A Escolha

Todas elas nascem da mesma forma, crescem e são criadas da mesmíssima maneira. Possuem o mesmo corpo encantador, as mesmas longas madeixas, as cores variam, mas o encanto é o mesmo. Os olhos podem ser de qualquer tom, foram pintados pelo arco-íris, tanto faz se claros ou escuros, todos carregam dentro as mesmas fagulhas de um fogo imortal. O que pode diferenciá-las é o desejo de mudar, de querer sentir as dores e as delicias de serem humanas. Mas isso só ocorre com poucas. Na verdade isso é um castigo, que amaldiçoa apenas uma a cada 1000 anos. E até hoje não conhecemos nenhuma que tenha verdadeiramente conseguido virar humana.

Ela nasceu em uma fresca noite de primavera, mesmo que ali todos os dias se assemelhassem ao verão, as estações ainda existiam para nós, que aqui fora estávamos. Sua pele era pálida, assim como a lua cheia que iluminava aquele lindo céu; os seus olhos eram de um forte dourado, parecido com os primeiros raios do sol. E seus cabelos eram tão escuros como a noite costumava ser, quando a rainha noturna, por capricho, resolvia se esconder.

Cresceu, e as únicas coisas que carregava daquela que lhe gerara era o nome, Isis, e o medalhão em formato de lua. Desde pequena, sabia que pertencia à noite e adorava cantar. Não que esse não seja um dom comum nas da sua espécie, pois todas sabiam cantar belamente, mas na moça ele era incomum, pois não cantava para seduzir mas sim, para ser capaz de viver, não cantava por obrigação, mas para aliviar o seu coração dos tormentos que sentia por não conseguir compreender muito bem o seu mundo.

Passava os seus dias na água e sonhava em poder um dia, quem sabe, conhecer a terra, sonhava com o amor, com aventuras, mas, quando abria os olhos, entendia que sonhos eram apenas sonhos, e a sua realidade, apesar de envolta em grande fantasia, não pertencia ao mundo dos finais felizes. Sua avó, que a criara, havia contado casos de algumas que tinham conseguido se tornar humanas, mas dizia que era muito difícil, pois não bastava apenas a questão do sentimento, mas também indispensável existir a vontade individual de mudar, vontade essa que não era muito comum nas de sua espécie.

A Noite dos Encantos chegara. Ela já conhecia o ritual, na verdade estava até meio cansada dele. Mas lá estava Isis olhando para lua, preparando sua voz, ajeitando o cabelo e esperando o primeiro barco da noite aparecer cortando as ondas. Mas, naquele dia em especial, estava tudo muito diferente, ela se sentia um tanto quanto melancólica com tudo aquilo, com toda aquela sedução que não dava em nada, com o seu canto que não possuía sentimento, com o dever de trazer um prisioneiro para a Ilha dos Prazeres, com todo aquele ritual que não era do seu agrado.

Quantas mulheres ela já fizera chorar, quantas mães passavam os dias a olhar para o mar esperando o regresso de seus filhos, quantas meninas soluçavam durante a noite olhando pra uma foto no porta-retrato e ansiando pela volta de seus namorados, quantas esposas olhavam para os filhos e viam em seus olhos traços do amado que o mar não deixava voltar. Mas ela não podia perder tempo pensando em coisas que não conhecia, não passavam de sentimentalismos bobos que ela lia em seus livros ou cantava nas suas músicas prediletas, sentimentos que ela não conhecia e que jamais conheceria, pois não era da sua natureza amar.

Isis viu o barco se aproximar, não era como os outros, era menor e tinha apenas um homem a bordo ela se escondeu entre as pedras e olhou para sua vitima nunca tinha feito isso antes, pois os homens eram suas presas, não deveriam jamais ver uma delas, nem elas deveriam vê-los eles tinham apenas que ouvir o Canto dos Amores até que todos os seus sentidos fossem sumindo e então ela os trazia enfeitiçados para a ilha. Mas, pelo menos uma vez, a menina gostaria de ver como era o seu despojo, já que, depois que começasse a cantar, não lembraria mais nada e acordaria, na manhã seguinte, nas pedras, com um enorme sentimento de culpa.

A menina o olhou, era um homem bonito, com os olhos da cor do mar revolto, tinha os cabelos e a pele clara, a rala barba o fazia aparentar idade. A moça o olhou e começou a cantar, mas não era o Canto dos Amores, era aquilo que seu coração mandava. Ela estava a olhar pela primeira vez, para um homem, o seu homem, e ela sentia uma vontade incontrolável de cantar... E cantava...

Sereias não podem amar, sereias têm apenas que cantar, inebriar os homens de paixão, dominá-los, ser um objeto de desejo, levá-los à loucura. Elas não têm sentimentos, nem valores, são feitas apenas de instintos. Mas ela era diferente, ela queria mais, não queria ser a perdição e sim a salvação, e o seu canto tinha sentimento, tinha vontade... Tinha o hálito da lua, o tom da verdade, a altura do céu, a intensidade de uma tempestade, a duração da eternidade...

Ela olhou fortemente para os olhos do homem, sabia que não o amava, sabia o tinha que fazer, mas não fazia. Ela queria ser ela mesma, agir por seus próprios desejos, tinha dentro de si a certeza de que ninguém era obrigada a seguir um mesmo caminho por toda a vida, que o importante era ser feliz, fazer aquilo que verdadeiramente lhe dava prazer mesmo que o mundo a julgasse, mesmo que os deuses a condenassem, ela conseguia ver naquele homem a sua liberdade.

A doce menina queria um sonho, foi-lhe dada uma realidade, uma realidade diferente, uma realidade contraditória que fazia com que se sentisse igual e, ao mesmo tempo, completamente diferente. E ela não aceitou essa realidade, ela quis mais, ela decidiu mudar e seguir aquilo que seu coração verdadeiramente almejava. Ela virou mulher.

Isis foi se levantando através da espuma do mar carregava nos braços uma pequena lira de ouro; nos cabelos, uma coroa de conchas das mais diferentes cores os seios estavam à mostra, e sua metade peixe tapada pelo mar. Pela primeira vez, um homem viu uma sereia, uma bela mulher que cantava uma lírica canção e que surgia do mar. Pela primeira vez, um homem não foi arrastado por suas canções, foi conduzido ao caminho certo, já que se encontrava perdido. E assim foi guiado até chegar bem perto do seu destino.

A jovem ficou ali cantando até ele se afastar. Isis fez aquilo que considerava certo, aquilo que realmente desejava. Já chegando próximo à areia da praia sentia suas pernas cansadas, sabia que tinha negado a sua espécie, que agora poderia estar olhando para lua, alimentada, conversando com as suas irmãs... Ela olhou para o mar pela última vez, uma lágrima se misturou à água salgada não era tristeza nem remorso apenas alivio. Aos poucos, foi se afastando, não tinha mais certeza de nada, não sabia nem se iria sobreviver na terra, mas sabia que, por mais tortuoso que fosse o caminho, era o caminho certo. E lá se foi sem olhar para trás.

***

Isis carregava o nome da Deusa da Lua, e sua fiel amiga resolveu lhe dar um presente por toda a coragem que a menina mostrou mesmo sem saber. A lágrima de Isis foi transformada em estrela, é a primeira que aparece no céu nas noites de lua-cheia é ela quem mostra, para os navegantes, o caminho contrário ao do canto das sereias, é ela quem conforta seus sonhos quando a saudade de suas amadas os maltrata, é a estrela do amor verdadeiro, é um farol no céu que guia sempre para o lado da verdade. E assim Isis ficou eternizada.

Bella Luna
Enviado por Bella Luna em 26/04/2009
Código do texto: T1561856
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.