Conseqüências

Era como um filme em preto e branco, pois os fatos manchavam o papel branco de preto. A estrada era reta, o terreno era pleno e o fim da estrada longínquo deixando tudo tão teatral, tudo tão fingido. Infelizmente, não era. O trilho do trem abandonado, havia cento e vinte anos, era o único sinal de que em, algum dia, ali houvera alguma forma de vida feliz, realmente iluminada com a escuridão.

A brisa das cinco da tarde bateu nas árvores à beira da estrada, levando as folhas secas que o outono deixara para trás. O Sol se punha à oeste, e o lado leste já revelava as primeiras estrelas de uma noite fria e sombria, amaldiçoada. As pedras soltas do asfalto degradado e ancião rolavam no mesmo sentido em que o vento batia, produzindo um ruído parecido com o tilintar das ondas no mar sobre a água parada.

Estranhamente, ao longe, ouviu-se o canto perturbador dos corvos. Cem anos antes, corvos viviam apenas no hemisfério norte, e costumavam simbolizar morte. Agora que, graças à burrice imensa do homem (pobre do burro que não tinha nada ver), o corvo era sinal de que havia alguma vida. Homem egocêntrico, imbecil e canalha que acabou com tudo. Acabou com tudo. Os corvos pousaram no galho da única árvore completamente isolada, seca e sem folhas.

Minutos depois, um homem com vestimentas de mendigo, sujo, com barba e cabelos grandes e encardidos, alto, e com olhos notavelmente azuis apagados, caminhava pela estrada, olhando para seus pés descalços que haviam sido machucados pelas pedras soltas do asfalto, pés que sangravam. Andava lento, como o caminhar de um homem dividido pela espada do inimigo, como o andar de alguém que colocou fé em algo que havia sido prevenido de não colocar.

Parou em frente à arvore dos corvos, a estrada fazia curva num morro. Olhou para o topo dela, onde havia uma gota d’água. A vida; Como aquilo o perturbava.

- Ah, Jê. Preveni-te, porém tapaste teus lindos olhos azuis com a fé em uma coisa imperfeita. Vejas como estás! Deixar-me-ia de coração partido se eu possuísse fé em sentimentos – disse o homem alto e extremamente bonito que estava sentado no topo do morro, observando os movimentos do homem que observava o orvalho.

- Nunca crestes em nada, Lu. Admito que coloquei fé e nunca deveria ter cometido tal fato, mas cometi um único erro, tive esperança, Lu, tive esperanças. Sou assombrado por ela hoje. Ela anda atrás de mim como minha sombra, chego, às vezes, a acreditar que ela é minha sombra. Estou tão perdido quanto eles estiveram – o homem disse com voz vaga, sem tirar os olhos do orvalho que parecia congelado com o vento.

- Não posso acreditar – o homem que fora chamado de Lu divertia-se, ria com uma gargalhada gostosa, maléfica e realizada com vontade – como agora gostaria de ter fé – ele ainda ria – é sério, mesmo? Parece que Ele está... Sofrendo? – ele ria muito – sofres por tuas criações, Jê? Não criaste o homem, então! Veja o que eles fizeram com teu jardim! Devo admitir que era maravilhoso, mas...Minhas terras se expandiram.

- Eram gente de pouca gratidão. Nunca aprenderam o que lhes tentei ensinar durante milênios.

- Queimaram tuas terras com as doenças, e deixaram expandir o fogo com a fome - agora Lu caminhava em direção à Jê, que continuava observando o orvalho – destruíram tuas plantas com a desigualdade e mantiveram teu solo infértil com a miséria e a pobreza – ele chegara ao lado do Jê e, agora, também observava o orvalho – aniquilaram tudo que conheciam com o desequilíbrio natural. Atearam fogo no próprio berço, pois mataram mães, bebês e crianças – agora Lu colocava a mão por sobre o ombro de Jê – lembra-te de que Eva fora corrompida por um fruto dessa árvore?

- Nem o que conseguiram com a desobediência, preservaram. Não conservaram o saber. Não compartilharam com todos o direito de saber. E agora, estou conversando com Lúcifer sobre fé, que acreditar nas coisas é um erro.

- Não, meu caro. Acreditar em utopias é um erro. Encorajavam crianças à acreditar em sonhos impossível para a humanidade ter um futuro, e o que conseguiram, foram um futuro em minhas terras. És muito sábio, amigo. Mas não moveste teu rei para a casa certa, foste induzido ao erro pela tua própria criação. Sim – ele fazia sinal com a cabeça – é uma desgraça. Meu caro, acreditar nas coisas não é um erro, mas acreditar em seres humanos, sim.

Jê nada mais disse. Uma lágrima correu pelo seu rosto. Continuou caminhando pela estrada, mas, agora, na companhia de Lu. Quem diria, Jeová e Lúcifer, unidos pela desgraça que o homem causara.

A noite caia, e assombrava as estrelas e a Lua minguante, que iluminava o céu, apesar de, agora, não ter mais o porque brilhar alto. Estrelas que Ele havia colocado no céu para dar apenas esperanças aos homens. Mas, tudo o que conseguira fora guardar todas as esperanças para si, enquanto assistia à tudo que havia criado e amado, sendo extinto.

Débora Dias
Enviado por Débora Dias em 09/03/2009
Código do texto: T1478061
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