Sobre anjos e Homens - 3ª Parte
Escuro demais para se enxergar algo, frio demais para se sentir algo. Cada um deles possuída uma história própria, agora esquecida. Ela não importava mais. Eles só eram almas vazias vagando, num lugar tão vazio quanto eles. Lugar onde apenas roseiras cresciam, rosas vinho, cor de sangue. Sangue que eles próprios haviam desistido de ver, sangue que desistiu de correr pelas veias de cada um deles.
O céu lembrava uma madrugada fria de outono, as estrelas não brilhavam. A Lua alta, minguante, assombrava um céu sem nuvens. Aquele céu nunca havia visto alvorada ou pôr-do-Sol, lá sempre fora noite. A Lua parecia poder tocá-los docemente, apesar de eles não mais sentirem.
O ar era cinzento e horrível de se respirar. O frio entrava nos pulmões e parecia congelar o oxigênio dentro deles. Tudo ali fora amaldiçoado, tudo. Terra esquecida por Ele. Terra que era de preferência ser esquecida, e jamais conhecida. Pois, bem longe do paraíso ela era.
Uma terra onde os corações dos guardiões das almas eram mantidos. Alimentados com amor, amor não correspondido. Fazendo jus à rima “amor, dor, rancor”. Mas, voltarei aos anjos mais tarde...
Almas cegadas pela luz que nunca viram. Almas ensurdecidas com o canto que nunca ouviram. Almas mudas graças ao berro que engoliram durante muito tempo. Almas vazias em sua essência. Almas sem valor, almas cuja causa da morte fora o amor.
Lugar de ninguém, onde não havia alegria. Ali, apenas medo, miséria, dor, fome, tristeza, sofrimento e rancor desabrochavam das rosas vinho que nasciam em todo lugar. Presente. Lembrança da maldição.
Pessoas sem rosto, sem nome. Nada mais importava. Quem entrava naquelas terras, ali estava fadado a viver a eternidade, vagando pela felicidade que julgaram nunca ter visto. Vagando sem sentindo, vagando sem nome, todos eles viviam, agora, em seu além túmulo, sua própria realidade, em paz.
Um lugar onde a esperança havia desistido de sobreviver, assim como o certo e o errado. Na terra sem nome, almas perdidas, que haviam saído de seu caminho, mas haviam chegado à conclusão de que qualquer um deles levava para o mesmo lugar.
Mas, minto quando digo que este lugar não tem nome. Tem, e é o mais perturbador que possa existir. Este que descrevo é o inferno dos que desistiram. Desistir de viver. Ah, poucos imaginavam que aquilo poderia ser pior do que sua vida, já que eles eram condenados a vivê-la pela eternidade.
Observando os rostos, é possível reconhecer uma alma inquieta, que corre de lá para cá. Era possível notar que a era nova naquele lugar. Digo, nova em sentido figurado. Pois sua alma, apesar de jovem, era tão velha quanto a idade da Terra. Amor, o que você fez?
Contarei-lhes a realidade que passava em seus olhos:
- Já te demos uma segunda chance. Não soubestes aproveitar. Viestes para cá, novamente. Não posso fazer nada por ti, apenas quem podia te ajudar era ti mesma. Agora, nada poderei fazer. Condenada será. É o que me resta, pequenina. Apaixonastes-te por um rapaz, lembra-te?
- Lembro-me com clareza do dia em que dei meu coração inteiro para ele. Recordo-me com tristeza do dia em que me proibiram de viver a “vida” que tinha e amá-lo. “Anjos não amam, então, aqui, não amarás. Assim, banida do paraíso será”, foi o que me disseram. Deram-me a chance de viver na terra, numa outra encarnação, ao lado dele. Mas, esqueceram de explicar-me como viver. Esqueceram de prevenir-me sobre que amor não era um sentimento certo. Agora, veja onde estou! Condenaram um anjo a viver no inferno das almas que desistiram! Pregam viver amor, eu tentei vivê-lo, mas, olha o que me trouxe. Apenas sangue. Tenho vivido apenas sangue, desde o primeiro dia em que pisei na Terra. Eu odeio o amor.
- Não fale uma coisa dessas! Um anjo não falaria isso. Que blasfema!
- Pois tenho uma novidade para ti. Proibida de ser um anjo fui. Cai por terra teu argumento. Trate de arranjar um melhor, pois com esse, não conseguirás manter-me neste lugar.
- Sua escolha, minha cara. Nenhuma culpa tenho se quisestes trocar o que tinhas pelo amor. A partir do momento em que decidistes ter amor no coração, escolheste ser uma mortal. Infelizmente, este foi teu destino... E, de todo jeito, continuarás sendo um anjo.
- Não há nada que possas fazer? O problema não é ficar aqui pela eternidade. O grande problema é ficar a eternidade aqui sem vê-lo... Ou melhor, vê-lo apenas nos pesadelos em que passaram em meus olhos todos os dias que não nascerão aqui. Como filmes em que o romance não deu certo. Como se eu fosse uma... Vilã!
- Minha cara, devias ter refletido sobre isso antes de fazer o que fizestes. Viverás pela eternidade, esta será tua prisão, infelizmente é preciso prender um anjo que sonhou com o amor.
- Agi com o coração. E este deve ser amaldiçoado, admito... Não estou pedindo para viver em liberdade, pois esta, fora tirada de mim, há muito. Desde que me apaixonei, vivo entre as quatro paredes apertadas de meu coração. Apenas o que peço, é voltar para lá, amá-lo eternamente. Pois já fui condenada à este fardo, estou disposta, então, a me sacrificar por ele... Suplico-te.
- Nada posso fazer por ti.
- Sabes que pode. Sou um anjo, assombrado pelo amor. Lembra-te dos doze anjos amaldiçoados? Eles ainda vagam pela terra, como semimortais, mas vagam. São a sombra dos que amam. Seus amados nunca darão um passo sem que eles saibam. Vós os colocáveis no esquecimento, há muito. Não sei por que, mas preferíeis. Que há de errado com eles?
- Veja o que estás colocando a mim! Nunca farei isto. Virastes um anjo enlouquecido pelo amor! Nunca existirá o 13° anjo! Nunca, podes me ouvir?
- Imploro-te aos joelhos. Sei que estou pedindo que amaldiçoe minha alma, sei disso. Mas, tudo o que eu queria era velar o sono dele, abraçá-lo, observá-lo por horas, tê-lo só para mim. Tudo o que eu queria era amá-lo e ter algo em troca. Vi, então, que ele não me ama. Não estou pedindo para que me dê seu amor, apenas estou pedindo para amá-lo numa condição de subvida de anjo, meu senhor. Eu falaria com Deus se fosse preciso, o que estou pedindo é o que pedi antes, amá-lo. Estou pedindo uma segunda chance, é só o que peço.
- Meu Deus! Estás dizendo-me que quer viver pela eternidade amando, sem ninguém te amar? Estás suplicando para que eu amaldiçoe um anjo que virou mortal, mas que continua sendo um anjo, de qualquer jeito? Estás implorando aos joelhos para que eu dê-te uma alma negra? Estás pedindo para ser a guardiã deste lugar que repugna?! Não posso acreditar.
- Ah, então é isso que eles fazem? São guardiões do inferno... Interessante.
- Explicar-te-ei o que eles são. São anjos exatamente em tua situação, minha cara. Desistem da vida de anjo para viver uma vida de desistência. Lembro-me de ter te alertado sobre o amor. Lembro-me de nós, nesta mesma condição. Engraçado, não é? No mínimo irônico. Não posso acreditar que estás às lágrimas por um humano.
- Nunca entenderias. Não sabes como é, não sabes. Tens sorte de não saber. Não sabes como é envolverem teu coração, e controlar cada batida. Não sabes como é controlarem teus pulmões, não ter sob teu controle o ar que entra e sai deles. Passas a ser movido por uma força que não tem origem nem fim. Passas a viver por alguém e para alguém. Ah, tens sorte de não saber. Por isso, peço para que me dê esta maldição, como meu último pedido.
- Sabes que ele não poderá te amar. Sabes. É a única regra “Viverás sobe absoluto controle de sua paixão, e, mesmo tendo uma vida semimortal, ele nunca poderá te amar”. Tens certeza de que é isso que queres? Agora ele sabe que tens amor por ele.
- Estou disposta a viver uma vida semimortal, apenas em função de meu único e eterno amor. Estou disposta a ser uma guardiã deste lugar, onde há almas como a minha, que desistiram por amor. Derramarei, todos os dias de minha vida eterna, lágrimas pelo amor que nunca receberei de volta. Viverei presa em meu coração até o fim de meus dias, e, quando eles acabarem, viverei presa em minha alma, que irá vagar como um anjo assombrado pelo amor. Estou completamente perdida em meu caminho, mas, pouco me importa, porque eu não consigo parar um só segundo de amar. Se há alguma maldição no mundo que possa ser boa o bastante pra mim, é esta. Estou completamente pronta para recebê-la, como meu fardo, pela eternidade.
- Então, que assim seja feito. Se tiveres certeza de que é isso que quer, não irei mais hesitar.
O homem que com ela fala, então, fechou os olhos lentamente, como um lamento silencioso. Refletia. Queria fazer milhões de perguntas sobre o amor, mas não podia, sabia disso. Todavia, tinha infinita curiosidade em saber como era ser enfeitiçado de tal maneira a desistir de uma vida sozinha e viver uma ao lado de alguém. Olhou, então, para o anjo que estava à sua frente, e imaginou como seria sua vida dali em diante. Deus, ele implorara por uma semivida... O amor realmente era algo tão forte que fazia tudo aquilo? A garota com quem falava, a qual não deixava de ser, parecia uma boneca de porcelana tão frágil quanto vidro. E agora, vira que seu coração era tão frágil quanto ela aparentava ser. Não foi por acaso que Ele a havia feito um anjo, pois tinha rosto mesmo de um. Não resistiu, diante daquelas circunstâncias, e questionou-a, uma última coisa:
- O que fizeste desistir de tudo por amor? Que tipo de feitiço é esse, que desconheço, com tal força que se faz possível um anjo ser corrompido?
- Pergunta impossível de responder. Nunca saberás a resposta se nunca o sentir. Só aconselho: Nunca te iludas com utopias. Elas podem tomar conta de tua alma e fazer do feitiço, um que nem o feiticeiro pode controlar. O feiticeiro és tu. Tens absoluto controle sob o feitiço, até alimentá-lo a tal ponto que não será mais dono de suas pernas, e passarás a ser controlado pelo impulso de teus sentimentos. Perderás o rumo, e teu guia será teu coração. Peço que tenhas cuidado com ele, é mais tentador que o demônio, e mais imprevisível que uma tempestade de verão. Fui corrompida por meu próprio feitiço. Nada mais que isso. E passei a ser iludida por mim mesma. Todo dia em que levantava, olhava para a alvorada e fazia uma pergunta para o Sol que nascia. A pergunta mais perturbadora que reinava meu peito: “Eu sou boa o bastante para ele me amar também?”. Foi essa pergunta que me corrompeu. Este é o feitiço que desconheces?
- Este mesmo. É dele que falo.
- Então, nunca te submetas a ele. Se te submeteres, saberás que basta quem ti amas desejar teu coração, que ele estará sangrando na mão dela. É uma doce decadência. Não a beba por inteiro.
- Escuto o que falas com atenção, e tuas palavras guardarei. Mas, sei que a paixão de que me falas, nunca entenderei. Agora, apenas farei o que tenho para fazer. Amaldiçoarei o 13° coração de anjo, com o amor. Boa sorte, minha cara. Ele há de amar-te, e voltarás. Sabemos que não é a última vez que nos vemos.
- Sei disso, mas, não voltarei a fazer-te outro pedido. Meu próximo destino será o eterno. E sei bem o que estou fazendo... Acho que meu destino será vagar como anjo o resto da eternidade. Espero que saiba o que estou fazendo...
- Amém.
Ela, então, voltou ao mundo dos vivos, mas agora, como semimortal, como pedira. Que feitiço era aquele? Será que um dia o homem que a julgara iria entender? Ele, apenas, desejou, de olhos fechados, que ela realizasse o seu mais profundo desejo... Um anjo que amava, agora o décimo terceiro anjo.