Sobre Anjos e Homens - 2ª Parte

2ª Parte

Quando um funcionário do colégio chegou para abrir a porta do corredor de salas de aula, havia bastante alunos à espera. Apenas duas garotas conversavam. Enquanto uma falava sobre a “injustiça” de sua nota na prova de história, a outra só concordava com a cabeça, e era possível ver em seu olhar o desinteresse no assunto proposto.

A porta foi aberta e os alunos que ali esperavam entraram no corredor e caminharam para suas respectivas salas. Como não tão diferente, a garota também. Quando entrou na sala, sentou-se em seu respectivo lugar e ficou esperando uma certa pessoa chegar, a qual eu não preciso fazer descrição alguma.

Não demorou muito. Ela olhou para a porta e, lá estava ele. Com seu jeito esquisito de andar, seu sorriso tão feio quanto uma tempestade fora de hora, sua blusa preta de sempre. O cabelo mal penteado, a cara amassada de quem acaba de acordar. Mas, ainda sim... Como o amava. Bastou vê-lo para o coração começar a bater forte, como se alguém desse seguidos chutes em seu tórax.

Para a surpresa de um dia horrível, o garoto foi andando em direção a ela. Agora, suas batidas do coração não mais eram como chutes, mas sim como cabeçadas em seu tórax. A cada passo, mais parecia que algo queria pular de seu peito e abraçá-lo, beijá-lo e dizer que pra sempre ele era seu.

- Oi, Mayara.

- Olá.

- O que tinha de lição pra hoje?

De repente, parecia que a mesma coisa que dava cabeçadas em seu tórax agora deu um tapa em sua cabeça e fora embora. Que imbecilidade para se perguntar. Ah, ela tinha certeza que dali a algumas horas ele gostaria de fazer muito mais perguntas pra ela, mas, infelizmente, ela não estaria mais ali para responder.

- Não sei – Ela respondeu num tom ríspido, como se estivesse dizendo para ele sumir para sempre. Talvez ela quisesse mesmo dizer isso.

- Ah, ta... Obrigado.

Depois de mais ou menos vinte minutos, a professora entrou na sala, e a chata aula de matemática começou.

Versos perdidos em seu caderno. Não, poucos números ali apareciam. Ela sempre tivera um bom raciocínio em matemática mas nunca soube tabuada, logo, odiava matemática. Era um dos últimos itens de sua lista de coisas a fazer prestar atenção na aula de matemática.

Aula de português, essa sim, ela amava. Não, não era hoje que ela iria prestar atenção. Mais versos e palavras perdidas pelo caderno. Lamúrias e dores jogadas pela margem de seu caderno. Tão antes, começou a fazer desenhos no que restou no branco das margens de seu caderno de português. Ela amava desenhar, porém, mesmo em momentos alegres, nunca desenhara alguém feliz. Costumava dizer que felicidade não era uma boa inspiração, não transmitia muito mais do que... Felicidade. Desenhou anjos, pequenos anjos, anjos do inferno. Ela criara um universo próprio para aqueles anjos, poderíamos chamar sua terra de inferno, mas, não era bem essa a lei de sua verdade.

Quando não mais havia espaço na margem de seu caderno, ela apenas continuou com a cabeça apoiada na mesa, balançando a sua lapiseira azul para a direita e a esquerda, observando seu movimento lentamente, continuando a imaginar o universo de seus anjos do inferno, seu inferno.

Quando menos esperava foi tomada por sua imaginação, e adormeceu. Um sono leve e gracioso. Tranqüilizante, poderíamos dizer. Sonhou com os anjos. Sonhou com eles.

De repente, acordou do sonho, assustada. O que a acordara fora um toque em seu ombro.

- Ta tudo bem, Mayara?

- Ah, sim – ela respondeu com os olhos entreabertos, com um certo ar de sono, mesmo ainda não tendo começado a aula de história.

Mesmo ainda um pouco adormecida, ouviu o sinal do recreio. A aula dobrada de português havia acabado e era possível ver o alívio dos alunos no brilho do olhar. Mas, para ela era diferente, a hora havia chegado.

Esperou todos saírem da sala, em pé, com o envelope na mão. Quando viu que todos haviam deixado o ambiente, caminhou até o lugar do garoto e deixou o envelope em sua mala, entre dois cadernos.

O estilete estava em sua meia, e ela o sentia a cada passo fundo que dava. Caminhou até o fim do corredor das salas, onde havia os banheiros. Demorou até chegar à porta do feminino, e quando chegou, virou-se e olhou o profundo e, agora, escuro corredor. Uma lágrima agora corria seu rosto, de novo. Uma última, talvez.

Entrou no banheiro e dirigiu-se à última cabine, a sexta. Abriu a porta, entrou na cabine e trancou a porta. Fechou a tampa do vaso e sentou-se nela.

Retirou o velho estilete de dentro da meia. Abriu-o e travou-o. Primeiro foi seu punho esquerdo. Enfiou a lâmina fundo, sentia muita dor, mas havia outras que doíam mais. Mesmo com o punho esquerdo muito ferido, apanhou o estilete e cortou o punho direito. Não tão fundo, mas fundo o bastante para sangrar.

Ela sentou no chão, onde já havia algumas gotas de sangue. Passou a olhar para frente, e imaginava os mesmos anjos. Havia coisas em seus olhos, como estrelas de uma noite fria de luar, quando algumas nuvens encobrem a lua cheia que abençoa o céu noturno. Na verdade, não eram estrelas, seus olhos foram tomados por lágrimas, aquelas sim, as últimas. Era impossível voltar atrás, o caminho já havia sido tomado. Ficava tonta a cada minuto que passava, e quase já não sentia dor no coração. Coração. Escutava, ao longe, suas batidas. Suas últimas, agora que de uma vez por todas ia parar de bater por algo inútil.

Aos poucos foi fechando os olhos docemente, lentamente. Agora sim, suas dores estavam curadas, ela nada mais sentia. Depois de alguns segundos, fechou seus olhos amendoados, cor de uma noite escura de tempestade. Sem luar, sem estrelas, só água. Depois de vários minutos sangrando, quis dar seu último suspiro. Sem mais dores. O coração muito fraco batia, ela estava fria. Mais uma vez, alguém sua própria morte cometia. Doce sacrifício.

O sonoro sinal bateu e os alunos foram, aos poucos, lotando o corredor. Uma garota qualquer entrou no banheiro e foi caminhando, escolheu uma das últimas cabines. Foi então que viu algo no chão. Seu berro, com certeza, foi mais sonoro que o sinal.

Não demorou muito para que algum funcionário viesse e tentasse arrombar a porta da cabine.

Ele fechou os olhos , como se estivesse dizendo “Tão... Jovem”. Mandou que pegassem dois panos e os amarrou nos punhos da garota de cabelos negros que ali jazia. Pegou-a no colo e levou-a pelo corredor. Os alunos olhavam aterrorizados, todos eles. Inclusive ele.

Entraram todos em suas salas, em silêncio, sem o que dizer, sem os rotineiros comentários engraçadinhos a fazer.

A professora de história adentrou a sala, deixou suas coisas em sua mesa, e voltou-se para a sala. Olhou para seu canto direito, na terceira carteira, onde estavam as coisas de alguém que não estava mais ali.

- Agora, vou falar como um ser humano, e não como sua professora. Se ela fez o que fez, com certeza teve seus motivos. Vocês nem eu estamos aqui para julgá-la, e cada um de nós tem de sentir-se culpado por cada gota de sangue derramada, por cada lágrima derrubada. Se foi o melhor caminho, não sei, e espero nunca chegar a saber. Alguém se habilita à guardar as coisas dela?

Uma garota no fundo da sala levantou e foi fazer a tarefa sugerida pela professora.

- Peguem seus cadernos e vamos continuar com nossas matérias, sem mais tocar nesse assunto, em respeito à sua colega.

A sala pegou os cadernos, mas, uma pessoa viu que um objeto não identificado caiu de sua mala.

O garoto pegou o envelope, abriu, pegou a carta que estava dentro e desdobrou-a. Ainda meio surpreso, começou a lê-la.

As palavras pareciam enforcá-lo, partiam seu coração pouco a pouco. Os verbos entravam pela sua garganta como algo azedo, de gosto horrível. Ele mal conseguia respirar, e suas mãos tremiam, suavam frio. “Eu o amo”. Aquilo, com certeza era uma frase que ele jamais pensara em receber, pelo menos, não dessa forma, nessas circunstâncias. Ele não sabia o que fazer.

Quando acabou e assimilou as idéias, as lágrimas persistiam em cair de seus olhos, apoiou a cabeça nas mãos e chorou, chorou a perda de alguém que lhe amava daquele jeito. E que, ele nunca, ao menos, tivera a chance de tentar amar.

Sem a permissão da professora, saiu correndo desesperadamente. Correu muito, atravessou a escola até chegar à enfermaria. Mas, quando chegou lá, viu que ela já havia deixado o colégio e agora estava no hospital. Perguntou à que hospital ela havia ido, pois, planejava vê-la. Uma última vez, ele ainda tinha esperanças de vê-la.

Enquanto caminhava para sala, sentia seu coração batendo acelerado ainda, não acreditava no que estava acontecendo. Acontecia muito rápido. Ele estava completamente perdido, mal sabia o que era amor, e, agora, já conhecera alguém que morrera por ele.

Passou o resto das aulas pensando nela, apesar de ainda não amá-la, mesmo se esforçando, não, ele não conseguia.

Bateu o último sinal, e ao invés de ir junto com os amigos, saiu sozinho. Foi para casa. À pé, como sempre.

A chuva caia muito forte, mas ele sabia que se não fosse, ninguém viria buscá-lo.

Em poucos minutos já estava totalmente ensopado. Mas, havia um lado bom, uma ao menos. A água refrescava seus pensamentos, clareava sua mente que, agora se encontrava perdida. Seus pés o levavam para algum lugar, que mal ele sabia qual era, eles apenas o conduziam. Seu coração batia forte, como se ainda estivesse lendo a carta. As árvores dançavam com o forte vento, e as gotas de chuva não caíam na vertical, mas sim, na diagonal.

Foi então que percebeu: não estava indo pra casa, estava indo para seu lar. Ele sempre acreditou que o lar fosse d’onde nossos corações pertencessem. Saiu correndo para o hospital, foi encontrar a menina que tentara suicídio por ele.

Corria o máximo que podia, corria muito rápido, e não tinha medo de cair. Estava tão molhado que era difícil distinguir o que era pele e camisa. Mas, ele não se importava. Apenas agora deixava seu coração e seus pés o conduzirem. Ele parou de pensar, com certeza. O mais idiota diria que havia ficado louco, o mais sábio diria que havia se apaixonado, o cego diria apenas que ele estava pensando com o coração.

Quando chegou ao hospital, falou ofegante e desesperado à moça da portaria que procurava uma garota que havia chegado a pouco, chamada Mayara e cujo último sobrenome era Rezende, mas não sabia o resto de seu sobrenome. A moça indicou onde a garota estava, e o garoto foi correndo ao seu encontro.

Chegou numa ala onde havia salas com vidros, que separavam os visitantes dos pacientes. Muita gente estava no corredor. Havia vários pacientes, o dobro havia de visitantes. Achou Mayara, e ficou olhando-a admirado. Não era possível saber se estava viva. Não era possível.

Num banco atrás dele, havia uma senhora e uma mulher chorando, uma consolando as lágrimas da outra. Um garotinho chamou sua atenção:

- Conhece minha irmã?

- Quem é sua irmã?

- Essa aqui – o garotinho apontou para a menina que estava deitada no leito.

- Conheço.

- Você é amigo dela?

- Na verdade... Eu não sei bem.

- Você pode dar sangue pra ela?

- Haam?! Não entendi...

Um senhor de barba bem feita, estatura média, esbelto e olhar firme, que estava ao lado do garotinho, dirigiu-se ao garoto:

- Como é seu nome, garoto?

- Rodrigo.

- Minha neta tem um RH raro... ‘O’ negativo. Aqui no hospital não tem esse tipo de sangue, será que conhece alguém que possa doar sangue?

- Meu RH é ‘O’ negativo – um silêncio se fez. As duas mulheres que choravam no banco pararam de chorar e voltaram-se para o garoto.

- DEUS, MENINO! VOCÊ PODE DOAR?!

- Posso, só que acho que precisa de autorização de responsável...

- Acompanhe-me

O senhor apanhou-o pela mão e eles dirigiram-se à uma outra ala no hospital.

Não tiveram tantas complicações para o garoto doar sangue, exceto pelo fato de ele ter de fazer várias ligações para casa.

Agora, ele tinha de esperar. Tinha de esperar pra ver se, após ter quase acabado, tinha conseguido salvar a vida de quem o amava.

Débora Dias
Enviado por Débora Dias em 12/04/2009
Código do texto: T1535859
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.