A Saga de Mestre Haladar - A Caçada - Parte III
Haladar seguiu os rastros com cautela por aproximadamente três horas. A noite já havia caído pesada quando avistou a luz vermelha de uma fogueira à frente. À medida que se aproximou, deliciou-se com o olor que dançava no ar. Sem se precipitar, perscrutou e viu duas figuras de tamanhos iguais próximas ao fogo. Ousou ir um pouco adiante. Não tinha nada a esconder, e ambos pareciam-lhe pertencer a algum clã da floresta, mas talvez por ser tão jovem seu espírito curioso estava achando excitante aquela perseguição silenciosa no meio da noite. Ouviu:
– Tinha que demorar tanto? E precisava caçar algo tão grande? – disse um.
– Não comemos carne há dias – retorquiu o outro, que tinha a voz parecida com a do primeiro. – E estamos com muita fome, certo? E esse bichinho aí dá um pouquinho de trabalho, você sabe.
Uma nova figura se revelou, mas se escondeu rapidamente atrás das outras. Era pequena e parecia apenas uma criança, entrementes não se vestia como uma criança da floresta. “Como podem viajar por estas áreas com uma criança?” pensou Haladar.
– Certo, certo. Estamos realmente com fome. Então por que não preparamos logo esse jantar, o que me dizem? Discutam enquanto comemos.
A terceira voz era bem distinta das outras, mas estava longe de ter um tom infantil. Haladar era muito jovem e jamais havia deixado os limites de Valdran, mas lembrou das histórias contadas por seu pai, de um povo de pequeninos que vivia num vale imenso. Halflings é como eram conhecidos, mas chamavam a si mesmos de narrin.
– Tem razão Enro, memória-infalível – disse uma das figuras grandes. Com uma lança espetou a caça entre as mandíbulas; com mais um esforço, fê-la atravessar o animal. – Vamos assá-lo e comê-lo!
Aquelas últimas palavras despertaram a fome do jovem elfo que até então estava aparentemente esquecida por sua curiosidade. Pensou em se apresentar de uma vez e, quem sabe, fazer parte daquela refeição no mínimo farta que em breve estaria no ponto de ser degustada. Mas logo repensou, pois sabia que os eladrin não costumavam caçar javalis, ainda mais num grupo tão pequeno. Aquele tipo de carne não agrada ao paladar do povo da floresta e, ademais, muita carne seria desperdiçada ao que parecia. A não ser que... “eles estoquem uma boa parte com temperos élficos, que são os melhores para isso segundo mamãe” pensou Haladar. “Elfos comem javalis sem problemas. Será que são elfos então? Talvez o que abateu a caça seja; o outro certamente é um worin. Melhor esperar um pouco mais”.
Haladar não moveu um músculo por vários minutos. Acreditava estar bem escondido em meio às raízes da imensa árvore zelliann e arbustos finos, porém altos; tinha uma boa visão do que acontecia no acampamento, apesar de não discernir detalhes.
A caça foi logo fatiada e temperada pelo seu abatedor, mas uma porção grande foi posta acima das chamas que lambiam-na com voracidade; o cheiro de tempero élfico com carne assada fizeram o jovem elfo lamber os beiços. Após cinco minutos seu estômago reclamou num ronco alto e dissonante.
Dos três que estavam no acampamento, apenas um, decerto um eladrin, não se serviu quando foi anunciado que estava pronta a refeição: parecia pensativo, com a cabeça um pouco baixa. Os outros dois conversavam sobre antigas aventuras e riam alto com as bocas cheias; numa mão um enorme pedaço de assado, noutra um copo do famoso vinho de Farllend.
Haladar já não resistia mais, tinha que se revelar e implorar por pelo menos três ou quatro mordidas daquela delícia sobre o fogo crepitante que agora brincava com sombras de pessoas e árvores. O jovem elfo iniciou um passo, mas estacou.
– Às armas! Estamos sendo atacados!
O coração do jovem elfo disparou. Distraíra-se com a situação e se fosse mesmo um ataque seria um alvo fácil. Olhou assustado em todas as direções, pegando seu arco e preparando a flecha. A flecha! Veio-lhe de imediato à mente que só dispunha de uma flecha e que ela já estava destinada a um oponente irreversível. Por sorte não viu nenhum inimigo próximo, mas, tão breve, ouviu o tinir de lâminas no acampamento à frente. Guardou o arco e pegou sua adaga élfica, esgueirando-se silenciosamente através das árvores.
O acampamento fora invadido pelo sul e pelo oeste, por sete ciclopes brandindo lâminas e outros dois munidos de arcos. Haladar viu uma flecha passar veloz e quase atingir um dos eladrin (agora viu que dois eram eladrin) que combatia com duas espadas que rebrilhavam cor-de-magma perto do fogo. Quem a disparou estava a poucos metros à frente e à direita do jovem elfo, e aparentemente ainda não o havia percebido. Ele se esgueirou mais um pouco, o barulho da batalha e os gritos dos ciclopes ajudando-o a se aproximar sem ser ouvido. Então arremessou sua adaga: bem no alvo. Ela penetrou mortalmente abaixo da orelha do arqueiro ciclope. Correu até o corpo e se apoderou das flechas do inimigo derrotado. Logo uma delas zuniu veloz e despediu de seu arco fazendo um ciclope berrar. Outra foi rapidamente preparada e encerrou o trabalho da primeira.
– Eles têm um arqueiro! – gritou um ciclope na língua de seu povo. – Derrubou Gallesk e está bem atrás de Asterr!
– Temos? – berrou um eladrin que entendeu apenas as primeiras palavras.
Um instante depois uma flecha robusta voou e rasgou o ar ligeiramente bem à frente do nariz de Haladar. Ele notou a localização do atirador e, rápido como o vento, revidou com um ataque preciso que o atingiu exatamente onde se inicia o pescoço: um tiro simplesmente letal. Voltou-se para o acampamento, agora bem próximo, e viu que a batalha terminara. Nesse ínterim, um ciclope fora poupado.
Aparentemente apenas um dos eladrin havia sofrido um ferimento mais danoso, causado por uma flecha que ele rapidamente quebrou a haste larga. O pequenino, que de fato não era criança, havia recebido dois golpes de raspão que não conseguiu aparar com sua espada. O outro eladrin, que brandia duas espadas levemente curvadas, parecia ileso, mesmo tendo se engajado com três oponentes.
– Hei, elfo – disse o eladrin ferido, a mão em volta do ferimento no abdome. – Você salvou a minha vida, sabia disso? Vem cá, rapaz!
– Precisamos verificar a região – falou Haladar. – Pode haver mais deles.
– Isso seria o correto a fazer, mas não será necessário – disse o outro eladrin, que mantinha suas lâminas no pescoço do ciclope amedrontado em forma de “x”. – O grupo deles era de nove, eu já sabia disso. Também esperava o ataque, mas achei que seria um pouco mais tarde. Venha elfo, já devia tê-lo feito desde que seguiu Selles.
Haladar ficou tão surpreso quanto o tal Selles com aquelas palavras. Imaginou por um instante se o eladrin o havia percebido desde o começo ou deduzido aquilo. Um segundo depois, o jovem elfo sorriu timidamente balançando de leve a cabeça. Então retirou sua adaga do cadáver a seus pés e se dirigiu ao acampamento, limpando-a. Mal alcançara o grupo, Selles o cumprimentou à maneira de seu povo: batendo o punho no coração e em seguida levando a mão ao ombro do companheiro.
– Sou Selles. E você poderá comer todo o assado que quiser – disse às gargalhadas.
– Haladar, filho de Hildar, capitão de Neread – respondeu o jovem elfo imitando o cumprimento eladrin.
– Enro – chamou o outro eladrin –, amarre as mãos e pernas desse ciclope. Vamos limpar um pouco as coisas por aqui para terminarmos a refeição.