A PAREDE TRANSPARENTE
Raul passou a noite em claro. Rolou na cama. Mudou o travesseiro para a cabeceira contrária. Tudo em vão. A insônia teimava em persistir até o clarear do dia. Finalmente levantou e foi tomar um banho. A água morna trouxe uma certa lassidão ao corpo todo mas a cabeça continuava tensa. O dia iniciaria pesado.
Desde que na casa vizinha chegaram novos moradores, Raul perdeu o sossego da alma. Ele nunca passou por semelhante situação nos seus dezenove anos de rapaz normal que já teve duas namoradas. Cada um desses relacionamentos durou menos de mês e meio. Raul queria liberdade e as meninas não a permitiam. Viviam entupindo seu celular de mensagens e a toda hora queriam falar com ele. Por isso rompia sem muita cerimônia. Mas desde a semana passada, quando os compradores da casa vizinha chegaram de mudança e da família de cinco pessoas faz parte uma moça de seus dezessete ou dezoito anos, ele mudou.
Raul ainda não conseguiu falar com a garota. Ela vive dentro de casa ajudando a mãe na organização do novo lar. O pai dela sai cedo para o trabalho e somente volta à noite. Os dois irmãos vão à escola pela manhã e à tarde saem para fazer curso de informática. Ela mesma parece não estar estudando. Deve ter concluído o ensino médio. Não teve coragem de perguntar à mãe para saber de algo sobre os novos vizinhos. E isto que ela deve estar bem informada pois já esteve pelo menos umas três vezes com eles e até ajudou quando veio a mudança.
Resolveu que hoje prestaria atenção para ver se ficava a par do nome da moça. Ela era bonita. Alta e esbelta, cabelo comprido, parecia quase uma modelo. Teria namorado? Ainda não a vira sair e nem viu assomar homem algum na casa, isto que ele ficara sempre meio alerta a todos os movimentos. O problema era à noite quando ia à faculdade. Por isso teria que falar com a mãe para que o informasse de qualquer novidade. Mas como criar coragem? Logo ele que nunca se achara um tímido!
O dia clareara e um sol estonteante estava nascendo num céu de brigadeiro.
A cabeça pesada de tanto pensar durante a noite doía bastante. Não encontrou uma fórmula de inquirir a mãe. E se resolvesse falar direto com a bela? Teria nada demais! E se ela se incomodasse, se tivesse namorado, quem sabe, era noiva já? As dúvidas da noite mal dormida permaneciam e ele teve medo que alguém poderia lê-las em sua cara. Voltou ao quarto e lá ficou até a mãe chamar para o café. Simulava estar estudando, lendo um pouco. Tomou o café sem dirigir-lhe o olhar. Poderia perguntar, agora, para ela. Mas sequer disse uma palavra além do costumeiro “Bom dia, mamãe”. Logo depois saiu para caminhar um pouco na rua. Não viu movimento nenhum. Sentiu apenas o calor gostoso do sol de março misturado ao frescor de uma leve brisa matinal.
A caminhada trouxe um alívio à cabeça. Raul aproveitou para voltar pelo lado oposto para poder passar na frente da casa de sua “admirada”. Caminhava a passos lentos tentando aparentar indiferença.
Após quase uma hora de voltas pelas ruas do bairro estava chegando em casa. Passou bem devagar na frente da morada dos vizinhos. Observou as janelas abertas num dos quartos que devia ser dos meninos e fechadas as do que presumia ser da moça. Foi quando ouviu uma voz de um tom gostoso: “já vou!” Não teve dúvidas que era dela e saía daquele quarto em resposta ao chamado da mãe dela.
Os sentimentos de Raul estancaram num instante. Quando instintivamente olhou na direção do quarto fechado teve a estranha sensação de que a parede estava sumindo ou ficando transparente. Viu a garota recém saída do banho deixar cair a toalha com que se cobrira e ficar exposta em toda sua bela nudez. Simplesmente não pode resistir e correu para casa, trancar-se no quarto e suspirar. Sentiu uma estranha loucura tomar conta de seu espírito. As formas e curvas do corpo da jovem expuseram toda a sensualidade de que a natureza a dotara. Ele jogou-se na cama e adormeceu. O cansaço da noite em claro acabou dominando o espírito rebelde.
Raul somente acordou próximo ao meio dia. Não demorou para a mãe chamá-lo ao almoço. Comeu um pouco e se recolheu. Ela estranhou, mas não falou nada. Já desconfiava que alguma coisa estava acontecendo com ele por causa da vizinha. Notara sua curiosidade nos olhares que lançava para a casa ao lado. Percebera que ele ficara estranho ao ver a primeira vez a menina. Mas, como toda mãe de jovem, fez de conta que ignorava tudo.
Raul voltou a se fechar no quarto. Quando notou que a mãe se recolheu para a sesta saiu sem nenhum barulho. Fez o caminho inverso da manhã e viu que a casa vizinha estava normal. Não faltava parede e nenhuma era transparente. Ouviu que a jovem cantarolava pelos fundos. Decerto estava fazendo algum serviço. Estava bem mais calmo do que pela manhã. Só o preocupava como faria para falar com ela ou como saber algo a seu respeito. Intrigava-o aquela visão tida. Teria sido uma alucinação? Entrou em casa e ficou lendo o resto da tarde para dispersar os pensamentos.
À noite, na aula da faculdade, pouco prestou atenção nos professores. Seu pensamento vagava pela casa da vizinha. De quem seriam seus afetos? O que estaria fazendo? A visão da manhã perturbava-o sempre mais. No intervalo das aulas resolveu vir embora. Pegou carona com um colega que também resolvera gazear.
Ao chegar em casa viu um carro estacionado na frente dos vizinhos. Teve um sobressalto. Pelo modelo do veículo presumia que fosse pessoa bem remediada. Procurava uma saída para sua angústia. Sabia que tinha que ficar discreto e preferiu manter a escassa calma de que ainda dispunha.
A mãe estranhou sua volta mais cedo. Não era do feitio do filho gazear aulas. Mas, como mulher experiente, logo cismou que o motivo pudesse ser a bela vizinha. Resolveu observar melhor as atitudes do filho.
Raul ficou no quarto com a janela aberta vigiando todo e qualquer movimento na vizinhança. Próximo das onze horas um casal de meia idade saiu da casa e embarcou no carro. Deviam ser amigos da família da moça. O casal anfitrião veio acompanhá-los até no passeio. Levou um choque quando viu a sua secreta amada também vir, sozinha, juntar-se ao grupo para as despedidas. Uma doce sensação de alívio invadiu seu íntimo. Estaria mesmo livre de compromissos amorosos com toda essa estonteante beleza?
Pôde finalmente ouvir com toda nitidez sua bela voz? Era um riso de adolescente alegre e bem disposta. Estava certo de que ela não devia ter maiores preocupações para rir assim.
Iniciaria mais uma noite de sono perturbado. Quando o mundo inteiro estava dormindo Raul levantou e saiu para a rua. Não havia viv’alma visível na redondeza. Quando, enfim, criou coragem para olhar a casa vizinha não viu a parede. Na penumbra do quarto, de leve iluminado pela lâmpada do poste adjacente, vislumbrou ela deitada na cama, coberta, apenas, por uma cambraia meio transparente. Ficou estático pela visão. Ia gritar com toda a força dos pulmões mas a voz lhe sumira. Sentiu a respiração pesada. De repente a vista turvou e sumiu.
Acordou na cama de um quarto do hospital. A mãe estava segurando sua mão.
- Por que estou aqui? – perguntou com a voz fraca e cansada.
- Te encontraram desmaiado na rua. O médico disse que deve ter sido um súbito mal estar. Ele acha que é nada demais. Depois de tomar o soro ele vai te dar alta. Recomendou que não saias assim desacompanhado à noite.
- A vizinha não sabe nada, né, mãe? – A pergunta parecia uma súplica.
- Foi ela que te encontrou. Contou que não sabe por que teve um pressentimento e parecia ter ouvido um grito na rua. Abriu a janela e viu um vulto deitado ao lado do muro. Chamou seus pais que me acordaram e me ajudaram a trazer-te para cá. Ficou com muita pena de ti. Ainda, por cima, disse que tu parecias um cara tão forte e saudável quando saías à rua. Contou que começou a te observar desde o primeiro dia que te viu.
- Que vergonha, mãe? Como pôde acontecer isso comigo?
- Não é nada. A Gabi disse que de manhã virá para te ver.
- Quem é a Gabi?
- A Gabriela. Tu não sabias o nome dela?
- Não sabia nada dela, só que é bonita.
- Pois, além de bonita, é boa moça. Ajuda a mãe e não é de correr rua. Está fazendo uma faculdade semi presencial. A partir da semana que vem ficará quinze dias freqüentando aulas em três turnos. Forma-se, no ano que vem, em Farmácia.
- Ela virá aqui?
- Sim. Além da cortesia contigo, tem interesse no teu caso clínico. Quer ver os remédios que vão te receitar.
Raul sentiu-se cansado outra vez. Fechou os olhos e voltou a dormir.
Acordou somente por volta das dez horas da manhã. Quase não pode respirar quando viu ao lado da cama a bela vizinha. A mãe fora para casa descansar um pouco. Gabi oferecera-se para cuidar do rapaz.
A recuperação de Raul foi rápida. A transparência da parede jamais voltou.
Raul passou a noite em claro. Rolou na cama. Mudou o travesseiro para a cabeceira contrária. Tudo em vão. A insônia teimava em persistir até o clarear do dia. Finalmente levantou e foi tomar um banho. A água morna trouxe uma certa lassidão ao corpo todo mas a cabeça continuava tensa. O dia iniciaria pesado.
Desde que na casa vizinha chegaram novos moradores, Raul perdeu o sossego da alma. Ele nunca passou por semelhante situação nos seus dezenove anos de rapaz normal que já teve duas namoradas. Cada um desses relacionamentos durou menos de mês e meio. Raul queria liberdade e as meninas não a permitiam. Viviam entupindo seu celular de mensagens e a toda hora queriam falar com ele. Por isso rompia sem muita cerimônia. Mas desde a semana passada, quando os compradores da casa vizinha chegaram de mudança e da família de cinco pessoas faz parte uma moça de seus dezessete ou dezoito anos, ele mudou.
Raul ainda não conseguiu falar com a garota. Ela vive dentro de casa ajudando a mãe na organização do novo lar. O pai dela sai cedo para o trabalho e somente volta à noite. Os dois irmãos vão à escola pela manhã e à tarde saem para fazer curso de informática. Ela mesma parece não estar estudando. Deve ter concluído o ensino médio. Não teve coragem de perguntar à mãe para saber de algo sobre os novos vizinhos. E isto que ela deve estar bem informada pois já esteve pelo menos umas três vezes com eles e até ajudou quando veio a mudança.
Resolveu que hoje prestaria atenção para ver se ficava a par do nome da moça. Ela era bonita. Alta e esbelta, cabelo comprido, parecia quase uma modelo. Teria namorado? Ainda não a vira sair e nem viu assomar homem algum na casa, isto que ele ficara sempre meio alerta a todos os movimentos. O problema era à noite quando ia à faculdade. Por isso teria que falar com a mãe para que o informasse de qualquer novidade. Mas como criar coragem? Logo ele que nunca se achara um tímido!
O dia clareara e um sol estonteante estava nascendo num céu de brigadeiro.
A cabeça pesada de tanto pensar durante a noite doía bastante. Não encontrou uma fórmula de inquirir a mãe. E se resolvesse falar direto com a bela? Teria nada demais! E se ela se incomodasse, se tivesse namorado, quem sabe, era noiva já? As dúvidas da noite mal dormida permaneciam e ele teve medo que alguém poderia lê-las em sua cara. Voltou ao quarto e lá ficou até a mãe chamar para o café. Simulava estar estudando, lendo um pouco. Tomou o café sem dirigir-lhe o olhar. Poderia perguntar, agora, para ela. Mas sequer disse uma palavra além do costumeiro “Bom dia, mamãe”. Logo depois saiu para caminhar um pouco na rua. Não viu movimento nenhum. Sentiu apenas o calor gostoso do sol de março misturado ao frescor de uma leve brisa matinal.
A caminhada trouxe um alívio à cabeça. Raul aproveitou para voltar pelo lado oposto para poder passar na frente da casa de sua “admirada”. Caminhava a passos lentos tentando aparentar indiferença.
Após quase uma hora de voltas pelas ruas do bairro estava chegando em casa. Passou bem devagar na frente da morada dos vizinhos. Observou as janelas abertas num dos quartos que devia ser dos meninos e fechadas as do que presumia ser da moça. Foi quando ouviu uma voz de um tom gostoso: “já vou!” Não teve dúvidas que era dela e saía daquele quarto em resposta ao chamado da mãe dela.
Os sentimentos de Raul estancaram num instante. Quando instintivamente olhou na direção do quarto fechado teve a estranha sensação de que a parede estava sumindo ou ficando transparente. Viu a garota recém saída do banho deixar cair a toalha com que se cobrira e ficar exposta em toda sua bela nudez. Simplesmente não pode resistir e correu para casa, trancar-se no quarto e suspirar. Sentiu uma estranha loucura tomar conta de seu espírito. As formas e curvas do corpo da jovem expuseram toda a sensualidade de que a natureza a dotara. Ele jogou-se na cama e adormeceu. O cansaço da noite em claro acabou dominando o espírito rebelde.
Raul somente acordou próximo ao meio dia. Não demorou para a mãe chamá-lo ao almoço. Comeu um pouco e se recolheu. Ela estranhou, mas não falou nada. Já desconfiava que alguma coisa estava acontecendo com ele por causa da vizinha. Notara sua curiosidade nos olhares que lançava para a casa ao lado. Percebera que ele ficara estranho ao ver a primeira vez a menina. Mas, como toda mãe de jovem, fez de conta que ignorava tudo.
Raul voltou a se fechar no quarto. Quando notou que a mãe se recolheu para a sesta saiu sem nenhum barulho. Fez o caminho inverso da manhã e viu que a casa vizinha estava normal. Não faltava parede e nenhuma era transparente. Ouviu que a jovem cantarolava pelos fundos. Decerto estava fazendo algum serviço. Estava bem mais calmo do que pela manhã. Só o preocupava como faria para falar com ela ou como saber algo a seu respeito. Intrigava-o aquela visão tida. Teria sido uma alucinação? Entrou em casa e ficou lendo o resto da tarde para dispersar os pensamentos.
À noite, na aula da faculdade, pouco prestou atenção nos professores. Seu pensamento vagava pela casa da vizinha. De quem seriam seus afetos? O que estaria fazendo? A visão da manhã perturbava-o sempre mais. No intervalo das aulas resolveu vir embora. Pegou carona com um colega que também resolvera gazear.
Ao chegar em casa viu um carro estacionado na frente dos vizinhos. Teve um sobressalto. Pelo modelo do veículo presumia que fosse pessoa bem remediada. Procurava uma saída para sua angústia. Sabia que tinha que ficar discreto e preferiu manter a escassa calma de que ainda dispunha.
A mãe estranhou sua volta mais cedo. Não era do feitio do filho gazear aulas. Mas, como mulher experiente, logo cismou que o motivo pudesse ser a bela vizinha. Resolveu observar melhor as atitudes do filho.
Raul ficou no quarto com a janela aberta vigiando todo e qualquer movimento na vizinhança. Próximo das onze horas um casal de meia idade saiu da casa e embarcou no carro. Deviam ser amigos da família da moça. O casal anfitrião veio acompanhá-los até no passeio. Levou um choque quando viu a sua secreta amada também vir, sozinha, juntar-se ao grupo para as despedidas. Uma doce sensação de alívio invadiu seu íntimo. Estaria mesmo livre de compromissos amorosos com toda essa estonteante beleza?
Pôde finalmente ouvir com toda nitidez sua bela voz? Era um riso de adolescente alegre e bem disposta. Estava certo de que ela não devia ter maiores preocupações para rir assim.
Iniciaria mais uma noite de sono perturbado. Quando o mundo inteiro estava dormindo Raul levantou e saiu para a rua. Não havia viv’alma visível na redondeza. Quando, enfim, criou coragem para olhar a casa vizinha não viu a parede. Na penumbra do quarto, de leve iluminado pela lâmpada do poste adjacente, vislumbrou ela deitada na cama, coberta, apenas, por uma cambraia meio transparente. Ficou estático pela visão. Ia gritar com toda a força dos pulmões mas a voz lhe sumira. Sentiu a respiração pesada. De repente a vista turvou e sumiu.
Acordou na cama de um quarto do hospital. A mãe estava segurando sua mão.
- Por que estou aqui? – perguntou com a voz fraca e cansada.
- Te encontraram desmaiado na rua. O médico disse que deve ter sido um súbito mal estar. Ele acha que é nada demais. Depois de tomar o soro ele vai te dar alta. Recomendou que não saias assim desacompanhado à noite.
- A vizinha não sabe nada, né, mãe? – A pergunta parecia uma súplica.
- Foi ela que te encontrou. Contou que não sabe por que teve um pressentimento e parecia ter ouvido um grito na rua. Abriu a janela e viu um vulto deitado ao lado do muro. Chamou seus pais que me acordaram e me ajudaram a trazer-te para cá. Ficou com muita pena de ti. Ainda, por cima, disse que tu parecias um cara tão forte e saudável quando saías à rua. Contou que começou a te observar desde o primeiro dia que te viu.
- Que vergonha, mãe? Como pôde acontecer isso comigo?
- Não é nada. A Gabi disse que de manhã virá para te ver.
- Quem é a Gabi?
- A Gabriela. Tu não sabias o nome dela?
- Não sabia nada dela, só que é bonita.
- Pois, além de bonita, é boa moça. Ajuda a mãe e não é de correr rua. Está fazendo uma faculdade semi presencial. A partir da semana que vem ficará quinze dias freqüentando aulas em três turnos. Forma-se, no ano que vem, em Farmácia.
- Ela virá aqui?
- Sim. Além da cortesia contigo, tem interesse no teu caso clínico. Quer ver os remédios que vão te receitar.
Raul sentiu-se cansado outra vez. Fechou os olhos e voltou a dormir.
Acordou somente por volta das dez horas da manhã. Quase não pode respirar quando viu ao lado da cama a bela vizinha. A mãe fora para casa descansar um pouco. Gabi oferecera-se para cuidar do rapaz.
A recuperação de Raul foi rápida. A transparência da parede jamais voltou.