Sobre Anjos e Homens - 5ª Parte

Rodrigo ficou parado enquanto a via correr. Ele disse aquilo por impulso, pois no fundo de seu coração sabia que a verdade era algo diferente.

O recreio acabou, as aulas continuaram. Ele não conseguia tirar a mente do que ele havia dito. Tinha vontade de se desculpar, tinha vontade de chorar, mas sentia que nada faria efeito algum. Contemplava de longe a beleza da garota, mentindo para sua consciência, dizendo que estava olhando para o nada.

Na última aula ele se condenava tanto que seu coração doía. O choro já estava tão preso que a garganta começava a doer, e a respiração se tornara bastante difícil. A dor do arrependimento era forte demais para ele suportar.

Abriu seu caderno em qualquer folha em branco. Começou a escrever o que suas mãos redigiam, não pensava. Uma lágrima caiu de seu rosto, e ele tentou escondê-la de qualquer um que pudesse vê-la.

Quando havia ocupado as linhas que achava necessário, dobrou a folha de papel. Parecia que sua mente estava em outra dimensão, perdida no espaço, longe da realidade que estava vivendo. “Fuja, qualquer lugar é melhor que este”, repetia para sua mente em prantos.

O sinal tocou, e a balbúrdia tomou conta do corredor dos segundos anos, como em todos os finais de aula. Pessoas gritando, conversando, brigando, discutindo, correndo. O momento perfeito para não ser notado. Ele conseguiu correr até a mala da menina e deixar o bilhete sem que ela percebesse que ele havia chegado perto.

Saiu do colégio pelo mesmo lugar de sempre, e se perguntou qual seria o rumo que seus pés tomariam na mesma caminhada solitária de sempre. Olhou para o céu e percebeu as nuvens escuras que o tomavam, premeditando uma forte tempestade dali a algumas horas.

Andou devagar, deixou que seus pés o guiassem para um lugar longe de seu coração. A tristeza em seu olhar era tão evidente quanto a chuva forte que ia cair horas mais tarde.

Chegou a sua casa, abriu o portão, atravessou o jardim. Olhava as árvores que dançavam com o vento, as folhas que se despediam dos galhos e que caiam na grama verde e recém cortada. O pequeno lago do qual sua avó tinha verdadeira adoração, agora, tinha suas águas agitadas com o vento. Ouvia o canto dos passarinhos ao longe, e o único som que tomava seus ouvidos era o tilintar dos sininhos à frente da porta de entrada. Deixou seus joelhos caírem sobre a grama verde e a mala escorregar de seus ombros até o chão. Elevou as mãos à altura dos olhos, para esconder as lágrimas que eles deixavam derrubar sem parada. Uma dor e dúvida enormes cresciam em seu coração, e se perguntava a todo o momento se conseguiria conviver com a culpa pelo resto de sua vida.

Sentiu uma mão tocar seu ombro docemente, e depois braços acolhendo-lhe. Suas mãos geladas furam tiradas dos olhos, que eram agora eram enxugados pelas mesmas mãos doces e quentes. Olhou para os olhos da irmã, ajoelhada a sua frente, que o olhava com piedade. Encostou a cabeça sobre seu ombro e desatou em lágrimas e soluços, que tentavam ser amparados pela infinita paciência e ternura da irmã. Ela acariciava o cabelo do irmão, seu dizer uma palavra, só deixando a brisa cada vez mais forte dar os conselhos dos quais o irmão precisava. Ele a abraçava forte, tentando aquecer sua alma fria. Sentia-se em apuros.

Levou-o para dentro da casa e fez companhia para a solidão do coração do irmão. Havia lágrimas nos olhos dela também, mas ela as derrubava em silêncio absoluto. Ainda acariciava os cabelos do irmão, que se recostava em seu ombro e chorava sem parada. Não havia troca palavras ainda, mas compartilhavam da mesma dor, da mesma fraqueza.

Quando os prantos pareciam ter diminuído consideravelmente, ele olhou nos olhou fundo nos olhos da irmã, parecendo estar olhando diretamente em sua alma. Ela olhava com a mesma piedade de antes, com a mesma paciência infinita, implorando-lhe a parada de tudo aquilo.

- Acho que não tenho mais o que perder – uma última lágrima corria de seu olho direito, sendo logo interrompida pela mão da irmã.

- Você pode achar que perdeu tudo na vida, mas ainda enxergo muito mais vida nos seus olhos – ela repousava a mão no rosto dele – Acha que não há mais nada a ganhar?

- Se tenho a habilidade de perder tudo o que me é dado... Acho que não há mais luz no fim do túnel.

- Não repita jamais uma coisa dessas. Tudo o que perdemos foi ganho algum dia. Se tudo parece congelar e ir embora como pó de seu coração pelo que perdeu no passado, acho que o que deve fazer é uma fogueira e queimar todas as histórias que tem para contar – ela olhava fundo nos olhos dele.

- Mônica, a única coisa que me resta aqui que eu não estraguei é você. E todas as chances que eu tive de ser feliz, até agora, foram tiradas de mim, ou desapareceram sem que eu, ao menos, as conhecesse por completo. Não me resta nada além da imensidão solitária e mórbida que se transformou a minha mente, e agora eu estou completamente perdido nela, todos os caminhos que eu tinha para seguir desapareceram.

- Às vezes é preciso pedir que alguém segure a luz nos lugares escuros, onde nada mais acende. Às vezes, quando o caminho certo parece errado, e o errado é mais fácil, precisamos de um guia que conheça os dois – ela fintava os olhos dele – Nem sempre podemos vencer tudo sozinhos, na verdade, na maioria das situações, precisamos de um anjo para salvar nossas vidas.

- E se o seu anjo veio e foi mandado embora pela arrogância?

- Um anjo jamais vai embora. Ele sempre vai estar com você, onde quer que você esteja, mesmo que você tenha dito a ele que o amor dele não era mais necessário na sua vida.

- Eu nunca achei que ia precisar tanto de um anjo na minha vida – ele começou a chorar novamente, e deitou no colo da irmã, que voltou a tentar ampará-lo.

Minutos se passaram no silêncio e nas lágrimas. A sala se tornou um jardim de fantasmas do passado, assombrando os olhos dos dois irmãos. Sussurrando coisas horríveis, trazendo à tona terríveis lembranças que jamais poderiam ser esquecidas, fazendo sangrar feridas profundas e eternas novamente, apesar de já terem sido tapadas pelo tempo. Uma dor imensa tomava cada batida do coração de cada um deles, e a mesma barreira intransponível crescia diante dos olhos, escurecendo toda a bela vista que tinham. Os olhos mareavam, esqueciam de tudo e viam apenas dor e desespero. Os ouvidos escutavam os mesmos gritos daquele dia, os mesmos choros. O cheiro que chegava aos narizes era de sangue. O choro preso na garganta da irmã a matava por dentro, tornando tudo grande e difícil novamente.

- Se aquele anjo que mandaste embora pode salvar sua vida e trazer-te algo de bom, tem de correr atrás dele e ganhar todo tempo que perdeste. Às vezes não são as coisas que andam contra ti, e sim tu que andas contra as coisas.

O resto do dia foi silencioso, foi solitário. A casa enorme estava na ausência da alegria fazia tempo, mas as coisas pareciam piorar a cada dia. Um anjo precisava vir salvar suas vidas, como o que foi tirar a vida de muitos dos que amavam.

A terrível chuva já esperada começou a cair. Fazendo bagunça e barulho - quantas pessoas não perdiam suas casas com uma chuva daquelas. Aos poucos, as luzinhas nas janelas do alto dos prédios começavam a se acender, revelando vida na paisagem da chuva em São Paulo. Apesar de muito longe da avenida, era possível ouvir a balbúrdia dos carros, perturbando o pouco de paz que havia no silêncio. A tempestade parecia intensificar a cada segundo. Os raios e trovões eram cada vez mais amedrontadores, deixando qualquer um que visse sua luz repentina e seu rugido ensurdecedor com o coração um pouco mais acelerado.

A noite chegara mais cedo, e sua magia se intensificara com a chuva ainda forte que caia. O vento batia forte nas árvores do jardim e da rua. Levando galhos e folhas, fazendo bagunça e sujeira.

Na janela de um dos quartos da casa térrea, Rodrigo se deslumbrava com a chuva que caia. Afinal, precisava ver um pouco de destruição naquele momento. Já havia feito a pouca lição de casa que havia para o dia seguinte, e nada mais tinha para fazer além de ficar observando a chuva do lado de fora. Ele refletia sobre tantas coisas ao mesmo tempo que chegava a achar que uma mente só era pouco para tanta coisa. Se alguém olhasse em seus olhos veria as chamas do ódio crepitarem em seu olhar, queimando o pouco de alma e vida que ainda havia em seu coração.

A porta do quarto estava fechada e a luz apagada. Medo de escuro era um luxo, agora. Medo. Uma palavra que o assombrou tanto e que, agora, significaria um pouco mais de vida numa coisa vazia sem sentimentos. Medo. Ele gostaria de voltar a sentir algum.

Seus avós já haviam chegado a casa, trazendo um pouco mais de vida a um lugar onde os fantasmas do passado voltavam a assombrar e fazer seu castelo novamente. Eles conversavam alto e alegremente, contando passagens engraçadas do dia, discutindo coisas fúteis com um bom humor espetacular.

Já não saiam mais lágrimas dos olhos do menino. Ele já as derramara aos montes e estava cansado de perder tempo com sentimentos e uma garota que só conseguiu trazer mais trevas para uma mente já perturbada. Ele já havia perdido tantas pessoas, não precisava de mais uma para perder. De certa forma, se sentia culpado de ter trazido a garota de volta. Talvez fosse mais prudente deixar que sua real vontade acontecesse, assim ele não a machucaria mais. Mas havia algo no ar que lhe dizia aos pés dos ouvidos que não foi graças a ele que ela voltara. Pelo menos, não só graças só a ele.

Olhando seu jardim se deteriorar com a chuva, era o que ele fazia havia horas. Até que a chuva passou, e não havia mais nada para fazer. Pelo menos, foi o que ele achou.

Viu um vulto branco se mover atrás de uma das árvores, como se estivesse se escondendo dele. Seu coração acelerou, ele pode sentir a incrível sensação da adrenalina em seu sangue, fazendo todos os processos acelerarem. O medo. O pouco de vida que ele esperava invadiu seu corpo novamente, e tomou seu coração de dúvida. Doce sensação.

Viu um outro vulto branco, passando de uma árvore a outra, novamente se escondendo dele atrás de uma das árvores. Ficou olhando fixamente para a árvore, até que viu uma pequena parte dele, podia jurar que aquilo estava o encarando, adivinhando o que ele estava sentindo. Até que o primeiro vulto apareceu, imitando o segundo. O garoto juraria de pé junto que eles sabiam de tudo, de cada detalhe de sua vida.

Os dois apareceram por completo. Já não era mais medo que Rodrigo sentia. Era pavor. Estava pronto para correr, mas parecia que algo o prendia ao chão. Como se eles o hipnotizassem. Sentiu uma súbita sensação de alívio, seguida por dor. Seu coração queria pular do peito, batendo tão acelerado que ele poderia desmaiar. Os músculos da perna se enrijeceram como concreto. Ele estava certo de que não sairia do lugar, por mais que sua consciência implorasse por isso.

Um arrepio subiu por sua espinha, suas mãos tremiam e ele suava frio. As lágrimas desciam de seus olhos que se agitavam, como se quisessem pular das órbitas. O oxigênio que respirava parecia rarefeito, fazendo tanto esforço para respirar que sentia dor na traquéia. Toda a tristeza que estava guardada foi arrancada do coração e colocada em suas veias, para circular junto com o sangue. Ele se sentia péssimo.

Eram fantasmas, espíritos, almas, ou qualquer coisa sinistra que tivesse a ver com aquilo. Ele via seus rostos, mas não via seus pés. Ouvia seu coração bater, mas sentia com se fosse o deles. Eram brancos e azuis claros. Não tinha nenhum mal aparente, mas metiam medo, principalmente aparecendo assim.

Uma voz em sua cabeça acordou, perturbando algo que há muito já estava adormecido. Suas mãos tremiam em dor, sua cabeça parecia que ia explodir. Ajoelhou-se a frente da janela e colocou as mãos na cabeça. Seu corpo se contorcia em dor. Queria libertar um berro preso em sua garganta a muito, mas não conseguia.

Suspirou fundo, puxando muito ar para dentro de seus pulmões. Fechou os olhos e virou a cabeça para cima. A dor passou repentinamente, como se a cura estivesse no ar. Mas, quando abriu seus olhos, lá estava o espectro, na sua frente.

Tinha a cabeça reclinada um pouco para o lado, como se estivesse examinando o humano. Olhava tão profundamente nos olhos de Rodrigo que o garoto tinha a impressão de que “aquilo” estava examinando sua alma através do olhar. Lágrimas de medo desceram pelo seu rosto, e ele se arrastava pelo chão, indo de encontro com a parede. Pelo menos, teria certeza que nada lhe atacaria pelas costas. Não tirava os olhos da criatura, e o medo era tão grande dentro de seu peito que podia ser farejado no ar.

O vento aumentou a velocidade e a intensidade à medida que entrava pela janela do quarto. Os olhos do espectro transmitiam ódio e piedade ao mesmo tempo. O tipo de olhar que é impossível de descrever.

- Não me temas, criatura. Pois não vim aqui fazer-te mal algum.

Silêncio. Rodrigo jamais ia responder, achava aquilo tudo loucura.

- Vim prevenir-te de fatos importantes. Estamos à beira do caos. Logo alguém virá buscar-te e começar algo que demorará acabar. Logo a alvorada será vermelha, com o sangue de inocentes. Não há como evitar nem adiar. Criaturas do céu e do inferno na terra, para tirar a fé daqueles que ainda a tem e derramar a dimensão dos humanos em algo inimaginável. Tens sorte, guri. Há alguém lá fora para te proteger do mal, há um anjo que te protegerá de tudo. É importante que jamais faças mal algum a este anjo, apesar de já ter feito, estou certo?

O espectro interrompeu sua fala e transformou-se em algo que ia além da fobia e da compreensão humanas. Os batimentos cardíacos de Rodrigo quase cessaram. Sentiu a calma novamente, o medo fora para algum lugar distante. Ele não podia acreditar no que via. Lágrimas desciam aos montes, e seus olhos arregalaram-se no quarto escuro que, agora, era invadido por uma luz que há muito tempo não era vista na terra.

- Os humanos são... Estranhos, devo admitir. Não me temas, não vim fazer-te mal – ele estendia a mão, para que o garoto se levantasse.

- V...Vo...cc...V – o garoto tentava balbuciar algo que não saia de sua garganta, enquanto aceitava a ajuda para se levantar – Eu não posso acreditar no que meus olhos vêem – ele colocou as mãos nos olhos, esfregando-os, como se estivesse acordando.

- Esse é o grande problema de todos vós. Também acreditas apenas no que teus olhos podem ver?

- Neste momento? Na verdade prefiro acreditar no que meus olhos não vêem. Vo...voocc.. – o garoto não conseguia terminar a frase.

- Um anjo, meu garoto – Ele ria – mas não entendo o porquê de tanta... Tantaa... – ele não conseguia encontrar a palavra – Enfim, pouco te importas. Meu nome, não revelarei, não creio que seja necessário. Peço perdão pelo modo como te assustei. Não foi minha real intenção, entendes?

O garoto apenas meneou a cabeça positivamente.

- Bom, há muito tempo que não acontecia algo inusitado. Tanto tempo que havíamos até esquecido. Porém, aconteceu e não pudemos evitar – ele se interrompeu, dando a entender que estava tentando organizar os fatos sem revelá-los por completo – na verdade, não se pode evitar fatos, apenas se prevenir deles. Uma hora ou outra eles irão acontecer. Todavia, algo mais extraordinário ainda veio a calhar, todos julgavam impossível, mas às vezes cai no esquecimento que a tua espécie é um acontecimento em si impossível. Sempre surpreendendo com algo novo – deixou um sorriso escapar.

- Não entendo uma palavra do que diz... Pode ser mais... Claro?

- Não posso ser mais claro do que estou sendo, rapaz. Acontece que o que cresce em teu coração é um sentimento proibido.

- O que? Não entendo...

- Não que o amor seja proibido, mas sim pela pessoa que sentes isso. Não podia apaixonar-te pela garota que rouba tua atenção, agora.

- Ora, e por quê?

- Verás. Quando for a hora certa, verás.

- Então, porque veio aqui?

- Para que não te surpreendas com o que está por vir. Sei que muita coisa foi tirada de ti, mas aqueles que se foram, meu caro, nunca vão sem motivo algum. Lembre-te que sempre que for possível vão tirar mais alguma coisa de tua vida, justa ou injustamente. Não cabe a nós decidir, e sim a vós. Peço para que protejas o que ainda possui.

Antes de o garoto conseguir raciocinar, o anjo desapareceu de sua frente, assim como surgiu. Estranhamente.

Débora Dias
Enviado por Débora Dias em 01/06/2009
Código do texto: T1626842
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