A Saga de Mestre Haladar - A Caçada - Parte II

Haladar seguiu despreocupado para o sul até o cair da noite. Ainda estava nos arredores de Neread, já fora dos limites da cidade dos eladrin, mas toda aquela região era protegida tanto por espada quanto por magia, e criaturas cruéis sempre se mantinham há quilômetros de distância mesmo do limiar da cidade. O dia seguinte seria um tanto mais arriscado, mas o jovem elfo estava mais ansioso do que preocupado: a caçada iria começar de fato.

Ele fez uma breve ronda nos arredores do ponto em que decidira passar a noite; tudo parecia calmo e despreocupante, apenas animais amigáveis fazendo-lhe companhia.

Valdran é uma floresta abundante e foi fácil para o elfo encontrar árvores frutíferas por perto para saciar a sua fome. Por ter se desviado do curso do riacho que nasce próximo à cidade, bebeu de seu odre de couro escuro; mas segundo seus cálculos deveria reencontrar o riacho no início da tarde do dia seguinte. Sentia-se confiante agora.

O clima é bom quase o ano todo em Valdran (exceto em invernos rigorosos), e, mesmo sendo dominada por árvores tão imensas, as chamadas zelliann, em vários pontos a floresta é penetrada pelos raios lunares e só fica totalmente escura durante a lúgubre semana da lua morta. Assim, quando a noite caiu pesada sobre a floresta, Haladar não precisou do fogo para se aquecer ou para enxergar, uma vez que possui a visão élfica privilegiada que vê perfeitamente mesmo com pouca luz. Sempre apreciou o fogo e suas cores dançantes, mas aprendeu a não invocá-lo sem motivo, mesmo estando em lugar aparentemente tão seguro. Adormeceu na relva ali mesmo, sobre folhas escurecidas pela noite e sob galhos longos de um carvalho ancião.

No dia seguinte continuou rumo ao sul; antes mesmo de os feixes grossos da luz pálida mas persistente do sol perfurarem e invadirem a floresta através das copas altas e abundantes. Logo as árvores começaram a ficar mais próximas umas das outras, o que indicava que Haladar estava saindo dos limites protegidos pelo clã adearinn. No entanto o jovem elfo sentia-se à vontade e caminhava com rapidez e leveza, ao tempo que examinava o solo e os caminhos recentes deixados por animais de grande porte – era exatamente um desses que caçava.

O arco de treino que levava às costas era simples à mera visão, mas muito forte, longo e potente: feito-lhe especialmente pelo seu Mestre. Na aljava, apenas uma flecha guarnecida de pluma verde balançava de um lado para o outro quando o jovem elfo aumentava a velocidade ou vencia alguns obstáculos naturais da floresta. O odre pendia do ombro até a cintura por uma correia fina de couro, quase vazio, ao lado de um punhal preso ao cinto. A roupa, leve e justa, camuflava-se ao verde das folhas ou da grama, mesmo com aqueles detalhes singelos em couro; a capa, presa por um broche dourado com o formato de uma asa, e os braceletes em forma de folhas, dar-lhe-iam um ar de viajante calejado não fosse sua expressão de inexperiência.

Próximo do meio-dia Haladar reencontrou o riacho pelo barulho da água em movimento, reabasteceu o odre e continuou. Alimentou-se de frutas e folhas enquanto andava, mas durante todo o dia não encontrou nem vestígios de sua caça. Parou no fim da tarde. Foi examinar o local onde estava, mas conteve os passos de repente, agachando-se e ficando de prontidão. Os ouvidos élficos nunca enganam seus donos, dizem por aí. Haladar pegou o arco e se preparou, identificando em seguida a direção exata do ruído no meio do mato. Então veio um grunhido, curto, mas alto e estridente. “Um javali da floresta” pensou. “Deve estar em fuga!”

Ele deu apenas um ou dois passos devagar naquela direção, mas parou novamente ao ouvir um fraco baque maciço seguido de outro grunhido do animal, agora mais longo e enfraquecendo a cada segundo. Escondeu-se nas árvores e perscrutou com olhos atentos, mas não viu sinal do animal ou de seu caçador. Decidiu se arriscar um pouco mais e avançou o mais silenciosamente que podia – suas botas élficas leves serviam muito bem para isso. Tão breve respirou, surgiram mais ruídos vindos dos arbustos que se moveram à frente, mas quando o jovem elfo alcançou o local o animal abatido já tinha sido arrastado para a imensidão de Valdran, o rastro visível convidando-o a saciar a sua curiosidade.

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Enro possui uma memória incrível, mas sempre foi péssimo para acender uma fogueira. Dizem que justamente a sua memória salvou-lhe a vida inúmeras vezes, mas que se um dia viesse a depender de suas próprias habilidades para fazer fogo, então seria o seu fim. Estava no coração da floresta Valdran, num espaço onde árvores haviam sido derrubadas (não por ele, mas por criaturas bem maiores); e suas memórias agora lhe ajudavam muito pouco.

Juntou tudo o que achava que poderia incendiar – se tivesse um pouco de sorte – e amontoou no circulo irregular de pedras; umas do tamanho de sua cabeça, outras maiores. Não havia vento algum na floresta naquele instante, o que era um bom sinal, mas Enro era mesmo desajeitado com a velha pederneira.

– Não é esse o meu instrumento de domínio – resmungou. – E nem é esse o meu trabalho. Gostaria de ser um mago, para incendiar tudo isso com apenas um movimento.

– E matar a minha floresta?

Ele ouviu, mas não sabia de onde a voz surgira. Olhou em volta, da grama aos galhos mais altos que sua visão alcançava. Ninguém. Julgava que não havia motivo para se alarmar, contudo não pôde evitar seu coração de acelerar.

– Quem está aí? – arriscou com sua voz mais firme, tirando os joelhos do chão, os olhos crescendo no rosto pequeno. – Revele-se se for do povo da floresta.

Então ouviu algo à sua esquerda, quiçá o farfalhar de folhas, virou-se e viu um pequeno galho baixo em movimento. Em seguida um bando pássaros revoou abandonando os braços enrugados mais altos de outra árvore próxima, em alvoroço. Enro olhou fixamente. Parecia haver algo ali, na árvore junto às folhas.

– Sim. Eu sou! – a voz veio da árvore. – Mas não você, que mal consegue acender uma fogueira e, se me permite dizer, se assusta com facilidade. A propósito, é de mau agouro utilizar a palavra “incendiar” numa floresta.

– Felgahr!

Enro suspirou baixo. Aquela voz, tal como o modo de falar, não deixava dúvidas. Era de fato Felgahr, o eladrin do clã laronfill; Felgahr, o ranger errante, o purificador das matas. Era Felgahr, lâminas-gêmeas.

O eladrin mal podia ser visto em meio ao verde das folhas, era como se suas vestes o mesclasse à natureza. Enro continuou a fitar o ponto em que achava que ele estava, mas um segundo depois imaginou tê-lo perdido de vista.

– Sou Felgahr, do povo da floresta – Enro ouviu e pulou de susto, deixando cair o instrumento que segurava. O eladrin estava a não mais que três passos atrás dele.

– Vocês eladrin e seus truques. Quase me matou de susto agora. Acha isso engraçado?

– Você é o pequenino mais assustado que já vi – riu Felgahr. – E isso jamais foi um truque: é uma virtude, uma virtude que meu povo deve manter até o fim dos tempos.

O halfling deu de ombros.

– Cuide do fogo – disse ele. – Vou preparar minha tenda e fazer algumas anotações. Acha que nosso jantar demora a chegar?

– Hum... Difícil arriscar um palpite quando se trata dele. É negligente e imaturo. E olhe: já está escurecendo.

Para o pequenino já estava escuro há tempos, ao menos escuro demais para uma floresta daquela dimensão – não era a sua paisagem predileta. Enquanto ele mexia em mochilas e outros equipamentos de viagens largados no chão, a fogueira ganhava vida, tingindo tudo ao seu redor com seu vermelho intenso e perfumando o ar com um aroma suave e doce (a madeira que queimava era de uma folha-turva-vermelha, famosa por proporcionar essas e outras peculiaridades às fogueiras em todo o mundo).

– Muito bem, muito bem. Agora só precisamos do jantar!

Jack Fernandez
Enviado por Jack Fernandez em 25/02/2009
Código do texto: T1456037
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