O último malandro – Giselle Sato 
 
Definitivamente eu estava vivendo um pesadelo. Há algumas horas,  tomei um porre no meu botequim preferido.
Sim! Sou tradicional e fiel aos velhos hábitos.  Homem da noite e quem sabe o último malandro da velha Lapa. Bairro  de respeito onde muito valentão tremia quando não sabia entrar. Sabe como é... Tem que ter compostura e  modéstia à  parte nisso sempre fui cuidadoso.

Mas chega de lembranças e vamos aos fatos. Acordei em um quarto estranho e não sei como cheguei aqui... Além do pé de meia embaixo da cama, não tenho pistas de onde estou nem com quem estive. Esqueci de mencionar: É uma meia feminina de seda 7/8 com renda francesa. Coisa fina.

Podia ser mais uma ‘’arte’’ de Madame Clessi ... Seria uma brincadeira deliciosa. Dama maliciosa e capaz de enlouquecer qualquer mortal. Mulher divina! Mulher! Preciso  parar com estes delírios... Não lembro há quantos anos  estive com uma mulher.  O tempo machuca um homem sem piedade.

Noventa  e nove anos  não são cem! Oras bolas! Ainda não estou senil e  não conheço este quarto. Paredes pintadas de rosa, penteadeira cheia de perfumes e pó de arroz. Um biombo  dourado traz  recordações do  bordel na rua da praia. Famoso pelas loirinhas de olhos claros. Ah! Aquelas polacas  eram tão falsas quanto o uísque  servido pelas criadinhas. Lindas meninas em uniforme preto e avental engomado:- Aceita um uísque cavalheiro? Aceita um charuto cavalheiro?

Eu aceitava é claro... e passava  a mão atrevida nas pernas roliças das moças. Elas riam e sussurravam:- Mais tarde se quiser, tenho um quartinho aqui perto.

Nunca deixei de conferir a doçura de um sorriso faceiro. Como fazia sucesso entre as moças, nunca fiquei muito tempo sem companhia. Andava  de  terno branco impecável e chapéu feito por encomenda. Ainda conservo alguns hábitos,  e por isso me julgam estranho. Mundo moderno de gente apressada,  que não sabe cumprimentar nem parar para um café. E torcem o nariz para a nostalgia. Bando de gente sem passado!

De repente começo a me questionar. Será que fui feliz na juventude?  Sempre sonhei em acabar nos braços de uma linda mulher. Morte gloriosa! Morrer de prazer! Final que todo bom malandro deseja. Ao invés disso,  passei a vida inteira atrás de uma mesa em uma repartição pública. Cheirando a bolor e arquivo morto. A morte sempre me acompanhou  na  esbórnia.  Espreitando. Mas eu sou sagaz! Ainda estou na área.
Acho que foi assim que nos tornamos íntimos. Esta peleja com a morte persiste ... E como ela  é insistente! Em comum temos a solidão e o tempo. Sou teimoso demais para dar o braço a torcer. Ela é paciente e sorrateira.

Testemunhando o fim dos ciclos em silencio e saudades, fui me tornando sorumbático e triste. Não sei...   Ainda insisto em caminhar pelas ruas desertas  todas as noites. Mas de uns tempos pra cá ando muito cansado.

O biombo ainda me olha cúmplice e suspiro  pela doce Lulu. Ela brincava de esconder e tirar peças naquela lentidão enlouquecedora. Uma coisinha delicada que forçava o sotaque e  caprichava no beicinho. Tinha pés  tamanho 35 e  unhas em meia lua claríssima. Pés de fada, anjo,  princesa e rainha. Pés inesquecíveis! Minha única paixão. Não sei como pude deixar que fosse embora.

O mundo abriu-se em cores! Eram dela. Só podiam ser... Lulu usava aquelas malditas meias de seda rosadas. Onde estaria escondida? A danadinha deixou a meia só para instigar e eu parecia um garoto novamente. 

Estranho... Só agora notei que não há janelas nem portas neste quarto.  A  meia exala um perfume adocicado de jasmim. É o cheiro de Lulu ... Finalmente tomo coragem e contorno o biombo... 
 
 

Nota: Madame Clessi é personagem de Nelson Rodrigues. Uma forma de homenagear minha fonte inspiradora neste conto.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 27/04/2009
Reeditado em 26/05/2009
Código do texto: T1561917
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