As fadas e os vaga-lumes

Stefany parou, já exausta, depois de correr por um longo tempo. Aquele corredor revestido de pedras negras polidas, era húmido e frio; o chão coberto de pedrinhas cinzas estava em alguns pontos bem molhado, com poças rasas de água que vertia das pequenas fendas entre as rochas. Ali, naquele ambiente escuro e claustrofóbico, a garota se encostou na parede e deslizou até o chão, onde ficou sentada pensando no que ocorrera. Lembrou nesse momento de algumas das histórias que sua avó lhe contava, recordou-se de uma canção que lhe fora ensinado.

“ Estou aqui perdida, devorada pelo escuro.

Meu coração grita,

minha alma estremece,

mas eu sei que não estou tão só...”

Ela não conseguiu continuar. Sua voz enfraquecida foi tomada por um pranto silencioso; as lágrimas escorriam lentamente, como se tivessem medo do escuro. O seu maior sonho, agora havia se tornado em um pesadelo...

Desde muito pequena, Stefany tinha o sonho de conhecer a majestosa cidade de Paris. Ela era de família simples, morava com os pais e um irmão num bairro do suburbio de Vitória. Seu pai era carteiro, sua mãe faxineira e seu irmão servia ao exército. Devido às condições financeiras, óbviamente seus pais não podiam lhe dar tal viagem.

Certo dia, a sua tia mais próxima fez uma visita inesperada à casa dos Martinêz. A tia Verônica era a irmã mais velha da mãe de Stefany, e era também a pessoa mais excêntrica da família. Casara-se com um rico juíz, e já não trabalhava havia anos; passava a maioria do tempo viajando de um lado a outro, quase sempre carregando a sua filha Rafaela, que tinha a mesma idade de Stefany.

No dia da ilustre visita, Rafaela e Stefany conversavam sobre coisas fúteis e divertidas, enquanto Verônica conversava com a sua irmã:

— Cíntia, a Stefany faz quinze anos no final do ano...eu gostaria de dar um presente a ela.

— Presente? — indagou Cíntia, olhando desconfiada para a irmã. — Que tipo de presente?

— Uma viagem —Verônica aproximou seu rosto de Cíntia e continuou quase que num sussuro. — A “Rafa” me disse que por várias vezes a Stefany falou em um sonho que ela tem. O sonho de viajar a Paris!

— Não fale bobagens Verônica! Uma viagem para lá é muito cara!

— Acalme-se. Apenas espere...

O tempo se passou e a idéia amadureceu. Era metade de setembro quando a tia de Stefany chegou com as passagens; nos dias que se seguiram foram providênciados os documentos necessários, e no fim de outubro as malas já estavam prontas. A garota não iria sozinha, claro; seria acompanhada da tia e da prima.

O frio na barriga durante o primeiro voo e o alívio do pouso eram sensações novas para Stefany, mas nada lhe fascinou tanto, quanto ver ao vivo a “cidade luz”.

Era outono no hemisfério norte, o dia estava cinzento e uma brisa suave vinha do leste. As árvores já estavam com suas folhas tingidas de dourado e vermelho. Paris estava bela e elegante, da forma que Stefany imaginara durante grande parte de sua vida.

As três se hospedaram em um hotel no centro da cidade.

— Olha só isso Rafa! — exclamou Stefany ao abrir a cortina e avistar a Torre Eiffel. — Isso é maravilhoso!

— É muito bonito sim, mas prefiro no verão — Rafaela vestiu uma blusa de lã, demonstrando que estava com frio. — Minha mãe que é louca, prefere Paris nesta época, imagina só! Te trazer aqui no outono!

As duas garotas riram. Passaram o resto da tarde conversando, e ao cair da noite, saíram com Verônica para jantar.

Elas pegaram um táxi, mas desceram vários quarteirões antes do restaurante para que pudessem caminhar, e apreciar a noite parisiana.

“Não faça isso.” — escutou Stefany de repente, como se alguém sussurasse em seu ouvido um alerta. Ela virou-se mas não havia ninguém; por algum motivo sentiu arrepios e seu coração começou a bater acelerado.

— Aconteceu algo Stefany? — perguntou sua tia, notando o comportamento estranho dela.

— Não foi nada. Só estou um pouco ansiosa...

— Ah, entendo — disse Verônica sorrindo.

As três continuaram andando pela Champs-Elisée até chegarem no restaurante onde jantaram. Por volta das 9 e meia elas saíram para caminhar mais um pouco. Novamente Stefany ouviu um sussuro: “Não vá por este caminho...”— desta vez o murmúrio foi tão próximo, que a garota poderia jurar ter sentido a respiração de alguém na sua nuca. Contudo, ao virar-se ela não avistou ninguém, além de uma mulher que passeava com seus cães.

— Tem certeza de que está bem? — perguntou Rafaela. — É que você parece estar meio agitada.

— Só pensei ter ouvido alguém me chamar.

— Isso é sono! — disse Verônica rindo. — Vou chamar um táxi, já é realmente hora de voltarmos.

A sua tia observou ao redor, e ascenou para um táxi que se aproximava. O veículo parou, e as três se espremeram no banco de trás. Verônica disse ao motorista o endereço do hotel e imediatamente eles já estavam se movimentando.

Repentinamente o táxista entrou com o carro em um beco escuro e parou. Nesse momento quatro homens armados cercaram o carro.

— O que está acontecendo aqui?! — gritou Verônica

O táxista posicionou o espelho para observá-las, e pôde-se ver o rosto dele. Uma face horrenda, com várias cicatrizes; seus olhos eram negros, e se afundavam nas suas órbitas. Seu rosto era ossudo, sua pele oleosa e sua barba rala e um pouco grisalha.

O homem gritou algo, e no mesmo instante os homens armados abriram a porta do táxi com violência e puxaram as três para fora.

— O que está acontecendo? — perguntou Stefany desesperada. — É um assalto?

Antes de receber uma resposta, alguém a agarrou e pressionou sobre seu rosto um pano embebido em formol; Stefany tentou se desvencilhar mas as suas forças pareciam se esgotar, até que ela apagou.

Vagarosamente ela voltou a si. Ainda com a visão embaçada, a primeira coisa que viu foi o táxista sentado em um banquinho bem na sua frente. Logo, ela percebeu que estava amarrada em uma cadeira que encontrava-se no meio de um galpão mal iluminado. Ela não conseguia imaginar o que estava acontecendo. O táxista olhava para ela com um olhar penetrante, com uma expressão de extrema satisfação.

— Quem é você? O que quer de mim? — berrou Stefany.

Ele apenas sorriu, levantou-se e deixou a garota sozinha.

Stefany olhou ao redor. Devia ser de madrugada, pois o silêncio invadia aquele lugar e o único som que ela ouvia, era o do prórpio coração pulando em seu peito.

— Socorro! Alguém me ajude! — gritou ela, mas tal apelo parecia inútil.

Enquanto era tomada pelo desespero, ela começou a tentar se soltar, movendo o braços que haviam sido colocados para trás, numa tentativa de afrouxar as cordas que a prendiam. Num movimento mais brusco, ela se pendeu com a cadeira para um lado e caiu no chão. A cadeira que provávelmente era de madeira velha e barata, quebrou na altura do encosto, permitindo com que a garota se libertasse.

Stefany se dirigiu até uma das janelas e olhou para fora. Estava aparentemente em um lugar bem afastado de Paris, pois ela pôde perceber que havia do lado de fora um campo repleto de margaridas, iluminado pela luz da lua.

Furtivamente, ela caminhou até uma porta na lateral do galpão e a abriu com muito cuidado. Estava no segundo andar, e aquela porta dava acesso a uma escadinha rudimentar feita de ferro. Stefany procurou fazer a menor quantidade de barulho possível, mas a escada rangia a cada passo.

No exato momento em que ela colocou os pés no último degrau, um dos homens apareceu no alto da escada e gritou algo em francês.

Stefany correu até o final de um corredor a sua frente, e abriu uma porta que dava acesso ao lado externo. Sem hesitar, ela continuou a correr sem rumo certo, para longe do galpão.

Ela se enfiou no meio de alguns arbustos e avançou por uma floresta escura. Não tinha noção de onde pisava, a floresta era escura e densa. "Venha ao nosso encontro..." — escutou outra vez o susurro; era como se houvesse alguém falando no seu ouvido, mas ela não via!

Confusa, Stefany começou a andar em circulos até que depois de certo tempo pisou em lugar falso e despencou para dentro de um buraco bastante profundo.

Na queda Stefany deu um mau jeito no pulso. A dor era forte, e se misturava com a sua exaustão de ter corrido tanto. Com esforço ela se levantou e começou a apalpar a terra ao redor, a escuridão era absoluta. De repente ela parou. Ouvira um barulho de água pingando no chão, e esse som ecoava como se houvesse um corredor ali.

Às cegas Stefany foi andando cautelosamente na direção do barulho; descobriu com o tato, que havia paredes de pedras polidas de ambos os lados, revestindo o que deveria ser algum corredor. Após mais alguns passos conseguiu enchergar uma luz prateada, que provavelmente vinha da lua, logo a sua frente. A garota apressou o passo e chegou a um trecho onde um pouco da claridade entrava por uma fresta na rocha. Um pouco de água escorria por algumas fendas e pingava no chão cheio de poças d'água.

Muito cansada, ela se encostou na parede e deslizou até o chão, onde ficou sentada. Seus pensamentos estavam confusos, ela não tinha idéia do que tinha acontecido com ela, e só agora lembrara da prima e da sua tia. "O que será que aconteceu com elas!? Será que elas estão bem?" — pensava Stefany. Seu pulso doía muito, e o medo em seu peito crescia a cada instante.

Foi então que ela lembrou de uma canção que sua falecida avó lhe ensinara. Sua avó dizia que se uma dia ela precisasse de ajuda, deveria cantá-la, e que certamente a ajuda viria. Parecia bobagem, mas mesmo assim a garota começou a entoar o canto... Mal iniciara e já parou, aos prantos.

Depois de algum tempo chorando, ela limpou as lágrimas e voltou a entoar a canção. Desde criança, ela sabia que havia alguma força oculta que a protegia, agora era o momento de saber se suas suposições eram verdadeiras, ou mera loucura. Ela cantou num tom mais alto, quase de desespero:

"Fada, fada não se esconda

Sou sua amiga, estou aqui!

Ó rainha querida, apareça

Me salve do perigo, do escuro

Me leve para a luz,

para longe de Ofidis!

Ó princesa doce..."

Stefany foi interrompida por um vaga-lume que começou a dançar na sua frente. Ele era diferente, um pouco maior que os que ela estava acostumada a ver, e o que chamou-lhe mais a atenção foi seu rabinho, que emitia uma luz azulada bem incomum. Só depois de algum tempo que a garota foi perceber o quê o inseto queria dizer com todo aquele "ballet": o vaga-lume queria que a menina o seguisse!

Rapidamente Stefany o seguiu e depois de percorridos alguns metros, outro vaga-lume surgiu. Mais à frente, outro. A cada trecho que ela andava, mais e mais vaga-lumes apareciam e se juntavam ao primeiro, que liderava o enorme grupo de insetos. Inesperadamente eles estacionaram no ar. Stefany entendeu que deveria parar também.

Os vaga-lumes então se afastaram dela rapidamente, deixando-a novamente na escuridão; ela apenas pôde ver a nuvem de insetos fluorescentes subir em direção ao teto e se apagar. Segundos depois, eles voltaram a ascender, e junto deles, outros milhares de vaga-lumes grudados nas paredes e no teto. Num espetáculo fascinante, eles iluminaram todo aquele lugar, revelando uma gigantesca câmara subterrânea.

O corredor de onde ela viera acabava em uma escadaria de mármore que descia até a câmara. Lá embaixo havia surpreendentemente um verdadeiro ecossistema: grama verdinha, flores de diversas espécies, borboletas que voejavam, árvores de frutos desconhecidos e um pequeno laguinho de água cristalina. Tudo aquilo parecia inacreditável para ela, mas não tão inacreditável quanto o Ser que se ergueu ao seu lado.

Era uma criatura imponente, muito parecida com um humano, só que mais alto. Possuía cabelos castanhos e compridos; seus olhos eram verdes, num tom bem claro; usava vestes cinza-escruro, bem desgastadas; e tinha na cintura um cinto que segurava uma espada dentro de uma bainha de couro. Além disso, possuía um par de assas majestosas, cobertas de plumas cinzentas. Ao ver aquela criatura Stefany soltou um grito.

— Acalme-se Stefany! — disse o Ser, com muita calma. Stefany se calou.

— Como...como sabe meu nome? O quê é você? — indagou Stefany com medo.

— Me chamo Árion, sou uma fada Galesa — respondeu.

— Reconheço essa voz! Era você que me chamava!! Mas...Fada? Como assim! — a garota coçou os olhos, desacreditando no que via. — Isso não pode ser real!

— Não se trata de um sonho... muito menos de um pesadelo — disse a fada. A sua voz era suave e muito agradável.— Você já ouviu falar de nós — continuou a fada —, não lembra-se?

— Fadas não existem! — gritou stefany.

— Existem — afirmou Árion, com muita tranquilidade. — Lembra-se quando foi que surgiu seu desejo de visitar Paris?

— Sim, foi quando a minha avó contou uma história sobre...

— Fadas guerreiras no subsolo de Paris — completou a fada, em seguida sorrindo com o canto da boca.

— Eu devo estar louca!

— Pois não está! E você sabe disso, não é? — Árion fitou Stefany com um olhar questinador. — Aquilo que você cantou, é um mantra, cantado há séculos por viajantes perdidos. Chama-se "O lamento de Annabelle", e é um pedido de socorro para uma fada. Sempre acreditou que existiamos...

— Está bem, eu confesso que sempre tive esse tipo de pensamento bobo... mas o que está acontecendo? Que lugar é esse?

— Este lugar é um dos nossos recantos. São inúmeras câmaras, e milhares de quilômetros de corredores subterrâneos por toda a França — a fada olhou com orgulho para a câmara e então ficou séria. — Está acontecendo algo grandioso...

— Algo grandioso? Como assim? Onde estão minha tia e minha prima? Quem eram aqueles homens, você sabe, não é?

— Fique tranquila, elas estão bem, provavelmente de volta ao hotel, e um mensageiro nosso deve estar nesse momento avisando que você está bem. Sua tia e sua prima estavam preparadas, é por isso que viajam tanto pelo mundo.

— Você as conheçe? — indagou Stefany com espanto

— Sim, por vezes elas estiveram em nossas galerias. Há cerca de alguns meses, pedi que fosse chamada para nos ver... mas não contava que Otto Carvaginni estaria aqui, e muito menos que teria a ousadia de atacá-las...

— Otto?

— Sim, o tal táxista...ele é um dos aliados de... — Árion hesitou, havia ficado repentinamente nervosa.

— De quem? Aliado de quem Árion?

— Do mal... você é uma pedra no sapato de muita gente!

Stefany não sabia de quem realmente se tratava, mas sentiu arrepios. Já ouvira na infância algumas histórias de um mal, uma sombra que atormentava a muitos e que se tornava maior à noite.

— Me escute, Stefany. A sua família faz parte de uma linhagem muito especial, uma linhagem mestiça. Metade humana, metade fada. E há muitos séculos, a sua família é protegida e agora chegou um momento decisivo — Árion pausou por um instante, e segurou firme no ombro de Stefany antes de recomeçar. — Em dentro de alguns dias, ocorrerá um evento que vai mudar os rumos de toda a humanidade.

— E que evento será esse? — indagou Stefany.

— Ainda não posso te falar, mas você terá um papel muito importante. Como a mais jovem da linhagem, você será o elo entre o seu mundo e nós fadas.

— Mas como eu vou fazer isso?

— Não se preocupe, você será treinada, dominará outros idiomas "não-humanos", e aprenderá a usar os seus poderes de fada.

— Poderes de fada?

— Exato.

Árion pegou o pulso machucado de Stefany e o pressionou enquanto murmurava algumas palavras. Instantes depois o pulso estava curado e a garota já podia mexê-lo.

— Este poder, o de cura, é um deles — disse Árion

— Isso é incrível! — exclamou Stefany sorrindo.

— Agora peço que me acompanhe. Voltará depois para o conforto do hotel, mas agora venha comigo.

Stefany concordou e elas desceram a escadaria, atravessaram a câmara, e entraram em outro túnel na extremidade oposta. Vários vaga-lumes as seguiram e iluminaram o túnel.

Minutos depois saíram em outra galeria, mas essa era especial. Centenas de fadas abriram as asas, e as olharam com enorme respeito...

Jean Carlos Bris
Enviado por Jean Carlos Bris em 15/03/2009
Reeditado em 04/07/2009
Código do texto: T1488083
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