Crônicas de Bela Noite - Maio de 17**
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Da chegada dos Leopardos Negros ao refúgio não-humano de Bela Noite, nos idos de 1700. Seriam os primeiros de sua raça a nos alcançarem, e o povo que iria trazer a nós a força viril e fecunda que só a efemeridade humana possui.
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Uma ave de arribação solitária não teria causado mais espanto e indefinível pena e desolação que o primeiro deles causou ao surgir em nosso refúgio. Veio cauteloso e de olhos buliçosos, dizendo palavras que não compreendíamos. Ainda assim, ou talvez por isso, o cercávamos fascinados – os mais afoitos tocavam-no incrédulos. A maioria de nós não via um humano há mais de cem anos, e muito menos um filho da África.
Ele não parecia assustado conosco. Certamente não sabia o que éramos. Continuava com sua algaravia, cada vez mais excitado, brandindo uma pedrinha dourada com as mãos trêmulas.
A comoção apenas deu mostras de terminar quando Suas Altezas Alexandre e Rosa Van Allen se aproximaram e falaram gentilmente com o humano. Foi só quando percebemos o que deveria ser óbvio: estávamos no Brasil, o homem falava português e não o nosso alemão misturado com francês.
Alexandre Van Allen ouviu. Ouviu e falou. Ouviu, falou e gesticulou. E nossa ave solitária bateu asas.
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Todos saíram de suas casas quando eles chegaram, tendo a frente nosso conhecido. Eram vinte ou trinta, marchando lentos e silenciosos. Os olhos brilhantes pareciam ter aprisionado parte da noite amiga, amante e cúmplice da fuga. Entranhado na pele, estava seu negror calmante. Os dentes brancos, ao pipocarem breves, pareciam trazer ecos da explosão do látego.
Diante de nosso grupo, pararam, e um formidável espécime humano se adiantou. Teria Hércules sido como ele? Teria possuído o herói grego, além dos possantes músculos, aquele semblante carregado e profundo, aquele porte nobre?
Nossos líderes também se adiantaram. Diante deles, o homem prestou reverência. Como não prestar, diante de dois seres que eram o mais próximo que conhecíamos de anjos precipitados do paraíso? Terminada a reverência, foi a vez de Alexandre e Rosa prestarem outra, tão respeitosa e profunda quanto a do humano. Igualdade. Nossa palavra de lei.
Alexandre se pronunciou, então, e sua esposa traduziu gentilmente para nós. Ele disse que os irmãos seriam bem-vindos para estar conosco pelo tempo que quisessem. Que eram livres para permanecer na cidade e negociar. Que a extensão de terra que reclamassem seria deles. Que não temessem, porque éramos companheiros contra a diferença e a injustiça.
O homem assentiu, e concordou com nosso príncipe. A luta pela sobrevivência lhe marcara na mente e no corpo o que eram as palavras “irmão”, “liberdade”, “reclamação”, “temor”, “diferença” e “injustiça”. Em sinal de paz, uma mulher – ou seria, antes, uma Vênus transbordando fertilidade – trouxe uma tigela tosca cheia de alimento humano de excelente aspecto. Um presente inadvertidamente pouco adequado, mas comovente em sua intenção.
Após inalar profundamente os vapores desprendidos da refeição, Alexandre apertou o presente contra o peito. Agradeceu carregado de emoção. Explicou que não era capaz de comer nada, nada mesmo, por insondáveis desígnios do bom Deus; porém, sabia que aquele alimento havia sido preparado com carinho, respeito e fé. E que essa era toda a nutrição de que ele necessitava.
Dessa vez, o líder humano se desculpou timidamente. Seu português trôpego não compreendera essa parte do discurso. Ninguém jamais lhe ensinara o que significavam as palavras “carinho”, “respeito”, “nutrição” e “fé”.