Bárbaros (Parte 5 – Final)
O cerco estava novamente armado em torno das altas muralhas que protegiam a cidade.
Soldados e cavalos pisoteavam a grama ainda não recuperada que agora se tornava apenas uma pasta verde morta. O nervosismo e a ansiedade compunham cada homem ali presente, mas a sede de sangue era outra força dominante.
Fora o som do aríete arrebentando-se contra a porta de madeira, os homens mantinham-se em silêncio observando o vai-e-vem do instrumento que finalmente parecia mostrar algum resultado. Rachaduras eram formadas e lascas se soltavam da forte madeira que compunha o portão.
- Parece que seus amigos finalmente chegaram para tentar te salvar! Tolos! – o bárbaro riu enquanto estendia a chibata.
- Eles estão aqui para arrancar todas as cabeças nojentas de vocês! - Luck vociferou entre os dentes deixando escapar algumas gotas de sangue pelos cantos da boca.
A chibata descreveu um arco perfeito e bateu com força no peito dele, a pele outrora machucada pela água fervente agora se abria em fendas sangrentas, mas ele conseguiu segurar o berro de dor na garganta, não daria mais esse gostinho ao carrasco.
Os três nobres bárbaros estavam sentados confortavelmente em frente a maior casa da cidade, aguardando, certos da vitória. Dez guardas estavam por ali para protegê-los e também alguns caixotes com conteúdo importante que estavam guardados dentro da casa.
- Isso vai demorar a manhã inteira se continuar assim – um deles se queixou enquanto coçava a cabeça, os cabelos compridos e desgrenhados se embaraçavam em um nó sem fim nas costas, mas ele parecia não se importar enquanto entremeava os dedos para alcançar o couro cabeludo.
- Tem razão, estou ficando entediado – disse outro enquanto levantava-se e espreguiçava-se, o corpo alto do nobre não era dotado de muita musculatura, mas o ouro cobria grande parte do semblante desnudo.
- Gostaria que eles derrubassem aquele portão de uma vez, pelo menos íamos ter alguma diversão – o terceiro falou enquanto limpava a unha com uma faca comprida.
Um dos guardas disfarçou uma risada com um acesso de tosse, mas foi notado pelo nobre que resolveu tirar satisfação:
- Seu escroto, quer falar algo? Estava rindo do quê?
- Nada não senhor, desculpe-me! – ele disse com os olhos baixos, mas sabendo que todos os soldados e nobres ali tinham os olhos nele.
O nobre ergueu a mão coberta de anéis e desferiu um tapa que atingiu em cheio o rosto do guarda, deixando ali a marca dos dedos e das jóias. O guarda engoliu em seco a raiva que brotou em seu ser, mas não iria agüentar por muito tempo.
- Que foi? Não gostou? – perguntou o nobre.
O guarda limitou-se a não responder, virando-se para contemplar a rua deserta da cidade. Ele mantinha os olhos fechados tentando controlar o ódio, quanto sentiu sua pele das costas ser cortada pela lâmina da faca do nobre. Seus reflexos foram rápidos, ele sacou a espada, virou-se e deixou o adversário na ponta de sua lâmina.
Os guardas aprovaram a luta, nenhum deles parecia gostar muito daqueles nobres que não respeitavam ninguém. Aplausos e incentivos eram ouvidos dos dois lados.
O nobre ajeitou a faca na palma da mão e começou a andar em círculos, fazendo com que o guarda repetisse seu movimento. O bárbaro mantinha o nobre na ponta de sua espada, os pés arrastando-se lentamente no monótono jogo do círculo, ele logo se cansaria e cravaria a espada, o mundo não perderia ninguém importante, isso era certo.
O nobre tropeçou em seu pé, ou pareceu tropeçar, fazendo o guarda perder seu alvo no mesmo instante que jogava sua faca certeiramente no peito do guarda, que gemeu de dor e caiu de joelhos no chão empoeirado.
Os nobres aplaudiram a performance do colega e começaram a trocar o ouro das apostas.
- Tirem esse verme daqui! – um deles ordenou para os outros guardas que limitaram-se a aceitar o destino.
A ponta afiada do aríete finalmente conseguiu criar um buraco na madeira sólida do portão. Assim que o instrumento foi puxado dezenas de flechas voaram pelo buraco atingindo alguns dos homens que o manuseavam.
- Droga! Patifes covardes! Quero arqueiros aqui agora! E tragam alguns escudos! – o comandante da cavalaria berrava a plenos pulmões.
Não demorou a ser atendido, uma dezena de arqueiros e meia dúzia de escudeiros ofereceram-se para o trabalho. O aríete continuava seu trabalho de vai-e-vem quebrando a madeira, enquanto as flechas voavam dos dois lados quando a abertura ficava à mostra.
Luck estava aprisionado num casebre próximo ao portão da cidade, de lá era possível escutar os gritos dos comandantes sobre os homens, o retesar das cordas dos arcos e o constante barulho do aríete.
- O que aqueles imbecis estão fazendo lá fora? – o bárbaro rosnou cuspindo ao chão.
- Já falei! Preparando a morte de todos vocês! – Luck arriscou.
- Cala a boca seu patife! – o carrasco gritou se aproximando do prisioneiro.
A raiva fazia suas narinas dilatarem, a respiração ruidosa foi interrompida por um pigarreio, e em seguida o bárbaro cuspiu na cara de Luck. Este não demorou a revidar, e aproveitando a aproximação de seu rival encheu a boca de sangue e saliva e jogou contra o homem que sentiu o líquido escorrer pelo nariz indo molhar a barba loura.
- Seu verme, você não devia ter feito isso! – o bárbaro retirou uma faca longa de uma bainha presa à coxa e testou o fio no dedo, gotas de sangue pingaram ao solo, ele sorriu satisfeito.
A lâmina cortou a pele no pulso de Luck, o sangue fluía livremente. O bárbaro deslizou o corte pelo braço, e em seguida começou a separar a pele dos músculos, como se estivesse preparando um pedaço de toucinho. Nervos e vasos eram rompidos sem misericórdia. A dor agonizante fez Luck tontear, ele já havia perdido muito sangue e lutava contra suas próprias forças para não desfalecer.
O bárbaro limpou a lâmina no peito machucado do homem e se preparou para efetuar o mesmo corte no outro braço.
O portão ruiu caindo em pedaços ao chão, a passagem estava finalmente aberta. O aríete foi rapidamente retirado do lugar dando espaço para dezenas de homens sedentos de sangue invadirem a cidade.
- Homens! Dizimem esses imbecis! Escudeiros na frente, lanceiros em seguida! Cavaleiros comigo!– o comandante berrou dando ordens.
- Fiquem de olho para ver se encontram o comandante Luck! – um aviso alertou todos os homens.
Centenas de flechas foram disparadas na direção da abertura, a maioria foi amparada pelos escudos, e as que não o foram acabaram não atingindo alvo algum. Os guerreiros giraram os escudos procurando uma parte limpa enquanto quebravam as flechas com as espadas.
Outra saraivada atingiu a sólida defesa, e da mesma maneira apenas algumas flechas não ficaram cravadas nos escudos.
- Arqueiros! – um berro de comando veio da parte externa do portão. As flechas voaram como chuva para dentro da muralha, dezenas de arqueiros foram pegos sem proteção tombando ao solo.
- Agora! Ataquem à vontade! – o comandante da cavalaria ordenou.
Os escudeiros se separaram sacando as espadas, os lanceiros corriam em seguida cravando suas armas no peito dos bárbaros. Os cavalos corriam à frente da massa de soldados que deseja entrar na cidade, as lanças apontadas para frente procuravam algum alvo fácil. O comandante da tropa de cavaleiros cavalgava com alguns de seus homens, seu destino era o coração da cidade.
Oito bárbaros cruzaram o caminho deles, os cavalos reduziram a velocidade frente ao obstáculo, mas os cavaleiros não se amedrontaram. Cutucaram o flanco dos animais e postaram suas lanças a frente. O comandante mirou a barriga de um bárbaro que portava um grande sabre, a velocidade que o cavalo tomou era suficiente para atravessar o homem sem muito esforço de seu braço, mas mesmo assim ele usou sua força quando atingiu em cheio o corpo do homem, a ponta da lança saiu pelas costas. Enquanto o adversário se esvaia em sangue e dor, ele deixou a lança nele e partiu para cima de outro bárbaro, espada em punho, pronto para decepar a cabeça do homem desprevenido. O impacto não foi suficiente para cortar as vértebras do pescoço, mas as veias estavam cortadas, e o homem se afogava em seu próprio sangue.
- Vamos, pela direita! – eles estavam em uma bifurcação, mas aquele caminho parecia que levaria diretamente à sede da cidade.
No fim da rua eles avistaram uma enorme construção de barro, madeira e palha. Ao ouvir o som dos cascos oito bárbaros se destacaram, armas em punho, prontos para a batalha. Os outros três permaneceram sentados à frente da casa.
Um cavalo perdeu o controle devido à velocidade e acabou batendo em uma pilha de barris de água. O ruído e a água respingando não foram suficientes para distrair o comandante que estava focado no maior dos bárbaros. A calça surrada do homem estava suja devido à poeira, o corpo estava suado pelo calor matinal, mas ele girava uma espada habilmente na mão, e exibia um sorriso satisfeito no rosto.
- Finalmente vamos ter um pouco de diversão! – o bárbaro comentou para seus colegas.
Ele correu ao encontro do cavaleiro, as duas mãos no punho da grande espada, ele girou a espada no ar e cortou, o cavalo caiu com o pescoço perfurado. O comandante ergueu-se rapidamente e partiu para cima do atacante. Espada em punho segurando o escudo no outro braço.
Ele amparou um golpe com o escudo e projetou a espada em direção ao braço do bárbaro que conseguiu se desviar e em seguida revidava o ataque com uma estocada precisa. O cavaleiro girou o corpo detendo a espada com a sua, os homens competiam sua força no punho da espada, o bárbaro levou vantagem por usar as duas mãos.
O comandante aproveitou a fresta na ataque e distanciou-se do inimigo que o encarava com ódio. Os pés impulsionaram o corpo em direção ao ataque, os dois combatentes se jogaram na luta, a espada longa do bárbaro atingiu o flanco do comandante que apenas arranhou a perna do inimigo.
O sangue descia pela ferida banhando-lhe a perna, o comandante usou todo seu fôlego restante para sua tentativa final, a perna descreveu uma rasteira no chão derrubando o bárbaro ao solo, e ele derrubou-se sobre sua espada fincando-a no peito do homem. O sangue jorrava de ambas as feridas empapando o solo. O bárbaro tossiu afogado no sangue e morreu.
A batalha ao seu redor era intensa, sete bárbaros e seis cavaleiros estavam tombados. Os dois que restavam lutavam no meio da rua em nível de total igualdade, o comandante observava a cena quase desfalecendo.
- Desse jeito vamos morrer! Malditos! Você disse que eles não invadiriam a cidade! – um dos nobres queixou-se com medo.
- Cale-se! Pense em algo útil ou não fale nada – ralhou outro nobre franzindo a testa enquanto tentava encontrar alguma solução.
Longe dali, próximo ao portão arruinado os bárbaros eram pouco a pouco derrotados, a vitória estava garantida.
- Luck! – um soldado gritou quando adentrou o casebre - Encontei o comandante! – foi tudo que ele conseguiu gritar antes de ter o pescoço cortado fora a fora pelo bárbaro.
- Que venham! – o bárbaro falou postando-se para a batalha, enquanto três outros homens passavam pelo batente.
Ele abaixou o corpo jogando o peso sobre as pernas, em uma das mãos tinha a espada que antes usara para destruir o braço de Luck, na outra trazia uma espada curva. Ele girava as mãos habilmente não demonstrando o menor medo dos oponentes.
Os soldados entraram, se postando rapidamente um de cada lado do bárbaro, as espadas em punho enquanto giravam ao redor do homem.
O bárbaro saltou sobre o homem aparentemente mais fraco, a espada chocou-se contra a dele, mas no mesmo momento ele recebeu dois golpes, um nas costelas e outro nas pernas, dos outros dois homens. O sangue flui e ele perdeu o equilíbrio. Segurou a faca com mais força e tentou fincá-la no ventre do homem, mas este se esquivou enquanto um movimento certeiro de outro homem arrancava o pescoço fora. O corpo dele caiu jorrando sangue pelas veias cortadas deixando o solo banhado.
As amarras foram cortadas e Luck caiu sem forças sendo segurado por dois soldados, então ele desmaiou, agora estava aparentemente seguro.
A cidade foi tomada, alguns bárbaros se renderam, outros tentaram em vão fugir e foram mortos. Amarrados em um tronco próximo ao portão estavam os três nobres, seriam levados aos calabouços da cidade real, o rei decidiria o que fazer com eles.
Caixas e mais caixas eram retiradas de dentro da cidade que já estava sendo saqueada pelos soldados e outros ladrões oportunistas. O conteúdo delas já havia sido desvendado, a surpresa de Luck enfim tinha mandamento, elas estavam recheadas de uniformes dos guardas reais.
- Comandante de Guerra Luck, nós agora o condecoramos por sua coragem e sua lealdade para com seu exército. Esperamos poder contar com sua força por muito tempo! Dessa vez escapamos de termos infiltrados em nosso meio, mas pode ser que não tenhamos a mesma sorte da próxima vez, conto com sua observação!
- Espero estar entre vocês por muito tempo também, com os olhos bem abertos pra pegar qualquer bárbaro! - Luck apertou a mão do rei, seu braço ainda estava enfaixado, seu corpo já havia se recuperado parcialmente, mas ele sabia que aqueles bárbaros retornariam, e quando eles voltassem ele estaria pronto para a vingança!