Tinta & Pena V - Faca, Fogo e Ferrugem

Tinta & Pena

Capítulo 5 - Faca, Fogo e Ferrugem

O silêncio se estendeu por um tempo.

Delaina não veio; Ciquem não parecia surpreso.

- Heu heu heu heu heu bichinho mai doidu. Qui pensa qui tah fazendo? - Disse Maria.

- Nenhuma criatura da luz pode entrar em nossa gruta, a não ser que nós mesmos a traga - disse Martha.

As chamas crepitavam em algum lugar no escuro, e iluminavam as prateleiras cheias de potes feitos de barro, de todos os tamanhos e conteúdos. Estes (os conteúdos) estavam escritos com gravetos melados com barro amarelo. Havia lesmas verdes, larvas de mosquitos e moscas, grilos, sapos, rãs, pererecas e girinos, baratas, aranhas, morcegos e peixes (tudo isso inteiro ou pedaços). Além asas de borboletas e mariposas - de todas as cores, tamanhos e olhos; e coisas desse tipo. Havia também folhas secas de boldo, alfavaca, pimenta, erva-cidreira, agrião, louro, colônia e várias outras plantas medicinais desconhecidas por nós, que conhecemos tão pouco de Rivergard. Isso era o que se podia saber lendo as letras tortas nos recipientes.

Vinci olhava tudo com um certo repúdio. Não simpatizava com rãs nem nada parecido com elas. Temia que o conteúdo - escrito em amarelo pela feia caligrafia das mothinas - ainda estivesse suficientemente vivo para tentar escapar. Estava faminto e enojado ao mesmo tempo. Afastou então os olhos das iguarias nada apetitosas. Queria achar uma janela ou uma chaminé (ou qualquer coisa parecida que pudesse existir ali). Subitamente pensou alto:

- Para onde vai toda essa fumaça?

- O que disse bichinho burro? Para onde vai a fumaça? - Perguntou/respondeu Martha.

- Sim, ou nós morreríamos sufocados aqui dentro. Tem que haver uma abertura por onde a fumaça escape.

- Mas é claro bichinho nojento, claro que tem abertura aqui, imbecil, idiota, sem-cérebro, minúsculo, asqueroso, a fumaça toda sai pelas janelas das luas lá atrás - disse Maria apontando numa direção, a direita deles.

- Então é por lá que a Fênix vai entrar, e vai fazer com vocês exatamente o que vocês fazem com as pequenas criaturas. - disse Ciquem.

- Não fale asneiras Maria! - Disse Martha dando uma tapa na cara da outra. - E você Ceiláquem, não aprendeu que não se deve fazer ameaças ao inimigo quando se está em seu poder. - Continuou ela dirigindo-se a Ciquem com o ódio na cara, velado pelas sombras.

- Dá minha parte, cara Martha, não somos inimigos, nós sempre respeitamos o Povo Antigo de Rivergard. Não se trata de uma ameaça... é apenas um aviso. Ela não costuma demorar, saiba que ela se aproxima rapidamente, e quando chegar não terei controle algum sobre ela.

Vinci esperou ouvir o som de uma tapa no rosto Ciquem depois disso, mas não veio - por algum motivo a mothina respeitava o olíre.

- Se ainda não acredita em mim Martha; Saiba que a veracidade de minhas palavras elucida o enigma em sua mente. Você mesma disse : "...se você de fato veio do Sul como escalou o Paredão de Mabaham?". Não foi isso que você disse? E a distancia que percorremos em tão pouco tempo? Não era essa a sua dúvida? Eis a resposta.

- Feche a janela das luas imediatamente Maria! - Disse Martha finalmente.

- Tá doida... tá doida é? Eu num saio daqui nem esmagada e sem asas... não nuunca nuunquinha.

- Desgraçada! Não vê que temos algo importante aqui? Na hora que finalmente temos a chance de termos a glória que tanto merecemos você dá pra trás? É sempre assim Maria! Você é medíocre! (Ela realmente parecia estar atuando, talvez esse seja um jeito peculiar das mothinas) Não passa de um inseto nojento rastejando por caminhos imundos. É isso que você é Maria! Sem tirar nem por! (Creio eu que neste estante Martha não lembrou-se que ela e Maria eram irmãs gêmeas). Mas tudo bem. Quando eu estiver recebendo o resgate, por esses dois bichos, dos servos da luz que queima, você não receberá nada sua ingrata! E se você ainda assim tiver a audácia de me pedir qualquer coisa, mesmo que seja uma gota de doce dourado... Nesse dia você vai ver DO QUE MARTHA MIOLETHA É CAPAZ!

Sem dizer mais nada Martha abriu as asas e saio voando baixo, fazendo as labaredas tremer. Maria ficou meia desnorteada.

- Não há mais tempo. Eu, como um olíre de Dol Sirim, sou capaz de perceber quando minha montaria está perto. Martha em breve estará em pedaços. Liberte-nos e você talvez tenha uma chance. - Disse Ciquem em um tom sério como Vinci ainda não o tinha ouvido falar. Vinci sentiu-se confiante, mas ao mesmo tempo com medo da reação de Maria.

- Idiota! Se é assim vamos tudu morrer! - gorgolejou Maria enquanto pegou uma espécie de facão de algum lugar escondido nas sombras. A lâmina de tão enferrujado não reluziu na luz vermelha do fogo. Maria aproximou-se de Vinci e Ciquem, amarrados costa a costa, com a facão erguido e com um grito horrível. Um golpe quase atingiu a mão de Ciquem que segurava a pena de Delaina, se ele não tivesse desviando-se rapidamente, ainda assim foi atingido na perna.

Evidentemente os dois não ficaram parados, moveram-se como puderam na escuridão. Ficar de pé parecia impossível, tendo em vista a pressão que as cordas exerciam neles. Mas eles tinham que tentar. E foi o que fizeram.

- Levante-se, vamos, já! - Gritou Ciquem.

Vinci sentia que teria seu peito esmagado em breve, a cordas apertavam como um abraço de uma anaconda. Quando ficaram de pé uma lágrima brilhou no rosto de Vinci. Como tinham as pernas amarradas a única alternativa que sobrou a Ciquem foi aplicar um "chute-duplo" confiando seu peso ao magro corpo de Vinci. O chute fez o facão cair de sua condutora junto com o braço que o empunhava. A mothina deu um grito de horror e saiu gritando, xingando, e chorando.

Agora estavam sós naquela "farmácia homeopática". O eco dos gritos vinha do, que provavelmente era um, corredor.

- Não podemos perder tempo. - Disse Ciquem praticamente arrastando Vinci até o local onde caíra o facão (e o braço), e jogando-se ao chão novamente. Pegou-o com a mão esquerda e começou a cortar as cordas, com todo o cuidado possível, o que era insuficiente. Tanto ele como Vinci ficaram com leves cortes em resultado disso, por mais cego que a lâmina estivesse. Mas, habilidoso como era o olíre, por fim concluiu o serviço e pode mover seus braços novamente. Os cortes latejavam, a fumaça deixava-os tontos, e o cheiro nem se fala (se você já esteve em uma loja de condimentos exóticos, pode ter uma idéia).

- Essa história de Delaina é verdadeira? - perguntou Vinci sem nada melhor para falar.

- Não.

- Eu sabia!

- Segure isso - disse Ciquem estedendo o cabo do facão a Vinci.

- Você quer que eu lute?

- Obviamente.

- Ei... matar um inseto é uma coisa mas matar esses monstros é bem diferente... - disse Vinci perturbado.

- Por quê? O que é mais fácil? - perguntou Ciquem sinceramente.

- Matar mariposas voando a noite em volta do candinheiro. - respondeu Vinci.

- É? É mais fácil matar criaturas inocentes que não lhe fizeram nenhum mal, do que lutar contra essas que nos atacaram e prenderam? Não entendo. E nem há tempo pra tentar entender agora - disse Ciquem procurando alguma coisa que lhe servisse de arma.

Encontrou um machado tão enferrujado quanto o facão.

- Acho que isso vai servir. - Disse ele alisando a lâmina míope. Um grito dé ódio ecoou na sala. De lá de dentro vinha o zumbido de apressadas asas de mothinas.

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......Continua em breve........

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Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 25/05/2009
Reeditado em 29/06/2011
Código do texto: T1613686
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