O Cetro dos Mortos - Parte II (3)

Inquirido, Karuk revelou que o Dragão lhe contara sobre os homens que arrombaram sua câmara secreta. Estes eram bem diferentes dos ladrões comuns que a anos importunavam seu sono atrás de tesouros, o que seu espírito contemplava impotente. Estes eram bem equipados e vieram com um objetivo claro: levar consigo um certo objeto, imbuído de forças necromânticas poderosas, produzidos a partir de feitiços escritos em tempos imemoriais, nas eras que as Trevas caminhavam livremente. Este, na mão de um mago, podia trazer a vida os resíduos espirituais de almas com intenso e egoísta desejo de retornar a sua vida terrena, pois esses são mais sujeitos à manipulação. Daí o cetro possuir mais poder entre os mortos amaldiçoados, desejosos por vingança. Mas seu poder é incontrolável, e nem o próprio dragão o utilizava, apenas o mantinha em sua coleção. Momentos antes de ter o crânio esmagado, prosseguiu Karuk, aquela manifestação necrocorpórea do dragão, provocada pelo poder do cetro, levianamente então utilizado por algum mago desconhecido, deu uma descrição dos homens. Vestiam roupas de viajem surradas, possuíam cavalos. Eram uns vinte e tinham o tipo físico dos homens do norte.

Enquanto Karuk lhes dava esse surpreendente esclarecimento, o trio saia da toca a passos largos. Já fora da gruta, O artista arcano parou diante dela, fazendo vários gestos de invocação. De repente as raízes da imensa árvore começaram a se mexer e a crescer, fechando a entrada gradualmente. Acompanhando mais um gesto do mago, gases do pântano começaram a entrar como água descendo por um ralo, na toca do dragão. Quando a toca se fechou totalmente, uma quantidade enorme de gás fétido já havia entrado. “Afastemo-nos”, disse Karuk.

Eles tomaram os cavalos e caminharam vários minutos sem se falar. O conjurador parecia tão concentrado que nenhum dos dois valorosos guerreiros achou propício lhe perguntar o que significava aquilo. Depois, um grande estrondo abalou o pântano, e uma imensa bola de fogo surgiu no lugar do covil do monstro.

Agora os dois solicitaram uma explicação, e Karuk disse que o próprio dragão pediu isso, pois havia ainda grandes tesouros de poder altamente corrompedor, que poderia ainda atrair gananciosos assaltantes. Dessa maneira o espírito do dragão poderia ser deixado em paz para a contemplação a que os mortos têm direito. Bener quis saber se isso era um sinal de altruísmo do dragão, mas Karuk discordou dessa hipótese. Estava mais para ciúme do próprio tesouro, ao qual pertenceu seu coração em vida.

Prosseguiram a marcha até o Norte, nas terras de Zampú. Não demoraram a chegar, e avistaram o castelo de D’Reavee. Já havia ocorrido o ocaso.

Iluminado pelas últimas luzes do dia, o castelo mostrava suas formas peculiares, com grandes muralhas, torres altas nos cantos e andares que cobriam áreas cada vez menores, dando à construção principal uma aparência piramidal. O castelo ficava numa planície quase totalmente deserta, exceto pelo leste, onde uma floresta velha e feia, mas de tamanho considerável se erguia.

Karuk sugeriu um descanso. Durante a madrugada iriam invadir o castelo. Mais uma vez o feitiço sentinela foi ativado,

O local escolhido para o descanso foi um amontoado de árvores mortas, derrubadas, provavelmente pela tempestade de dias atrás. Estavam a uma distância considerável do castelo, e esse abrigo garantiria total sigilo da presença dos aventureiros nas terras de Zampú.

Após o descanso, eles começaram a andar pelo local, deixando os cavalos para trás, protegidos por uma espécie de nuvem de pequenas esferas negras, semelhantes a gotículas, que os ocultava dos olhos do inimigo, mas sem atrapalhar significativamente sua própria vista. Um artifício da poderosa magia de Karuk.

Em dada altura da caminhada, os três aventureiros sentiram um forte cheiro de carne podre trazido de longa distância pelo vento. Seguiram sua direção e encontraram uma cena terrível: espalhados diante do portão norte das muralhas do castelo, um exército inteiro de mortos vivos, Estavam em pé, aparentemente incansáveis, pois não eram mais as forças naturais, as quais moviam todas as criaturas vivas, que os mantinha assim. Um segundo grupo cavava um grande vale, que parecia ter sido um campo de batalha, pela quantidade de corpos que a todo o momento eram desenterrados para se juntarem à filha funesta de soldados apodrecidos.

Uma batalha a muito havia sido travada, uma das mais sangrentas da história de Zampú, entre os rebelados contra a tirania de D’Reavee e seus homens. A maioria dos homens dos dois exércitos morreu, em meio ao sangue e ódio. Suas consciências não existem mais, porém, os restos de suas essências, que um dia animaram os seus corpos, agora trazidos de volta contra a vontade da natureza, estavam carregados de rancor, sedentos de vingança, porém totalmente desorientados, facilmente manipuláveis por sugestões que os oferecesse oportunidade para tal. Para isso servia o Cetro, segundo o que contou o falecido Dragão Negro do Pântano do Norte.

Que exército seria capaz de enfrentar um pelotão macabro, que não sente frio, medo, fome, capaz de caminhar pela eternidade? O cruel D’Reavee era agora portador de um horrível instrumento para seus propósitos sombrios. Só havia um meio de detê-lo: Os três heróis encontrariam e destruiriam o Cetro!

Passaria um bom tempo até que os aventureiros contornassem as muralhas até o lado sul do castelo, onde havia uma gruta não muito distante. Karuk examinou a área e descobriu que seria possível a entrada pelo rio subterrâneo que abastecia o castelo.

Durante a travessia do lado norte para o lado sul, os três encontraram uma vila destruída, certamente num teste de D’Reavee para suas novas tropas.

Caminhando pelas ruelas destruídas da vila, Alex observou que haviam alguns soldados humanos mortos, carregando em seus uniformes a insígnia do Barão. Parecia que mortos vivos eram mais como cães raivosos que soldados: Atacavam sem distinção os vivos...

Quando o lado sul tornou-se visível, os três heróis se deram conta que também havia um exercito defendendo o portão sul. Isso não seria de surpreender se não fosse o fato de haverem catapultas nesse lado. Estranhamente, estas estavam viradas para as muralhas.

De repente, uma movimentação nos portões criou um rangido que estremeceu o silencio da noite na desolada planície que era Zampú. Os portões sul se abriram, dando passagem para todas as criaturas que aguardavam do lado de fora. Um segundo ruído revelou que os portões norte também foram abertos, e certamente o castelo era invadido por lá também.

Ao saírem de seus lugares, para entrar no castelo, as criaturas revelaram, à luz do luar, centenas de corpos no chão. Tinham roupas pretas e armaduras, escudos retangulares com a parte de baixo aguda. O tipo de equipamento padrão dos homens do Barão.

Os heróis ficaram observando atentamente a movimentação por algum tempo, até que começaram a ouvir tilintar de armaduras, entrechoques de espadas e gritos de terror ecoando na noite. Karuk mandou que ficassem um tempo onde estavam para que ele espionasse o castelo.

Karuk assumiu uma postura grave, endireitou o corpo, ergueu o bastão sobre a cabeça e ascendeu. O mago subiu até ficar pequeno contra o céu estrelado, depois se deslocou rapidamente, sobrevoando a construção de pedra e argamassa.

Em pouco tempo ele retornou trazendo estranhas notícias. Os mortos estavam atacando e destruindo todo o castelo. O último e desesperado refúgio dos condenados habitantes, no último andar, estava para ser destruído. O que poderia significar isso? Será que D’reavee havia enlouquecido? Ou pagou caro demais por sua ambição? Karuk demonstrou desconfiança pelo jeito que agiam as criaturas, de maneira razoavelmente organizada. O grupo teria que esperar a possível saída do exército pútrefe, para investigar o castelo.

Enquanto os sons de tragédia emanavam sem pausa do castelo piramidal, Bener observava atentamente a área. Sentiu, quando foi atingido por uma rajada de vento noturno, um estranho cheiro de cinza de um fogo apagado à dias, mas havia mais alguma coisa estranha misturado a ele, odores marcantes e bizarros. Seguiu esse cheiro, acompanhado de seus parceiros. Até chegar a uma pilha de papel, couro, vidro e madeira, tudo reduzido a cinzas e a uma massa disforme. Os olhos de Karuk observavam atentamente os restos carbonizados, enquanto os remexia com a ponta de seu bastão,

O mago encontrou frascos de vidro meio deformados pela temperatura, além de restos de metal. Entre essas coisas, estava um disco de metal, distorcido, com o desenho precariamente reconhecível de um pentagrama, um símbolo famoso da magia. Este era do tipo invertido, com a ponta da quintessência virada para a terra, um mau sinal, pois era o tipo mais usado na feitiçaria voltada para a ambição.

Não demorou muito. Ao amanhecer o último grito foi ouvido, e as criaturas maléficas saíram do castelo e reuniram-se em frente ao portão sul. Daí caminharam para a Floresta Velha, carregando as catapultas.

Com muita cautela, Bener, Alex e Karuk entraram pelo portão sul. Passaram pelos corpos que haviam avistado. Realmente, eram homens do Barão. E havia muitos mais dentro do castelo. Estranhas armações de madeira, feitas em formato esférico, estavam meio arrebentadas no chão, como se tivessem caído de grande altura. Os portões internos estavam arrebentados. De vez em quando, um gemido, ou arrastar de zumbis parcialmente destruídos pelo chão, traziam ainda mais sensações desagradáveis ao local já horrivelmente sangrento.

Eles entraram no castelo e encontraram mais morte e destruição. Até que atingiram o ponto mais alto, o último andar do castelo meio piramidal. Lá acharam uma porção de nobres e membros da família D’Reavee mortos brutalmente. Inclusive o próprio D’Reavee!

Aquelas partes o castelo eram os aposentos de D’Reavee e sua família, além de um aposento estranho, que possuía uma porta de ferro. A porta estava aberta. O aposento estava vazio, exceto por algumas prateleiras e uma mesa de escrivão. O chão estava coberto por lascas da pedra, como se cada centímetro quadrado dele tivesse sido cuidadosamente martelado. O mesmo se podia dizer de algumas partes das paredes e do teto. “Certamente as coisas queimadas que encontramos vieram daqui”.Observou Karuk.

“Quem teria sido o mago que habitou esse lugar tão privilegiado, denotando consideração por parte de D’Reavee?”-Perguntou-se Alex.

Aproximando-se de uma janela, Alex observou o pátio do castelo. Apontou para baixo e disse para os outros que alguma movimentação estava ocorrendo.

O que estava havendo era que umas vinte pessoas vestidas em longas túnicas pretas, com grandes cestos amarrados às costas, caminhavam pelo pátio, revirando corpos e recolhendo armas e armaduras, certamente para abastecer de equipamentos seminovos o exército de mortos vivos.

Estava provado que D’Reavee não era, pelo menos não unicamente, o provocador do mal, mas alguém igualmente ou mais terrível. E esses homens e mulheres misteriosos seriam de grande ajuda para encontrar o verdadeiro responsável.

Desceram as escadas agilmente, mas de maneira silenciosa. Ao chegarem nas portas de acesso ao pátio, no andar térreo, Karuk colocou o seu lindo bastão prateado no chão, com o garboso desenho de uma águia em alto relevo à vista de um dos homens, mas protegido da vista dos demais por uma grossa coluna de pedra. Este o viu e, encantado pela sua beleza, aproximou-se para apanha-lo, ficando ao alcance de Alex e Bener, que o imobilizaram e amordaçaram.

O pobre homem, aterrorizado, foi levado até um dos aposentos do primeiro andar, onde recebeu algumas ameaças, seguidas de perguntas, da parte de Bener e Alex. Karuk limitou-se a segui-los.

Mas o infeliz apenas implorava e lamentava aos prantos, e quanto mais Alex lhe torcia o braço tatuado, mais ele gemia e não dizia nada.

“Tortura física não vai adiantar, caros amigos!”, disse Karuk.”Ele teme mais o que seu mestre pode fazer que nós, afinal, trata-se de um necromante! Pois só um mago desse tipo poderia controlar o Cetro. Mas eu já esperava por isso”.

Karuk ficou em silêncio por algum tempo, corpo tencionado e olhar intenso. Bener percebeu o que iria acontecer, então gesticulou para que, junto a Alex, imobilizassem o corpo e a cabeça do prisioneiro voltados para o mago.

Então o mago fuzilou com os olhos os do outro, penetrando até a alma. Este ficou congelado pelo pavor, seu corpo começou a amolecer e a se prostrar. Alex e Bener soltaram-no lentamente, mas ele não fez qualquer esforço para fugir, só ficou olhando para a expressão severa de Karuk, maravilhado e aterrorizado.

Aos olhos do homem, a sala se encheu de uma estranha fumaça, e uma luz vermelha. Uma imponente forma humana, vestida no mais fino linho, apresentava-se, como uma grande e terrível rocha. Um par de emissários celestiais estavam a suas costas. Sem dúvida seu deus veio liberta-lo de sua escravidão!

“Sou Oniricom, Aquele que Foi Antes da Luz, e que será novamente! Você foi meu fiel servo, diga, para o deleite de meus ouvidos, o que tem feito para mim?” Disse Karuk, ainda com a estranha careta rígida, rosto deformado pelo esforço.

“Não meu senhor! O miserável Fildager não tem sido temente a Oniricom! Não adianta mentir para vós!” Respondeu o outro cobrindo o rosto, chorando copiosamente.

“Pois bem, confessa tua transgressão!”

“Este miserável tem sido covarde, não tendo coragem de desafiar o herege. Mas ele nos enganou! Fez-se passar por emissário teu! E quando nós descobrimos a verdade, ele já estava muito poderoso, alimentando sua magia herética com as preciosas Pedras Do Sangue, que durante anos cultivamos para o senhor! A maioria de nós se rendeu. Mas todos o que resistiram foram torturados e mortos! Ó grande Oniricom! Teu servo não rejeitará o merecido castigo, mas antes implora tua sagrada vingança sobre Razigarom!” Falou o prisioneiro, com as mãos crispadas de ódio,

“Razigarom lamentará!” Respondeu Karuk, já impaciente. Sofria o esforço a olhos vistos. “Não sabes tu onde está esta víbora?”

“Teu servo sabe”.

“Então teu castigo e minha vingança serão unidos em apenas um ato: Vá onde está nosso inimigo, então o mate, e de maneira nenhuma diga que é impossível, pois minha força o ajudará no momento certo. Se for corajoso, cumprirás a tarefa, e estarás redimido de todas as tuas faltas, do contrário morrerá, sob minha maldição! Agora vá, mas com cuidado para não despertar perigos precocemente”.

“Obrigado, ó magnânimo Oniricom!” Então o homem disparou por entre os anjos de Oniricom, saindo para o pátio sem olhar para trás. Saiu andando dissimuladamente e alcançou o grupo de catadores.

Karuk apoiou-se na parede e disse que a situação ia mal. Primeiro o mago esclareceu que reconheceu, pelas tatuagens no braço do lacaio, que se tratavam de seguidores de Oniricom, deus do sangue e da noite. Usando um artifício mágico de sugestão mental, Karuk fez com que a mente covarde do servo de Oniricom achasse que estava tendo um contato com sua divindade. A princípio, o mago acreditou que foi a ordem dos miseráveis seguidores do Deus da Noite que tinham roubado o cetro, mas logo descobriu que havia outra força agindo.

Razigarom! Karuk disse se tratar de um necromante que nunca conseguiu ter habilidades maiores que seus esforços, mas alimentava a pretensão de ser o mais poderoso do mundo. O próprio Karuk já tinha atrapalhado seus planos certa vez.

Pelo o que ficou entendido, o necromante se apoderou das instalações da ordem de Oniricom e do cetro. Isso era uma má notícia, pois agora sabiam estar lidando com uma cobra engolidora de cobras, e o poderio da ordem de Oniricom não era ignorável, e já havia algum tempo estava causando problemas à D’Reavee.

As Pedras Do Sangue prosseguiu Karuk, eram uma repugnante magia necromante, que permitia drenar a força vital definitivamente através do sangue, que se torna uma pedra semelhante a um rubi, mas bem mais escura. Elas serviriam para alimentar o avatar de Oniricom, assim que este surgisse, como dizia a tradição da ordem. No entanto, era fato sabido que estas pedras podiam alimentar também magias necromânticas,

“Vamos persegui-los imediatamente!” Exclamou Bener.

“Estou de acordo”.Assentiu Alex.”Vamos encontrar o esconderijo e então ver o que podemos fazer”.

“Meus planos são de encontrar e destruir o cetro, meus amigos”.Karuk dizia estas palavras em tom grave. “Mas ainda não sei exatamente o que nos sucederá ao encontrarmos Razigarom”.

Esgueirando por entre as retorcidas e semimortas árvores da floresta velha, os três aventureiros seguiram os estranhos catadores. Percebia-se que nem todos tinham as marcas dos seguidores de Oniricom. Certamente escravos das vilas de Zampú também haviam sido recrutados contra a vontade pelo degenerado e infame necromante.

Depois de uma caminhada de cem metros floresta a dentro, um cheiro de carne podre empestou o ar. A comitiva de catadores havia sido cercada de dezenas de mortos vivos. Estes delimitaram um estreito perímetro, os escoltando, até que chegaram em uma grande clareira.

Esta clareira era encostada a um rochedo que era tão íngreme que era uma verdadeira muralha. Esta possuía em sua parte mais inferior umas quatro grutas, Estas serviam de esconderijo e proteção dos seguidores da Ordem. Haviam vários restos de cabanas destruídas no chão, além de enormes cruzes queimadas. As entradas das grutas estavam seladas com grossas barras de ferro, que possuíam uma porta como do tipo usado em jaulas ou celas, mas estavam barradas por correntes, vigiadas por guardas mortos vivos.

Existia uma carruagem parada próximo às grutas.

Iluminadas pelo Sol que começava a nascer, as carcaças das criaturas pareciam ainda mais repulsivas, mostrando cada detalhe da decadência que as constituíam. Centenas delas estavam paradas em pé, espalhadas por toda a clareira.

Os catadores que acabavam de chegar do castelo de D’Reavee começaram a lançar seus fardos perto das grutas, mais ou menos onde estava a carruagem.

Cerca de dez criaturas começaram a andar em direção dos catadores. Com visível mistura de asco e resignação, os catadores se dedicaram a repugnante tarefa de equipá-los com as coisas que trouxeram. Era incrível como os zumbis estavam agindo de maneira racional e organizada. O poder do cetro era mesmo terrível!

Karuk ponderou que as criaturas deviam estar sendo supervisionadas pelo próprio Razigarom a partir da carruagem. Pediu a Alex que preparasse o arco. O mercenário respondeu afirmativamente. O mago pediu que este se deslocasse até o pondo mais próximo da carruagem que pudesse. Karuk iria atear fogo na carruagem, obrigando a víbora necromante a sair, ficando a mercê da flecha mortal de Alex. Depois os dois guerreiros fugiriam pela floresta e o Articulador Arcano trataria de pegar o cetro através de magias em meio à confusão.

Alex, usando sua lendária habilidade de esgueirar-se, aproximou-se rápido e silenciosamente da carruagem, ficando em cima de um galho. Preparou a flecha no arco curto. Assim que Raziragom colocasse a cabeça fora da carruagem, morreria! Aquele arco nunca havia errado na mão do seu dono!

Karuk começou a gesticular, olhando fixamente para a carruagem. Estava perfeito! Alex havia se posicionado diretamente contra o vento, que soprava de leste a oeste, trazendo o cheiro dos mortos, para que este não influenciasse na direção da flecha.

Bener não ficou ocioso. Começou a olhar em volta, imaginando como reagiriam as criaturas, o que faria para facilitar a fuga de Alex e como daria apoio a Karuk, na hora de apanhar o cetro.

Subitamente, o homem tigre teve um certo arrepio na nuca. Olhou para trás com os olhos arregalados: uma flecha atravessou a distância de cerca de dez metros e atingiu as costas de Karuk. O mago gemeu e se jogou no chão. Instantaneamente, todas as criaturas mortas-vivas que estavam na clareira viraram-se na direção dos dois. Atrás e na frente, figuras monstruosas corriam grotescamente. Bener se sentiu acuado, o tigre dentro de si explodia em fúria, mas seu lado humano olhava freneticamente em busca de uma saída. Os inimigos haviam formado um corredor que se fechava rapidamente. Bener cravou as unhas nas vestimentas de Karuk e o colocou nos ombros. Então preparou-se para disparar em direção do interior da floresta, mas assim que olhou naquela direção, percebeu que mais criaturas vinham por lá. Karuk parecia estar em estado de choque. Poderia ser uma loucura, mas correr na direção da carruagem e das grutas parecia ser a única opção. Para lá Bener correu.

Enquanto isso, Alex estava aguardando o fogo, mas percebeu a movimentação dos zumbis: eles estavam disparando sem aviso prévio contra Bener e Karuk! Era muito estranho, num momento eles estão totalmente imóveis, e depois...

Antes que o guerreiro mercenário tomasse qualquer decisão, a ponta de uma lança cortava o ar velozmente. “Que diabo!...”, exclamou Alex, largando a flecha, que atingiu e ficou cravada na carruagem, e acertando o cabo da lança, um pouco abaixo da ponta, com o cotovelo, fazendo-a passar por cima da cabeça, então ele avistou a criatura no chão, segurando a lança. O plano desandou...

Deixando o arco cair, Alex executou um salto mortal e pousou perfeitamente no chão, frente à criatura. O monstro tentou mais um ataque com a lança roubada das forças de D’Reavee, mas Alex, com grande agilidade, esquivou-se e agarrou a lança, puxando fortemente o oponente que se agarrava na arma, fazendo-o cair a meio metro de seus pés, de bruços, em posição perfeita para ser esmagado por um poderoso pisão na parte detrás do peito, separando as omoplatas apodrecidas. Mas aquele não era o único: outro ser decadente saltou de entre as árvores com uma espada de duas mãos erguida sobre a cabeça, mas não chegou perto, pois Alex girou a lança sobre a cabeça diagonalmente, deu um salto curto para trás e acertou-lhe com o cabo por baixo do ombro direito com tanta violência que o braço, a cabeça e a mão do outro braço foram arrancados.

Segurando a lança pelo meio, Alex olhou para trás quando ouviu o grito de Bener chamando. O jovem guerreiro que carregava um mago com as costas ensangüentadas, e recuava rumo a uma gruta possivelmente sem saída, e o fazia por total falta de escolha, era realmente um motivo para que Alex exclamasse, antes de correr ao encontro dos dois: ”Mas que diabo!!”

As flechas zumbiam atrás deles quando entraram na gruta de entrada mais estreita. Bener estava com os olhos chispando. Sua pele já estava vários graus acima da temperatura normal, sinal que seu corpo, levado pela tensão, estava se preparando para entrar em metamorfose a qualquer momento. Pôs Karuk no chão. Sem se sentir, estava andando para trás, entrando cada vez mais na gruta. Alex apontava a lança para a entrada, disposto a impedir até a morte que qualquer carcaça assassina entrasse. Karuk gemia baixo, mas estava tateando os bolsos.

Estranhamente, as criaturas chegaram perto da entrada, mas ficaram aguardando. Algumas preparam flechas, mas se limitaram a apontá-las.

Uma voz grave se ouviu: “Karuk! Seu bonequinho voador metido a mago da Luz! Acha que sabe tudo, mas cometeu um grave erro, que o levará a morte!”.

Karuk ergueu um pouco a cabeça. Havia reconhecido a voz do necromante.

“Espíritos sentinelas, Karuk! Eu me aperfeiçoei! Os meus não desaparecem mais a luz do dia!”.

O mago deu um suspiro: “Eu deveria ter previsto isso!”.

Bener estava se sentindo estranho. Estava enfurecido. Como ele não havia percebido aquelas criaturas se aproximar? Seria a direção do vento? Como eles conseguem andar tão silenciosamente assim?

Enquanto seu peito queimava nesses pensamentos, seu corpo também ardia. As emoções estavam levando o homem-tigre a um estado de estase, ele aproximava-se do limiar entre o homem e a fera. O certo é que Bener já não sabia mais exatamente o que estava fazendo, enquanto andava para trás. Recuou até encontrar um túnel, do qual vinha uma certa corrente de ar. Parecia ser uma interligação com outra das grutas. Seguiu por ela sem pensar, enquanto a roupa incomodava cada vez mais...

“Está surpreso em me ouvir?” -Berrava Razigarom, em tom de deboche.

Karuk estava ainda deitado no chão, mas Alex, continuava em pé, brandindo a lança, e pôde ver o necromante emergindo de entre as criaturas que estavam à frente, com arcos retesados. Ele estava segurando o cetro, que emitia um brilho esverdeado.

“Acabou o tempo do meu anonimato, Karuk! Agora todos irão temer a minha arte!” – Razigarom estava com os músculos rígidos de ódio, enquanto pronunciava essas palavras.

“Você e toda essa corja de ignorantes que pesteiam o mundo, sempre me desprezaram, ou me viam apenas como um subalterno de poderes raros, mas ainda sim medíocre! Inclusive esse bastardo do D’Reavee! Se esse verme não me tivesse sido tão útil, com aqueles livros raros roubados dos anciões das aldeias de Zampú, eu teria me livrado dele a mais tempo!”.

“O que houve, Karuk? Não vai dizer nada? Será que já está morto?”- Provocou o necromante, mas Karuk permaneceu no chão, observando um novo elemento que integrava a cena: um acólito de Oniricom que esgueirava-se entre os soldados mortos-vivos... e o mago resolveu ajudá-lo a cumprir a sua “santa missão”...

“Então...” - respondeu o arcanista, levantando-se com esforço, ao mesmo tempo em que puxava umas pedras brancas do bolso.- “Seus espíritos sentinelas aperfeiçoaram-se! Bom! Já era tempo de alguma evolução! Mas algo me diz que ainda não são capazes de resistir a um esconjuro simples, ainda mais à luz do dia!”.

“Há!”- Retrucou o necromante- “Não sei em que isto poderia ajudá-lo! Já percebi o seu esconjuro, mas é tarde para isso! Em instantes mandarei meus servos trazerem você e seus amigos para fora... aos pedaços!!”

Razigarom ergueu o cetro tenebroso e imediatamente as criaturas tomaram posições agressivas. Assim que ele abaixasse o cetro, centenas de criaturas entrariam nas cinco grutas, que na realidade eram todas entradas para o mesmo sistema de túneis, e não haviam saídas alternativas!

Mas felizmente, mais uma vez, as previsões intuitivas de Karuk se mostraram um grande aliado, além de sua sorte, talvez um tipo de bom karma, como o que aconteceu em seguida provou.

Saltando do meio da formação inimiga, um homem com as marcas de Oniricom, atacou a Razigarom, quase o derrubando.

Mas infelizmente o homem tinha uma habilidade muito menor que a ousadia de seu ato, pois não conseguiu fazer mais que um arranhão no necromante, antes que esse se desvencilhasse e o jogasse contra a lança de um dos seus monstros. Mas essa ação desencadeou uma reação, em Alex! O guerreiro deu uma corrida de três passos, segundo a boa técnica de arremesso de lança (que, no entanto, o fez sair da gruta) e projetou a arma pelos dezoito metros de distância até o peito de Razigarom, que foi mortalmente ferido, fazendo o cetro voar longe, entre as carcaças.

Keruk havia dito que esse exército era temível porque não sentiam cansaço, frio fome... Mas, no instante seguinte ao seu ataque letal contra Razigarom, Alex se sentiu pronto para discordar que essas fossem as principais causas. O problema maior é que essas malditas porcarias não ficavam chocadas! Não se surpreendiam! Se fossem humanos, Alex teria arremessado e aproveitado o choque dos arqueiros diante do ataque do acólito para retornar velozmente para a proteção da gruta. Mas não eram humanos. A inumanidade dessas criaturas era um fator que Alex não levado em conta, por puro costume de se aproveitar das fraquezas típicas dos homens. Um erro cuja conseqüência veio na forma de quatro flechas encravadas no tórax, antes que seu salto para trás o trouxesse de volta ao esconderijo.

Alex estava caído de costas no chão, com gosto de sangue na boca. Karuk, que mal se mantinha em pé, não possuía energia o suficiente para manter todos os inimigos à distância. “E Bener... onde está Bener?”, pensaram o mago e o mercenário. Mas tudo já parecia perdido. Pelo menos Razigarom não parecia em melhor estado...

As criaturas avançaram contra tudo que estava em volta. Pareciam desesperadas por haverem perdido seu mestre. Atacaram os catadores que haviam se encolhido em um canto, e muitas delas avançaram contra a entrada onde estavam os três aventureiros. Mas não chegaram a fazer isso.

Um urro, como de uma besta enorme, estremeceu o chão, chamando a atenção até das criaturas: um homem tigre havia saído por uma das grutas, à toda velocidade, estraçalhando todos os inimigos à sua frente. Sim as criaturas eram imunes à choques, no sentido de não serem paralisadas pela surpresa, mas eram capazes de reconhecer a maior ameaça. Então imediatamente começaram a concentrar esforços sobre o novo inimigo.

“Bener!” –Pensou Karuk, começando a nadar o mais rápido que pôde, com os olhos procurando freneticamente pelo cetro, enquanto tentava acumular forças para uma magia destrutiva.

O homem tigre estava envolto em uma chuva infernal de flechas, lanças e lâminas. Destruía uma criatura a cada movimento, mas seu número interminável sempre substituía por dois cada oponente abatido.

Evitando ser notado, Karuk avista o cetro e se prepara para desfazê-lo em pedaços com uma magia muito energética, mas foi atacado subitamente por uma criatura que desferia um golpe lateral de espada. Imediatamente o mago foi forçado a desviar a energia para transformar o braço direito em ferro durante um instante e deter o golpe, e logo em seguida fazer a lâmina girar verticalmente contra o crânio do próprio atacante, com força o suficiente para parti-lo em dois.

Enquanto isso Bener era cada vez mais ferido em meio ao furacão de atacantes, ao mesmo tempo em que fazia voar pedaços deles pelo ar.

O tempo estava esgotando para o jovem homem tigre. Karuk precisava ser rápido. Após destruir o oponente, Karuk procurou com os olhos o cetro, mas não o encontrou! Ele parecia ter sido chutado pelos atacantes que tentavam chegar perto de Bener, em polvorosa.

Quando Karuk finalmente reencontrou o cetro, percebeu que não havia energia o suficiente para desintegrá-lo, resolveu trazê-lo magicamente até a mão e então quebrá-lo contra o chão.

Mais uma vez o feitiço que salvaria Bener sofre interrupção: desta vez eram dois inimigos. O primeiro estava armado com uma espada e um escudo, e tentou desferir um golpe frontal, mas Karuk deteve o golpe transformando o antebraço em ferro por um segundo, e então tocou o escudo, conferindo um impulso mágico que arremessou o inimigo a mais de vinte metros de distância. Mas isso foi demais para o debilitado Karuk, que não conseguiu esquivar da lança do segundo oponente, que o atingiu no braço e fê-lo cair.

Segundos antes da queda de Karuk, um dos mortos vivos tentou atingir a cabeça de Bener, no entanto sofreu um golpe que só não o destruiu por que teve a sorte de ter recebido uma pesada placa de armadura torácica. Mas o choque o fez cair a cinco metros dali, e a sua espada se perder. Mas ela não desistiu, apanhou a primeira coisa que achou pelo chão, uma clava! Bem, parecia uma clava, mas emitia um estranho brilho verde...

Karuk estava fraco, não poderia deter um novo golpe. Bener também estava quase subjugado, mas se recusava a desistir. Alex estava inconsciente a muito.

O inimigo que havia tomado o cetro no chão tentava mais uma vez se aproximar de Bener. Quando o conseguiu, o homem tigre estava fazendo seus talvez derradeiros esforços, distribuindo golpes violentos. Um destes atingiu o braço da criatura, fazendo o cetro cruzar doze metros de distância e se arrebentar contra as rochas do paredão onde ficavam as grutas.

Milagrosamente, as criaturas começaram a desabar como farrapos. Já não eram uma ameaça. Bem a tempo, pois a criatura já havia preparado um golpe contra o coração de Karuk e Bener parecia a ponto de desmaiar. Aliás, desmaiou poucos segundos depois.

******

Bener e Alex acordaram deitados em camas improvisadas, dentro de uma casa que apresentava sinais de destruição. Karuk estava no quarto.

Ambos os aventureiros estavam com seus ferimentos tratados. Bener reclamava de parecer ter passado num moedor de carne.

Karuk os congratulou pelo sucesso, mesmo que meio acidental, em deter o perigoso Razigarom. Explicou que foram socorridos pelos sobreviventes dos aldeões e até dos acólitos de Oniricom, assim que as criaturas tombaram após a destruição do cetro.

Os aldeões contaram que Raziragom chegou a Zampú e rapidamente seduziu D’Reavee a nomeá-lo conselheiro, convencendo-o de que seus poderes obscuros eram muito úteis. Mas tudo que ele queria era ter acesso à biblioteca de D’Reavee e ler os livros que este havia confiscado das tribos que habitavam a planície. Em pouco tempo o necromante começou a abusar da liberdade que o Lorde o havia dado, como, por exemplo, levando sem pedir vários homens para uma misteriosa jornada até um certo pântano. Então D’Reavee mandou prendê-lo, mas ele fugiu. O Lorde mandou destruir suas coisas, mas o que Raziragom realmente queria, ele já tinha: O Cetro dos Mortos.

A seqüência é simples de se imaginar: alguns campos de batalha com vários soldados em potencial, uma ajuda dos seguidores de Oniricom, ludibriados pelo poder do cetro e o suposto “profeta”, um poderoso ritual ergue o exército... Primeiro Zampú, depois o Continente! Pobre Razigarom! Queria tanto ser grande! Mas agora tanto ele como o perigoso cetro estavam destruídos, e o mundo corria um perigo a menos.

Após se recuperarem o suficiente, começaram a viagem de volta. Desta vez até Karuk foi à cavalo, pois ainda estava fraco. Graças à astúcia de Karuk, o segredo da verdadeira natureza de Bener ainda ficou oculto a Alex.

A viagem de volta correu tranqüila. Bener estava muito satisfeito. “Nada mal, para quem acabou de começar!”.

Receberam muitas honrarias do governo local. Depois, Karuk despediu-se, agradecendo a ajuda. Alex rapidamente recebeu uma proposta de serviço. Tratava-se de escoltar um carregamento de riquezas de um Burguês. Ele aceitou, mas antes convidou a Bener.

Este preferira seguir seu próprio caminho. Alex entendeu isso como um “Não sou um mercenário, mas um aventureiro”. Falou que gostaria de partir com Bener em busca de uma nova grande aventura, mas que precisava do dinheiro que a escolta tediosa lhe proporcionaria, de modo que se despediram.

Bener juntou suas coisas e partiu bem cedo, no dia seguinte à partida de Alex. O sol brilhava forte, iluminado todo um mundo de fortes emoções. Para onde ia? Atravessaria uma distância de algumas centenas de quilômetros ao sul, para mais próximo de onde a Ilha de Rafon provavelmente estava. Tentaria descobrir sua localização, apenas como objetivo imediato, pois, como já havia refletido, não estava ainda pronto. Esperava ainda encontrar grandes aventuras no caminho, ou elas o encontrarem, como aconteceu recentemente. Ora, se metade das histórias contadas sobre Gideon forem verdade, o destino responde generosamente a quem pede por aventura!

As primeiras aventuras de Bener.

Siqueira, 28/05/03