O Anjo de Clarissa
CLARISSA SABIA QUE OS ANJOS eram criaturas maravilhosas. Via os querubins pintados nas paredes da igreja que freqüentava com a avó e se perguntava como eles poderiam ser tão belos. A menina sabia que os anjos eram como crianças, e talvez por isso se sentisse tão cativada pelos seres. Ela queria poder conversar com aquelas pinturas, perguntar como era ter asas e conhecer os céus, perguntar se era mesmo tão bom assim ser um anjo.
Todo o dia Clarissa rezava para o seu anjo da guarda, fazendo a oração ensinada pela avó há muito tempo. Depois que o protocolo estivesse concluído, ela sentia-se a vontade para falar o que realmente sentia e pensava. “Como posso saber se você está me protegendo mesmo?”, ela pensava, de olhos fechados, tentando visualizar a silhueta de seu anjo da guarda. “Por que você não vem falar comigo?”.
A menina tinha suas dúvidas. Sempre a fizeram crer que os anjos estavam ali, entre ela, mas que não podiam aparecer. E porque apareciam com tanta frequência na Bíblia, se agora não apareciam mais? Será que os homens ficaram assim tão desimportantes? Não havia nenhuma outra explicação senão essa. Entretanto, Clarissa tentava não acreditar naquilo. Fazia suas orações dia após dia, agarrando-se na possibilidade de um dia conhecer seu anjo da guarda.
Esse dia chegou muito antes do que ela pensava.
FOI DURANTE UM PASSEIO AO litoral. Depois de usar o filtro solar com o fator de proteção mais alto da farmácia, Clarissa correu até a água, sem se preocupar com os avisos do pai e da mãe de que não nadasse muito fundo e tomasse cuidado com a correnteza. “Eu sei nadar!”, ela gritou enquanto corria, espalhando areia para todos os lados.
O mar estava bravo naquele dia. Ondas fortes ameaçavam os banhistas, e poucos se arriscavam a ir mais longe. Clarissa sentou-se na beira do mar, sentindo a água gelada em suas pernas e a areia depositando-se lentamente em seu biquíni. Enterrou as mãos na areia em busca de tatuís. Gostava das cócegas que eles faziam quando andavam nas mãos, e também dos buraquinhos que criavam assim que as ondas arrastavam-se de volta ao mar. Ficou ali muito tempo, vez ou outra arriscando um mergulho em algum lugar não muito longe.
Clarissa sequer pensava nos anjos quando viu um deles emergir da água salgada. Franziu o rosto, tomada por surpresa. A princípio, pensou que fosse alguma peça que o sol pregava em seus olhos. Provavelmente o reflexo da luz na água, era apenas isso. Olhou para os lados, imaginando se alguma pessoa além dela tinha visto algo diferente. Todos continuavam fazendo o que estavam fazendo. Não, aquilo era estupidez. Anjos não nadavam no mar.
Já estava convencida de que não havia visto nada quando o anjo passou de novo por seus olhos. Parecia um pássaro, com a envergadura gigantesca das asas abertas. Sua sombra confundia-se com as das pipas e dos outros pássaros, mas agora Clarissa tinha certeza de que ele não era um nem outro.
O anjo fechou as asas e mergulhou no mar com uma incrível velocidade. Depois subiu mais uma vez, os cabelos e asas ensopados. Tinha o torso nu, era forte e tinha cabelos negros como a noite. As asas eram do mais límpido branco, refletindo a luz do sol com magnífica beleza. Clarissa estava hipnotizada, olhando boquiaberta para a figura. Como ninguém percebia a presença dele?
Então ele sorriu e acenou para ela. Estava levitando, as asas mexendo-se lentamente, os dedos do pé a dois centímetros da água. Ele chamou-a com as mãos, sorrindo.
Clarissa olhou para os lados e percebeu que mais ninguém via o anjo.
- Só você pode me ver! – ela ouviu-o gritar de onde estava. – Sou seu anjo, só seu! Agora venha até aqui!
A menina tinha medo. Por que ele estava tão longe? Por que a chamava para um lugar tão distante, em um dia que o mar estava tão bravo?
Ela engoliu em seco, levantando-se. O sorriso do anjo aumentou. Clarissa sabia que alguma coisa estava errada. Sua mãe sempre a fez acreditar que estranhos não eram dignos de confiança, e, por mais bela que aquela criatura pudesse ser, ainda assim era um estranho.
Clarissa começou a andar para trás, receosa do que pudesse acontecer.
- Ei, Clarissa! Estou falando com você! Venha até aqui!
Ela saiu correndo na direção contrária, voltando ao lugar onde os pais estavam. Seu coração pulsava forte e seu cérebro estava a mil.
Passou o resto do dia sentada na areia, sob o guarda-sol. Estava amedrontada com seu anjo da guarda.
NÃO PODERIA SER O SOL. Era real demais para ser uma alucinação. Então só restavam duas possibilidades: ou o anjo realmente existia ou ela estava ficando louca.
Clarissa remoia lembranças, deitada na cama, revirando-se de um lado para o outro, sem conseguir pregar os olhos. Era quase uma da manhã.
- Por que você não foi para lá quando eu chamei? – o anjo perguntou, sem avisos ou anunciações.
O som vinha de dentro da mente de Clarissa, mas não fazia parte de seus pensamentos. Ela sobressaltou-se, arregalando os olhos e sentando-se na cama.
- É você? – ela perguntou baixinho. Se os pais a ouvissem falando sozinha, achariam que ela estava enlouquecendo.
- E quem mais poderia ser? – a voz reverberou em sua mente.
Logo, a imagem do anjo apareceu. As asas estavam fechadas nas costas, e um sorriso confortador estampava sua face.
- E-eu estava com... com medo. – ela disse. – Eu não sei nadar muito bem.
- Eu estava lá para te segurar. – ele disse, o sorriso ainda mais belo. – Estava lá para aplacar teu sofrimento, minha criança. As coisas poderiam ser mais fáceis se você tivesse ido até mim. Seria indolor.
- O que você está dizendo? – ela perguntou, puxando a coberta mais para cima.
- Amanhã... amanhã você irá entender.
ELA FINALMENTE HAVIA ENTENDIDO, MAS era tarde demais. O anjo, no fim das contas, só queria o seu bem, por mais distorcida que essa palavra pudesse parecer na situação. Ele era a benevolência de uma tragédia.
A menina corria para atravessar a rua do cruzamento. Não percebeu quando o Corsa branco vinha desenfreado na outra pista, pouco preocupado com garotinhas que não respeitavam a sinalização. Atingiu-a em cheio, fazendo-a voar pelos ares e cair no chão com um baque surdo. O sangue espirrou, enquanto os papeis do colégio esvoaçavam pela rua. Então veio a confusão de sons misturadas à dor: o Corsa freando bruscamente, as pessoas gritando, teclando em seus celulares e chamando o corpo de bombeiros. O sol cegava Clarissa; a dor a anestesiava e a impedia de falar ou se mexer.
Então ela viu pela terceira vez: a silhueta do anjo tapando o sol. Dessa vez estava imponente, com as asas abertas, uma expressão de desânimo no rosto.
- Eu tentei que tudo fosse menos doloroso, minha criança, mas você não confiou em mim. – ele disse. – Tudo o que eu queria era o mínimo de sofrimento para você.
Uma lágrima escorreu pelos olhos dela.
- Por que você não podia evitar tudo isso? – ela tentou falar, mas os sons não saíam de seus pensamentos. Mesmo assim, ele conseguiu entendê-la.
- Sua hora era aqui e agora, minha criança. O que eu podia fazer era evitar toda a dor, fazendo-a mais breve possível. Mas não se preocupe. Tudo vai passar.
- Mas meus pais?
- Eles ficarão tristes, Clarissa, mas saberão que você está bem. O tempo dirá isso a eles. E você ficará bem. Tudo o que tem de fazer é esperar.
OS MÉDICOS COLOCARAM-NA numa maca e a ambulância partiu velozmente até a emergência municipal. O som da sirene machucava os ouvidos de Clarissa, mas ela estava fraca demais para reclamar.
Tentaram de tudo: oito longas horas de sofrimento e insucesso. Mesmo com os anestésicos, Clarissa podia sentir a cada vez que a sutura entrava em sua pele ou que o bisturi a cortava. Durante todo o tempo, o anjo estava ao seu lado, velando por seu sofrimento, chorando em impotência e desolação. Tudo o que podia fazer era olhar.
E no fim, o inevitável. A morte veio às exatas nove horas daquela noite. Os pais se desesperaram num choro contínuo e sofrido, mas Clarissa estava bem.
Estava de mãos dados com o anjo, enquanto sentia asas brotarem de suas costas. Sua missão na Terra estava completa. Voou para além da compreensão humana, sentindo o vento em seu rosto e a alegria em cada partícula de sua nova condição de criatura.
- Desculpe por não ter confiado em você. – ela disse ao anjo.
- Seu sofrimento também foi meu por todas aquelas horas. – ele disse. – Mas agora isso faz parte do passado.
- E o que vem agora?
- O futuro.
Com isso, as duas figuras desapareceram no zênite. Clarissa tinha a certeza de uma única coisa: anjos existiam, e eram criaturas fantásticas.