Fada do dente

Dora corria serelepe pelo parque atrás de um par de gansos negros. Alguns passos atrás, o casal apaixonado caminhava, Liza preocupada com seu vestido que teimava em voar deixando à mostra muito mais do que o necessário, segurava firmemente a mão carinhosa de Kadu, que zelava pela filha através das lentes escuras dos óculos.

As árvores proporcionavam sombras adequadas e amenizavam o calor infernal que fazia na cidade. Há meses não chovia e o sol era constante, as nuvens pareciam ter sido varridas da face da terra, ou pelo menos daquela região do país.

Kadu correu e surpreendeu a filha quando a pegou no colo, o grito agudo e assustado da criança logo se tornou em uma gostosa gargalhada quando ele começou a produzir cócegas em sua barriga. Liza sentou-se em um banco enquanto pegava a mamadeira da filha na bolsa.

Era domingo, havia muita gente passeando tentando se distrair do calor. Grande parte da população da cidade estava nos shoppings protegidas do calor pelo ar condionado, ou curtindo as águas refrescantes dos clubes que faturavam muito devido à estação quente prolongada.

Dora deitou-se no colo do pai para tomar o suco de maçã deixando o pai brincar com os cachos de seu cabelo. Seus olhos grandes e amendoados esquadrinhavam o céu azul por entre as folhas das árvores. Ela tentava decifrar o que via naquela imensidão, mas não parecia ter certeza.

- Papai? O que é aquilo? – ela perguntou curiosa tirando o bico da mamadeira da boca e apontando com seu dedo para o céu.

Kadu olhou curioso para cima, por entre as folhas ele divisou o mesmo céu azul que a filha via, mas não era o mesmo céu que ele contemplara alguns minutos antes. O azul profundo agora havia se coberto de alguma substância de tonalidade marrom, o que antes era belo, embora indicasse o calor, agora era feio e trazia um presságio muito pior.

- Ó Deus, vamos para casa, rápido! – ele falou sem responder a filha, colocando-a no colo e puxando a mulher pela mão.

- Que foi Kadu? – Liza perguntou irritada, a sandália fazia seus pés doerem ao andar rápido da maneira como iam.

- Não sei, mas não curti a cara desse céu! – ele falou exacerbado.

Por um segundo Liza parou de caminhar quando olhou para o céu, agora mais escuro que antes, a massa que cobria o céu azul parecia se movimentar como se estivesse viva.

- Deus do céu! Vamos para casa! – ela tomou fôlego e corria com o marido.

Ao redor deles, dezenas de pessoas tomavam o rumo de suas residências com pressa também ao ver a cena apocalíptica.

A nuvem escura parecia descer cada vez mais, agora se concentrando apenas em uma região da cidade. Kadu corria com Liza em seu encalço. Dora apontava para o céu murmurando “boboleta pai”. Ele nem olhou para trás, sua pressa em chegar em casa era maior.

Ele dobrou a esquina avistando o prédio adiante. Estava escuro, embora estivessem no meio da tarde. Dora chegou ofegante ao saguão do prédio, sua mão tremula deixou a chave cair enquanto tentava abrir a porta principal.

- Rápido! – ele ralhou com ela.

Ela abaixou-se e conseguiu abrir a porta, eles entraram no mesmo segundo que a nuvem desceu a menos de um metro do chão. Eles observavam seguros através do vidro milhares de criaturinhas negras batendo minúsculas asas membranosas.

- São morcegos? – Liza perguntou tentando identificar.

- Não, aquilo não são morcegos, mas eu nem tenho idéia do que seja. Vamos, melhor subirmos.

O elevador parou no sétimo andar, eles caminharam agora sem medo para o apartamento 704, Dora já brincava mordendo a orelha do pai completamente esquecida das criaturinhas quando Liza abrira a porta do apartamento.

O berro dela assustou a criança que começou a chorar no mesmo instante. Kadu se adiantou e ficou na frente da mulher, passando a criança para os braços da mãe apavorada. Ele não era forte, nunca fora de verdade, seus músculos provinham das bombas que tomara quando era mais jovem.

Na sala estavam centenas daqueles monstrinhos. Eles cobriam os tetos e as paredes, uma grande quantidade estava concentrada no centro formando um grande monstrinho. As janelas haviam ficado abertas para aproveitar o sol e as criaturas se aproveitaram.

- O que diabos é isso? – ele perguntou assustado analisando uma das criaturas mais próximas. Ela lembrava perfeitamente a fada Sininho, um corpo humano minúsculo com asas negras. As orelhas e o nariz eram compridos demais para as feições delicadas, mas a pele negra e as roupas pretas davam ao ser um ar sombrio e aterrorizante.

Respondendo a pergunta dele aquele monstro maior respondeu:

- Somos fadas do dente, vocês nos chamaram e viemos atender seus pedidos!

Kadu virou-se assustado para a mulher, um minúsculo dente havia caído prematuramente da boca de Dora na noite anterior e Liza havia lhe contado as histórias das fadas do dente e colocado o pequenino dente branco embaixo do travesseiro.

- C..como assim? – ele gaguejou.

As fadas apontaram as mãos para a criança.

- Mas o dente dela está no quarto – Liza criara uma coragem fora do comum para defender sua cria adiantando-se para postar-se mais próximo ao marido. Dora entre eles.

- A criança fez o pedido, mas ele custa bem mais que um simples dente!

Os pais olharam arregalados para a menina, a pele clara e macia cobria as grandes bochechas gordas enquanto ela sorria com seus pequenos dentes.

- Dorinha, amor, o que você pediu pra fada ontem?

- Mamãe e papai o dia inteiro comigo – ela respondeu inocente.

Liza abraçou a filha com mais força. Eles haviam-na matriculado na creche esse ano para poderem trabalhar, o pouco que eles estavam ganhando não servia para sustentar a filha que crescia e gerava cada dia mais custos.

- Certo, vamos conversar! – Kadu assumiu uma posição defensiva.

- Não existe conversa, só viemos realizar o pedido dela! – eles continuavam a apontar para Dora com seus dedinhos escuros.

- Quanto esse pedido vai custar? – Liza perguntou cautelosa.

- Dentina para três mil de nós! – eles responderam em uníssono.

- E em minha língua isso seria? – Kadu questionou.

- 70 dentes!

Kadu olhou assustado para Liza.

- Mas ela nem tem tantos dentes! – ela choramingou.

- Se fizermos um bom trabalho com ela, ela terá!

- Você não vai encostar um dedo na minha filha! – protestou Kadu.

- Não interfira! – uma fada aparentemente mais velha se colocou a poucos centímetros dos olhos dele dando de dedo no olho dele.

- Que tipo de trabalho farão para ela ter 70 dentes? – a voz de Liza era cada vez mais forte.

- Drenagem. – uma fada respondeu secamente.

A imagem da filha seca e murcha, com a boca ensangüentada e os dentes arrancados, brotou na mente de ambos.

- Leve os meus! – eles disseram juntos enquanto davam as mãos com força.

As fadas se reuniram em uma conferência no lado de fora da janela, as que estavam no chão se juntaram às que haviam saído do apartamento e formavam uma grande bola negra. Subitamente a massa disforme de criaturas voou de encontro ao casal e a criança, trinta e dois dentes foram arrancados subitamente da boca de cada um deles, e quatro da boca da criança.

As fadas dissolveram-se no ar como poeira enquanto a família sangrava e gritava de dor, guiando-se cegamente para fora do apartamento em busca de ajuda.

“Família recebe indenização milionária de multinacional”

- Mamãe vai ficar pra sempre comigo agora?

- Acho que não temos muita escolha querida.

O sorriso reconstruído era perfeito, mas o terror sempre existiria na mente daqueles pais.

Emília Kesheh
Enviado por Emília Kesheh em 29/05/2009
Reeditado em 29/05/2009
Código do texto: T1621735
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