Entre Mulheres
Foi num sábado, à tardinha. Embora o bom tempo insistisse para que eu o aproveitasse, saindo para “ver as matas no olhar” (1), decidi ficar em casa curtindo a visita de uma doidinha deliciosa. Sabe, dessas visitas que chegam sem avisar e se espalham? Pois é, trata-se de uma amiga, escritora norte-americana com raízes russo-italianas.
Foi chegando e dominando todos os espaços. Gosta de causar polêmicas, quebrar tabus. Disse que dessa vez queria me ensinar a falar sobre sexo - ainda bem que não foi “fazer”, já pensou?! - , Sim, mas falar de sexo sem vulgaridade, pois vulgaridade era coisa que não combinava com ela! – frisou.
Preferiu um vinho tinto e eu fiquei no suco de laranja. Não me arrependo. Muitos amigos já me avisaram – até ela mesma, em outras visitas - que álcool não combina com escrever, porque o resultado é geralmente uma m... (piiiiii!!).
E o suco tava geladinho... Hummm... Perfeito para um final de tarde quente. Nessa época do ano faz um calor da cachorra por aqui, só vendo! O Sol demora mais tempo para se pôr. Oito, nove horas da noite e ele ainda brilhando, lá fora.
Depois de acomodada, a doidinha desandou contar a própria vida, coisas que até então eu não sabia. Aventuras, experiências - 4 casamentos e 1 filha, também escritora, e um 1 netinho que promete! – Declarou gostar de ajudar escritores iniciantes. Contou que, ao me achar na internet, julgou-me um bom caso, pois para me tornar uma boa escritora faltava-me ainda dormir - e muito! - embaixo da rede de todo um povo “bão”, já na estrada ó... e bote tempo nisso... nessa dimensão e em outras!
Encontramos afinidades, principalmente no que se refere ao processo de escrever. Se bem que eu não costumo falar com demônios – graças a Deus! - Não se assuste, é assim que ela denomina suas “vozes interiores”. Como já disse, ela gosta de chamar a atenção, ser politicamente incorreta...
Encontramos muitas diferenças também. Não posso me dar ao luxo de viajar tanto quanto ela. Se bem que seria bom poder ir a Veneza, se o que estivesse escrevendo tivesse que "ter" a atmosfera dessa cidade ...
Ter poucos recursos é um desafio à criatividade. Uma pessoa que não tem à mão tudo o que precisa, tem que improvisar para conseguir o mesmo efeito e, quem sabe, um resultado até melhor.
E não foi exatamente isso o que chamou a atenção de Susan Sontag em nosso Machado? “Um homem que nunca viajou... Como pode isso, ser um gênio à altura de Fulano e Beltrano?”, mais ou menos como Nélida contou (2).
Saboreando o vinho, contou-me muito mais coisas, como de uma vez em que teve que fazer um discurso numa formatura. Disse-me que teve tremenda dificuldade, pois sentia-se compungida em dizer a verdade aos formandos: vida de escritor era nada fácil, sem glamour.
- Tanto é que no discurso, acabei soltando: - contou-me - Temos muitos escritores e o que precisamos agora é de leitores. E se pensam em ganhar muito dinheiro com literatura, esqueçam... A não ser que se voltem para padrões de consumo há muito já identificados e explorados, sem o brilho típico do que se chama boa literatura.
Lembrei das "necessidades” pelas quais Garcia Márquez diz ter passado. Do espanto de um funcionário de banco, ao constatar que “o mendigo” que ali fora para sacar um cheque era, de fato, o autor de uma das colunas mais famosas num jornal da época.
Já ouvi contar de gente que diz ser capaz de viver de luz (do Sol). Seria possível viver só de palavras? Garcia Márquez, por um tempo, conseguiu... Vai ver essa é uma prova de fogo para escritores: viver só de palavras, nem que seja só por um tempo, porém que não seja breve.
Sim, mas deixa pra lá também as agruras financeiras do ofício. De certa forma, agradeci a Deus (ainda) não ter que escrever por dinheiro. Podia, ao menos me dar ao luxo de escrever sobre o que quisesse, quando e como quisesse.
No meio desse bate-papo, chegou uma outra, como do nada, entrando sem ser convidada, também na conversa, pois antes que fizéssemos menção de perguntar-lhe quem era e de onde vinha, foi logo soltando, num sotaque tão carregado que quase não consegui entender:
“Unbewußtes braucht das Licht des Bewußtseins.
Bewußtsein braucht die Energie des Unbewußten.
Schreiben erlaubt diesen Austausch.”
(O Inconsciente precisa da Luz da Consciência.
A Consciência precisa da Energia do Inconsciente.
Escrever permite essa troca.)
Ao que minha amiga nova-iorquina agitou-se do outro lado e disse à colega recém-chegada:
- Ah, agora lembrei quem é você: Bem vinda, Marion Goodman!
Nisso, meu marido chegou em casa. Vendo a sala mais uma vez cheia de gente, não deu outra:
- Diabéisso!? Circulando, circulando! Todo mundo circulando! Chego do trabalho cansado e ainda tenho que ficar dividindo minha mulher com vocês é? Ah, não! Isso não está certo! – E pôs as duas pra correr.
1 – Trecho de Verde, de Eduardo Gudin e J.C. Costa Neto, interpretada por Leila Pinheiro.
2 – Leia transcrição que fiz de alguns trechos de uma entrevista com Nélida Piñon, concedida à TV Estadão - O Coração Andarilho de Nélida Piñon - www.recantodasletras.com.br/resenhasdelivros/1536768
Nota da autora:
Neste texto, favor não confundir "autor" com "narrador", devido ao uso da primeira pessoa e da semelhanca com crônicas anteriores. É parte de um contexto maior.
Um abraço fraterno :-)