intensidade e a máquina começava a se elevar.
- Subam você e a menina! – gritou um dos homens. – Se não fossem por vocês, nunca teríamos sequer a esperança de ir embora!
Sem pensar duas vezes – o tempo era escasso demais para se discutir questões diplomáticas – os dois sentaram-se na máquina. Zâner, assustado, pulou ao colo de seu pai, miando estridentemente.
- Nós voltaremos! – gritou Anna, ao ver que a máquina estava funcionando e que subia cada vez mais rápido. – Vamos encontrar alguma forma de tirar todos vocês daqui!
- Ficarmos esperando! – foi a última coisa que ela ouviu um dos homens dizer antes da máquina ser sugada por um dos grandes círculos brancos.
A máquina despedaçou-se em centenas de cacos com a força dos ventos. Os três voavam descontroladamente, mas logo tudo começou a equilibrar-se. Quando Anna percebeu, estava planando. Não tinha mais olhos, mas conseguia ver perfeitamente: dois pontos luminosos, que, assim como ela, voavam desenfreadamente. Foi quando ela percebeu que também era um ponto luminoso.
Olhou para baixo, vendo uma enorme superfície amarelada repleta de furos.
- Fadinhas, minhas fadinhas, já não lhes dou toda a madeira de que necessitam para sobreviver? Por que fogem de mim, minhas fadinhas?
Duas mãos do tamanho de casas pegaram e elevaram a superfície amarelada. Anna percebeu que era uma caixa imensa, repleta de furos. As mãos sacolejaram a caixa.
- Por que fogem de mim, minhas fadinhas?! Já me deram tanto trabalho para capturá-las, e ainda fogem de mim?! Por que fogem? POR QUE FOGEM?!
Anna voou para longe, assustada com aquela figura. Agora tudo estava mais claro: a memória voltara ao normal, e ela lembrava-se de tudo o que havia acontecido. Junto com Daniel e Zâner, voou o mais rapidamente que pode até a colônia de fadas mais próxima. Precisava alertar as irmãs e juntar forças para resgatar os que ficaram para trás. Havia dito que iria libertá-los, e cumpriria com sua palavra o mais rápido que pudesse. Não iria deixar as outras fadas nas mãos daquela terrível criatura.