Tinta & Pena IV -Mar & Pousa
Capítulo IV
Mar & Pousa
Ele voltou a consciência gradativamente. Sonhava que estava em casa deitado em sua cama, e não queria levantar tão cedo. Seu pai o chamava, e ele, como de costume, não dava a mínima. Sabia que Trintem lhe deixaria dormir até um pouco mais tarde. Sabia que ele já teria feito o desjejum, e talvez já estivesse saindo para o trabalho. Estava tranquilo. Tudo no seu lugar. Até aquele anseio por mudanças também estava no seu devido lugar. Bem no íntimo de Vinci Laipotem.
Como você já, bem, sabe, não era nada disso.
Abriu os olhos assustado. Finalmente tinha voltado ao mundo real. O mundo em volta dividia-se em sombras escuras e reflexos avermelhados de labaredas, havia inúmeras prateleiras com inúmeros recipientes na meia-luz dançante. Forçou a memória e nada vinha. Era um vazio frio e escuro.
- Martha! Martha! O bichim acordou.
- Hum hum hum hum... Mas que bichinho dorminhoco.
Vinci escutou essas vozes e achou que era um pesadelo. Não eram vozes exatamente assustadoras (claro dependendo do ponto de vista e da situação). Mas eram estranhas como se fossem loucas, vindas de um mundo que não era o seu.
- Olá bichinho, dormiu bem não dormiu? Dormiu sim com certeza!
Vinci contemplou a dona da voz que perguntava/respondia. Era uma figura escura com dois chifres. Espere... não eram chifres... Antenas! Isso eram antenas. Dos olhos só via o brilho refletido na luz das labaredas. Tinha no mínimo seis braços. Usava o que parecia uma espécie de capa. Movimentava-se delicada e habilmente, era quase uma dança. Vinci achou que via um inseto gigante, e não estava muito longe nesta suposição.
- Você não fala bichinho? Não? Mas que pena... um bichinho que viaja pra tão longe da toca não poder falar... hum hum hum hum... que peninha.
Vinci tentou se levantar e percebeu que estava amarrado.
- Clichê não? - Disse ele. Não estava levando aquilo a sério. Era tudo irreal demais para ser levado a sério.
- Como disse? Clichê? Ouviu isso Maria? Claro que sim. O bichinho fala! - Disse Martha
- Mai qui bichim mai intendido das coisa. - Disse Maria num espanto sincero.
As duas figuras naquela escuridão eram idênticas. Com uma única diferença: A que Martha chamava de Maria tinha uma antena (de inseto, não de tv) a menos. E a que Maria chamava de Martha era um pouco mais cheiinha. Ambas tinham a mesma altura de uma pessoa baixa.
- Quem são vocês? - Disse Vinci subitamente lembrando-se de tudo de uma vez e procurando no escuro por Ciquem. Achava que podia estar amarrado costas com costas com ele, mas não tinha como ter certeza. Uma vez que a "coisa" em que ele estava amarrado não se mexera ainda.
- Não venha dar uma de imbecil bichinho clichê. Você invade nosso território e nos assusta tentando nos atacar e depois, se acha no direito de perguntar alguma coisa?
Acha mesmo? Mas é muito folgado... tsc, tsc, tsc, tsc, tsc... Bichinho asqueroso você não? É sim muito asqueroso.
- Nós não queríamos ataca-las. Só estávamos procurando... - Dizia Vinci então lembrou-se de situações parecidas nas histórias de Renind, e achou mais seguro não mencionar a Floresta Anã, nem o tal Galhopula.
- Estávamos procurando abrigo para passar a noite... - Continuou ele.
- Para passar A NOITE?? Por que se esconder dos círculos brilhantes?
Por que abrigar-se do orvalho e do frio?
Por que vocês são bichinhos nojentos servos da Bola de Fogo Ardente. São asquerosos bichos da Luz Quente. A luz que os deixa cegos. Pobres bichinhos da luz. - Disse Martha.
Vinci percebeu que elas eram mais uma daquelas duplas: Chefe/Capacho, Sábio/Tolo, etc. Não sabia se respondia aquela pergunta-respondida ou não. De repente lembrou-se de Delaina e a esperança de um resgate, feito pela poderosa ave, nasceu.
- Somos dessedentes do Povo Livre de Holigard do Nordeste. Em nome de Phill Lee Pee, Rei de Dol Sirim, a Cidade do Mar, eu ordeno que sejamos soltos, eu , Ciquem Laminuel, e meu amigo companheiro de viagem, Vinci Laipotem.
Não havia dúvidas agora que Vinci estava realmente amarrado junto com Ciquem.
- Heu Heu Heu Heu Heu.... Ouviu isso Martha? Povo Livre de Holigaaard! Heu Heu Heu Heu Heu.... O que você acha disso Martha? Diz a eles, diz...
- Escute-me aqui Ceiláquem - dizia Martha com uma raiva visível, enquanto segurou no braço de Vinci com duas das patas e o girou com uma força surpreendente. Agora Vinci encarava a parede de sombras dançantes, enquanto Ciquem encarava as mothinas.
- Você e seu povo podem descender de onde for! Podem ter vindo do Vale da Morte, onde o Vazio habita. Vocês não são de Dreamenim! Que é o verdadeiro nome de nossa terra que vocês chamaram de Rivergard. Bichinhos destruidores, violentos! Vocês que trouxeram guerras para nossas terras. Os morcegos já me contaram tudo que agora acontece no Sul. O Vazio que vocês mesmo libertaram, retornou para trazer morte para Dreamenin. Então não me fale em nome de seus Reis tolos nem suas colméias feias e estéreis, isso não vale nada aqui.
Ciquem ficou surpreso pelo conhecimento (embora distorcido) que a mothina tinha da história. Sentiu-se realmente tocado.
- O que você diz é em parte verdade, Martha. Talvez tenha sido um de nossos antepassados que tenha trazido o Mal. Mas somos nós que temos o combatido desde então. E de fato essas terras não são nossas por natureza. Mas vocês Povos Antigos não se sentem mais seguros tendo suas terras protegidas?
- Hum Hum Hum Hum... Mais que bichinho tolo. [É! bichim tolo! - disse Maria sendo repreendida com um olhar de Martha] Você chama - continuou ela - aquela porcaria do Sul de proteção? Não foi isso que os morcegos disseram... não, não foi mesmo. Em nenhuma hipótese.
- Meu povo está morrendo e você não pode falar deles assim! - Disse Vinci com uma voz chorosa que o envergonhou.
- Eu não posso o quê? - disse Martha repetindo o movimento de troca de prisioneiros e aplicando uma forte tapa na bochecha esquerda de Vinci - Eu não posso falar? - Continuou ela numa voz estridente - Aqui eu posso tudo! Bicho nojento da Terra da Morte. Gostou desse nome? Não? É assim que nós chamamos as terras de seus antepassados. A terra dos Bichos Estranhos que vieram estragar NOSSA terra! Você é quem não pode nada aqui! Pessa desculpa se quizer ver a Bola de Fogo Ardente de novo.
- Des-des-desculpa - Disse Vinci baixinho sentindo o gosto de sangue na boca.
PÁÁÁááá...! Outra tapa no mesmo lugar.
- É desculpe-me MARTHA bichinho mal-educado!
Vinci queria chorar, de raiva e de dor, mas conteve-se.
- Não fale nada - Sussurrou Ciquem para ele - Elas são realmente capazes de cumprir o que prometem.
- MUITO BEM! Deixemos as conversas dos "grandes" de lado e falemos de nós. - Disse Martha. - Por que tentaram nos atacar? Não acredito que quisessem nos comer, todo mundo sabe que mothinas têm gosto amargo, além de causar alucinações.
- Não desejávamos ataca-las. Foi uma infeliz coincidência Martha. - Dizia Ciquem, ia falar de Delaina mas achou melhor não - Acha que se realmente - continuou ele - quiséssemos ataca-las teríamos feito aquele barulho todo?
- Isso é o mais estranho - Disse Martha como se falasse consigo mesma - Se não queriam nos atacar por aqueles gritos? Queriam nos assustar evidentemente, não se contentam em se apossar das nossas terras... Ainda vêm nos importunar! - Sua voz foi ficando chorosa, e fazia gestos lembravam uma atriz num monólogo.
Só agora Ciquem pensava no quanto tinha sido imprudente e até infantil em sua busca pelo "galho balançante". Tinha agido instintivamente.
- Estávamos voando para o Norte - dizia Ciquem enquanto Martha o virou para olha-lo nos olhos sob a luz das labaredas vermelhas. - Pois como você já sabe Martha, - continuou - o Vazio atacou Mastro Forte, eu precisava retornar a Dol Sirim o mais breve possível.
- E pensou em pegar um atalho pela Floresta das Mothinas não? - Disse Martha.
Ciquem não lembrava de nenhuma floresta com esse nome no mapa, e achou que só elas mesmas a chamavam assim.
- Muito inteligente de sua parte. - Continuou Martha - Além do que se você de fato veio do Sul como escalou o Paredão de Mabaham? Sua história está muito estranha... isso sem contar a distancia que você percorreu em aproximadamente sete à nove horas... Pelo tempo vocês só estariam aqui se fossem Nindanos... O que está mais que claro que não são. VOCÊ MENTE BICHINHO!
- Se você não nos soltar a situação vai piorar para todos nós. Pois embora, como você disse Martha, nós tenhamos libertado o Vazio, ele não vai só nos atacar, nem destruir só nossas cidades. Todos vocês, refiro-me ao honrado Povo Antigo, sofrerão também conosco.
- Nós já sofremos o bastante com vocês intrusos! Sofrimento a mais ou a menos não difere!
- É uma pena Martha.
- O que é uma pena bichinho nojentinho?
- Isso aqui. - Ciquem sacou, rapidamente, de algum bolso secreto em sua roupa, uma pena. Ele podia fazer isso já que apenas os braços estavam imobilizados, os antebraços tinham uma mobilidade relativa.
Nem Martha nem Maria viram o que era. Martha virou, novamente, Ciquem à luz vermelha. Seu rosto era sereno.
- Está vendo isso? - Ciquem ergueu a pena, que só se via o formato e sombras sem cor.
- O que acha que eu sou? Uma doninha?
- Isto é uma pena de uma Groenpiterix do Norte, que é minha Montaria Real. Ela vai estar aqui segundos depois que eu chama-la. Liberte-nos agora sem problemas e partiremos em paz. A escolha é sua Martha.
- Pássaros! Eu morro de medo de pássaros. Solte eles Martha, solte eles... - disse Maria tremendo.
- Hum hum hum hum hum hum... você nem se mexeu quando lançamos o pó da escuridão. Seu bichinho fracote, não me venha com ameaças! Acha que acabou a munição das nossas asas bichinho?
Ciquem começou então a cantar um trecho da Canção de Delaina. Que ele havia composto a muito tempo, e desde então não importava onde ele estivesse, quando cantava a Fênix chegaria ele voando na velocidade da luz.
Venha! Venha asas da liberdade
Dê-me sua força e sua velocidade
Seus olhos que no escuro tudo ilumina
Venha minha Fênix! Venha Delaina!
Então fez-se silêncio.
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(Para você que está até agora se perguntando o que é uma mothina)
Mothinas são seres noturnos que habitam as florestas de Rivergard. São semelhantes as mariposas (moth em inglês) que você talvez conheça bem, semelhantes na forma, digamos assim, não no tamanho. Algumas são sábias (como Martha) mas são na maioria das vezes solitárias e egoístas. Vivem em busca de ervas que curam, flores que reanimam doentes, frutas excelentes etc. Mas nunca usam para nenhum bem, estocam tudo que encontram em potes em suas tocas (geralmente cavernas escuras).
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A continuação vem em breve
Até lá,
Deixemos a luz de Ornata nos guiar