Histórias
- Você sabe contar histórias? – perguntou a menininha.
- Sim! É o meu trabalho. – respondeu orgulhoso o escritor.
- Então conte uma! – pediu com as pupilas brilhando, pérolas negras flutuando na brancura imensa dos olhinhos de porcelana.
- Então tá bom então! Era uma vez... - começou o escritor.
- Tem lobo mau na sua história? – cortou a menininha, braços e perninhas sacudindo, ao ritmo alegre do vento. Era finalzinho de tarde, no outono, quando as folhas caem, como pensamentos leves e pueris, pintando os caminhos com suas cores marrom e amarelo-avermelhadas.
- Hum... Talvez! Vamos ver o que a surpresa nos reserva. Era uma vez ...
- E tem princesa?
- Sim. - respondeu mansa e pacientemente o escritor – Por quê não trocamos os papéis? Acho que você também sabe contar histórias. Você me conta então um história com lobo mau e princesa!
- Ah, não! – respondeu a menininha, cabecinha balançando de um lado para outro, sinal de negativa, e continuou, bochechas estufadas, fazendo biquinho: - Histórias com lobo mau e princesa são muito manjadas!
O escritor sorriu gostoso e perguntou:
- Como assim, manjadas?
- Manjada, oras! Sem graça. Todo mundo já sabe que tem lobo mau e princesa! – disse a menininha com as duas mãozinhas nas cadeiras, gesto de total convicção.
- E o que tem na sua história? – perguntou o escritor, curioso.
- Na minha história tem castelo, tem cavalo, tem carro de lata e Brasil sem perna! – replicou a menina, toda alegre e faceira.
- Brasil sem perna? E o que seria isso?
- Um monstro!
- Monstro?
- É, um monstro. Ele tem a forma de uma coxa de galinha e é todo cabeludo! Ele tem cabelo verde. E ele só tem um olho! De noite, quando tá escurão, ele pisca o olhão amarelo e a gente sabe que ele tá chegando. Eu morro de medo do Brasil sem perna!
- Ah! Esse Brasil sem perna... não seria o Bicho-Papão?
- Não, seu bobo! Bicho-Papão não existe!
- Sério?
- Sério! Só existe na música que a gente canta para os bebês. – e cantou:
“Bicho papão sai de cima do telhado
Deixa esse bebê ter um sono sossegado”
- Se o Bicho-Papão não existe é provável que o Brasil sem perna também não! – jogou o escritor.
- Ah, esse existe, sim senhor! Eu sei onde ele se esconde – e pondo uma das mãozinhas, em concha, num dos cantos da boca, sussurrou: - de dia...
- Ah, estou ficando curioso... E onde é?
- Na despensa aqui de casa! De dia ele dorme, o dia todo, e à noite ele vem assustar a gente.
- Vamos lá na despensa. Quero conhecer esse Brasil sem perna. - disse o escritor, resoluto.
- Mas só se a gente for caladinho. Se fizer barulho ele pode acordar...
- Tá certo então! Então vamos lá!
A menininha tomou uma das mãos do escritor. Entraram em casa e ela conduziu-o da sala até uma portinha estreita, no final da casa, na cozinha. E então recomendou-lhe:
- Quando você abrir a porta, acenda logo a luz. Assim ele não acorda. Ele só acorda quando tá escurão.
O escritor achou tudo aquilo muito interessante e enquanto a menininha se escondia por trás dele, abriu a porta do quartinho, lentamente, tateando com os dedos a parede logo ao lado da porta, buscando o botão de um interruptor. E logo se fez luz! E a menininha, pondo a cabeça pra dentro do quartinho, olhinhos fechados, apontando com o dedinho para a parede, em frente à porta, sussurrou:
- Pssssssssst! Ele tá dormindo. Se falar alto ou apagar a luz ele vai acordar.
- Realmente... Incrível! – pensou o escritor. Mais tarde, escreveria ele em seu diário que aquilo que vira naquela parede, em frente à porta, explicava boa parte daquela fantasia, mas nem tudo... Um enorme mapa topográfico do Brasil, onde reinava soberano o verde. Acima, na região norte, mais ou menos no centro do mapa, um adesivo amarelo, com a Rosa dos Ventos. Nunca havia imaginado o desenho do mapa do Brasil como uma coxa (ou perna completa) de galinha, um monstro de uma perna só, e com um único e imenso olho amarelo – possivelmente a Rosa dos Ventos.
Conta que, nesse momento, sorriu silencioso e desejou poder ver o mundo como o via aquela criaturinha que, ali, metade se escondia atrás dele. Por um momento ficou sem saber o que fazer: embarcar na ou desvendar a fantasia. Foi fechando a porta lentamente, e quando havia somente espaço para seu braço, apagou a luz, fechou a porta de vez e girou a chave que estava na fechadura. Em seguida virou-se, ajoelhou-se diante da menininha, segurando em seus ombros, dizendo:
- Schhhhhh... Não vamos fazer zoada. Deixe o Brasil sem perna dormir... – A menininha assentiu com a cabeça, olhou para o escritor e ambos sorriram. Depois voltaram para o jardim, de mãos dadas, cúmplices daquele segredo, felizes.
Foi preciso muito tempo até que eu, a menininha, tivesse conhecimento das memórias desse querido escritor. Hoje, já há muito seguindo os caminhos por ele traçados, leio suas histórias mágicas e agradeço-lhe imensamente por ter decidido, ao invés de desvendar, embarcar.