Desejo

PREFÁCIO

Uma mulher quase morta. Uma falta de vida rondando, como se esperasse por um único deslize para que mergulhasse e devorasse aquele resto de vida, aquela pequena gota, não havia mais nada, apenas aquilo. A mulher, por sua vez, ao ver os olhos ternos da morte lhe chamar e sem ter forças e nem um lugar para onde fugir, resolveu sorrir, afinal de contas, era o que mais gostava de fazer. Alguma coisa de algum lugar sussurrava em seu ouvido, não uma voz, mas um sentimento de vida, talvez o último. O sussurro fazia emergir uma miríade de imagens desbotadas, vindas de algum lugar perdido em muito passado e que quase se perderam, mas havia algo mais forte que logo tomou os últimos momentos da vida da mulher. Um choro de criança, um par de olhos brilhantes e uma vontade, um desejo maior do que qualquer morte.

1

Yago passou com o máximo de cuidado pelo portão enferrujado, para que não fosse anunciado. Quando pisou na passarela encardida, tentou lembrar-se do que havia trazido-o até ali. Por um instante sua coragem e curiosidade pareceram fraquejar, mas fora apenas por um instante. Respirou fundo e esquadrinhou o jardim com olhos de águia. Era simplesmente horrível, como se tivessem jogado uma bomba nele. O que não estava destruído estava sujo, seco ou morto e não necessariamente nessa ordem. Havia um cheiro de queimado, vindo de algum lugar invisível, talvez houvesse alguma coisa queimando embaixo da terra e a fumaça fedorenta subisse através do solo arenoso, talvez, fosse o cheiro do inferno que estava mais perto daquele lugar do que de qualquer outro.

Yago começou a andar, relutava, mas continuava andando. Não queria continuar, mas não queria que fosse ele quem desistisse. Desejou que acontecesse alguma coisa, uma dor súbita de barriga, uma nevasca, um meteoro ou qualquer outra coisa que o obrigasse a voltar, só assim voltaria, nunca desistiria por si mesmo, ainda que desejasse, do fundo do seu coração abandonar tudo aquilo. Como não houve nenhum sinal de uma catástrofe natural ou de um imprevisto fisiológico, Yago continuou, em poucos minutos havia cruzado a passarela de cimento que abria caminho entre os ramos espinhentos de rosas pétreas. Pôs-se diante dos três degraus de madeira da varanda, subiu-os cuidadosamente e quando chegou ao patamar da porta, ouviu o estalo de uma fechadura. Depois outro e outro, depois de destrancar umas dez fechaduras, alguém ou alguma coisa girou a maçaneta. Yago acompanhou o giro vagaroso com os olhos e seu estômago revirou-se na mesma proporção. Logo em seguida, a porta abriu-se e as pontas de dois chinelos de pano saíram por ela.

2

Era Narcisa, a dona da casa. Uma velha esquisita, talvez, a mais esquisita do mundo inteiro. Devia possuir, e era bastante provável, mais de uma centena de anos, podia-se perceber isso no monte de rugas em que consistia o seu rosto. É verdade que havia um par de olhos minúsculos, um nariz adunco e uma boquinha estreita, além disso, apenas rugas e mais rugas, pegadas do tempo. Yago logo que pôs os olhos nela lembrou-se de uma história que ouvira. “Quando o tempo passa pelos homens, ele deixa pegadas e são elas que os faz crescer e, mais tarde, envelhecer. As rugas são as mais nítidas e inconfundíveis pegadas do tempo.” Ele não se lembrava onde havia ouvido isso, mas naquele instante percebeu o quanto aquela história fazia sentido. Narcisa retribuiu o olhar do garoto e ficou imóvel enquanto ele lhe observava. Yago, então, arriscou-se. No entanto, quando ele abriu a boca para tentar se justificar, Narcisa o interrompeu e colocou-o para dentro. Yago só se deu conta do que havia acontecido quando já estava sentado em uma poltrona poeirenta na sala de estar da casa. Foi nesse momento que ele, depois de conformar-se de que havia aceitado o convite de entrar, decidiu aproveitar-se da situação, em sua vida inteira não teria oportunidade melhor para descobrir de uma vez por todas quem era a velha Narcisa.

Então, o primeiro passo seria explorar aquele lugar tão estranho. Havia mais de uma dezena de geladeiras escoradas nas paredes da sala de estar. Todas de modelos muito antigos e barulhentos, zumbiam como um enxame de abelhas motorizadas. Os fios que as mantinham ligadas à eletricidade amontoavam-se no chão, davam voltas e mais voltas e culminavam em uma audaciosa, senão perigosa, conexão cheia de tomadas ligadas descuidadamente. Dava arrepios só de olhar para aquela gambiarra. Enquanto estava distraído investigando mais de perto os refrigeradores, Narcisa entrou trazendo uma bandeja com as limonadas que havia prometido.

Sentaram-se nas poltronas, Yago não conseguia tirar os olhos de sua anfitriã, havia algo de encantador, um mistério naquela mulher, como se ela fosse alguém muito importante e não se importasse com o que todo mundo costumava preocupar-se, ela estava em algum lugar entre isso e o que há além. Beberam e conversaram. Narcisa, ao contrário do que todos pensavam e falavam, era muito divertida e simpática. Era uma daquelas pessoas que conseguem dizer a pior coisa do mundo de forma doce e tranqüila, conversar com ela era o mesmo que puxar o fio de um novelo infinito. Depois de algum tempo de conversa, quando julgou ter adquirido certo grau de intimidade,Yago perguntou sobre as geladeiras.

3

“Elas servem para manter os desejos congelados”, Narcisa respondeu com certo ar de intolerância. “Todos os desejos que não puderam ser realizados ficam guardados aqui, congelados nas minhas geladeiras”. Yago não entendeu ao certo o que ela quis dizer e deixou escapar:

“Eu tenho um desejo que nunca poderei realizar”.

“Não se engane, todo desejo pode ser realizado”, ela retrucou e começou a sussurrar, “Só há uma coisa que pode impedi-los”, ela fez uma longa pausa, respirou fundo e disse: “a Morte”.

Yago respirou fundo, pensou um pouco e acrescentou, “Foi a morte que levou minha mãe, por isso nunca poderei conhecê-la”.

Narcisa ficou calada, como se um estalo tivesse lhe alertado para alguma coisa, algo que já havia lhe ocorrido desde o instante em que botou os olhos naquele garoto, algo que a fizera esconder sua rabugice e impaciência, algo que a havia feito convidá-lo para entrar, que a havia feito sugerir a limonada e que cuidadosamente havia conduzido a conversa até ali. Aquele sentimento cuja força havia guiado Narcisa, até então era obscuro, apenas uma sombra ou um reflexo. No entanto, quando Yago mencionou sua mãe, Narcisa pôde ver tudo com mais clareza.

Sempre teve aquele emprego ingrato, sempre assistiu aos desejos serem esquecidos e silenciarem-se congelados. Ouvia noite após noite as vontades daquelas pessoas agonizarem, presas naquelas esferas de gelo, todas aquelas vozes desesperadas gemendo por uma chance de realizarem-se, suplicando, implorando. Narcisa cresceu assim e depois envelheceu assim, enlouquecendo aos poucos. Conhecia cada um dos desejos que guardava, cada sentimento frustrado e esquecido e inevitavelmente uma vontade inexplicável surgiu em seu coração. Há algum tempo, em uma noite seca e fria, quando os desejos congelados estavam prestes a sufocá-la, uma resposta simplesmente apareceu diante dela. Ela decidiu tentar realizar aqueles desejos e desde então começou a perseguir pistas e qualquer sinal de algo que pudesse realizá-los. Ela entregou-se por completo a essa tarefa, mas ainda assim não foi o bastante. Parecia haver algo que trabalhava contra ela e sempre que estava próxima de encontrar algo de concreto, alguma pista que levaria a realização, esbarrava em sua maior inimiga: a Morte. Ela era a única força, o único obstáculo que poderia de uma vez por todas impedir que um desejo se realizasse. Era como se a morte pudesse cortar a linha que unem os homens aos seus desejos e depois de separados era impossível ligá-los outra vez, aliás, quase impossível.

Narcisa estremeceu, estava diante da oportunidade de contrariar a morte. Como ela não pensou nisso antes? A morte corta o fio de um desejo e isso faz com que a maior parte deles morra, mas, e se cada uma das pontas do fio cortado tornar-se um desejo? Se elas começarem a se procurar, como duas partes de um único desejo, como duas faces que desejam se tornar a mesma moeda? Era essa a resposta que Narcisa procurou por muito tempo: um desejo tão forte que pudesse ser divido e ainda assim permanecer vivo.

4

“O que houve?”, Yago lhe perguntou, “Você ficou tão quieta?”

“Eu só estava pensando em uma coisa”, ela respondeu ainda com os pensamentos muito longe dali.

Continuaram conversando mais um pouco, até terminarem as limonadas. Narcisa, então, começou a interrogar o garoto para confirmar suas suposições. Aos poucos, ele lhe contou sobre a morte prematura de sua mãe e que não pôde conhecê-la, nem mesmo quando ainda era um bebê. Contudo, todos os que estavam a sua volta lhe contavam sobre a grande vontade que ela tinha de conhecê-lo, uma vontade que alguns pensavam ser mais forte do que a morte. “E talvez fosse”, Narcisa pensou. Enquanto conversavam, Narcisa mostrou a Yago alguns dos desejos congelados, mas, para ele, não eram mais do que bolinhas de gelo empilhadas muito perigosamente.

“Esses são os desejos, Yago. Todos os desejos que não se realizaram e quero que você me faça um favor”, ela estava um pouco nervosa, aquele momento era decisivo. “Suba essa escada”, ela apontou para o lance de degraus atrás dele, “E encontre uma geladeira na última sala, traga para mim o desejo que está guardado nela”

O menino olhou-lhe com um misto de medo e desconfiança, mas não ousou contrariá-la. Voltou-se para a escada e começou a subir. Os degraus de madeira velha rangiam sob seu peso, mas resistiram e lavaram-no até o corredor completamente escuro. Quando adentrou no escuro, as trevas envolveram-no, sentiu-se em um abraço invisível, como se abraçasse o nada e o medo lhe apertasse as costas. Continuou andando, vagarosamente, mal levantava os pés do chão. Pensou em desistir, mas aquele pedido lhe pareceu algo tão importante e ninguém lhe pedia para fazer algo importante, não poderia decepcioná-la. Então, espantou rapidamente aquele pensamento e encheu-se de uma coragem indestrutível. Caminhou com toda a calma, tateava as paredes em busca da última porta e logo bateu com o nariz nela. Levou a mão até a maceta e com cuidado a abriu.

Lá dentro, o escuro era ainda mais medonho e parecia deslizar pelo seu corpo, como vento feito de noite. Ele fechou os olhos, precisava de mais coragem, seu coração já estava disparado e só uma coisa lhe trouxe força. Pensou em sua mãe, em tudo o que ela representava para ele. “É possível pensar em alguém que nunca conheceu? Em uma sombra?” Ele ouviu uma voz, um sussurro, deixou seu coração levar-se por ele. Quando abriu os olhos, havia trombado com uma geladeira, abriu-a e uma luz amarela ofuscou-lhe os olhos. Lá no fundo havia uma única bolinha de desejo, Yago a pegou com cuidado, era fria e muito frágil. Fechou a porta e foi mais uma vez abraçado pelo escuro. Refez seu caminho, mas dessa vez tudo parecia mais distante e, enquanto andava, o desejo congelado começou a derreter. Antes que pudesse emergir do escuro, o fio da realidade juntou-se a ponta que se soltara do gelo e um desejo se refez e, no momento certo, se realizou.

5

Uma mulher esperava ansiosamente. A morte lhe espreitava, mas sua vida ainda era mais forte, havia algo que lhe impedia de cair no abismo. Alguma coisa no escuro lhe arrancou um sorriso: um par de olhos brilhantes e um rosto que sempre sonhou ver. O escuro abriu suas cortinas e Yago apareceu diante dela. Havia um silêncio imenso, mas uma emoção ainda maior. Eles se abraçaram, por um momento seus corações se encontraram, bateram juntos, e tocaram uma melodia que só os corações conhecem. Desfizeram o abraço com muito pesar e antes de soltarem as mãos, olharam para o fundo um do outro. “Nunca mais se separariam”. Não disseram nada, apenas sorriram, como sempre sonharam em fazer. Yago abraçou sua mãe e sussurrou uma música, um sentimento para que ela pudesse dormir durante aquele infinito último momento de vida.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 03/05/2009
Reeditado em 12/09/2010
Código do texto: T1574106
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