PEDRO, A PEDRA E MADALENA

Quem é Pedro? Pedro vem de pedra. E pedra vem de quê? Tudo depende de que Pedro estou falando e de que natureza mineral vem a pedra.

Engraçado lidar com as palavras, mas não tem nada de engraçado em Pedro. Ele é um sujeito sério e tem sérios problemas: sua vida é uma pedra no sapato.

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Mas todos os dias a pedra de Pedro é diferente... é assim:

Em cada manhâ, quando calça os sapatos, invariavelmente e alternadamente os mesmos dois pares, já a cambar para o velho, Pedro a sente. Intrusa, amanhecida, como o pão que engoliu à pressa com o café. Sabe-lhe a presença, só não sabe a sua visceral natureza. Sabe-lhe o incómodo, mas ela é residente, insacudível...

E ele releva, molda o pé o melhor que pode, e espera o dia, enfrentando-o, caminhando.

Às vezes a pedra é granito. Tortura-o, fere-lhe a alma, percorre-lhe o corpo, em agulhetas de dor.

Outras, quando o seu passo encontra estradas rasas, a sua pedra é pó-de-talco... e o bálsamo concedido permite a Pedro, pobre homem, de perros sonhos, sonhar até a fragrância das flores que pisa...

Mas da montanha ao vale vão muitas estradas... nessa América "oásis" do Sul...

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É mesmo uma pena que, para Pedro, a América do Sul ande sempre triste, e com todo esse sol e essa abundância de flores pela estrada! Mas Pedro só vê a pedra. Que pedra é essa? Granito? Pó-de-talco? Desconfio.

Sei lá, volta e meia me ponho a imaginar qual seria a natureza dessa pedra... seria ela os olhos de Madalena, a falta que ela faz ou que poderia fazer? Parece que há pedras de muitas naturezas... mas é sempre pedra, ainda que seja de carne e osso e esteja sujeita a ter saudades e ter que engraxar os sapatos para ir trabalhar.

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Os olhos de Madalena... Essa noite sonhou com eles, mas não pode precisar se estavam a rir, cheios de amor e esperança, ou se encobertos por cílios de rejeição e amargura. Engraxou os sapatos febrilmente, como se tentasse rever, no reflexo do brilho, a cor da emoção do olhar amado, no seu sonho...

E lá fora as flores, a lembrar estradas em Primavera, aromas de fruta madura, a lembrar manás da América do Sul. E, dentro do seu sapato, a pedra, ora meiga, ora cruel, a lembrar-lhe os olhos de Madalena...

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Não fosse a inconstância de Pedro (e da sua pedra), quem poderia adivinhar-lhe os pensamentos, que não são cria da velha e sábia Europa? Madalena, por acaso? Pedro sabe que a Madalena do norte não é a mesma Madalena do sul, que para cada ponto cardeal existe uma Madalena. E, assim, novas Madalenas vão surgindo: uma que olha Pedro com desdém, outra que faz versos lindos... algumas trazem inverno, outras, verão, e mais outras que não fazem a menor diferença. Não há como retirar a pedra do sapato. Impossível! Seria como acabar com as estações do ano. O tempo é a grande pedra.

Apesar de tudo, Pedro andou pensando no significado da vida. Em breve irá se aposentar... o que fazer? Ler? Fazer versos? Sonhar seios em estado de lua? Não seria melhor fazer um trabalho voluntário numa casa de caridade? O país de Pedro é pobre, há pessoas necessitando de ajuda... quem sabe isso o fizesse a esquecer a sua pedra e a tornar-se mais humano?

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A velha e sábia Europa não lhe dá as respostas... Ela pode ser do tempo em que o Mundo era só ela e só dela, mas tem ainda uma criança que não cresceu, dentro de si. Que não sabe nada, nem cuidar da sua própria Vida como deve ser, quanto mais dar conselhos a um Pedro perdido, lá longe, na América do Sul!

E o vento norte a trazer-lhe os olhos de Madalena! E a pedra, ora agreste e facetada em talhe cortante, ora meiga e desfeita em carícias perfumadas! Pobre Pedro!

Talvez; talvez, sim, ele encontre a planura dos olhos de Madalena, lavados por lágrimas de arrependimento e contrição, no olhos de quem precisa dele, ali, na América do Sol... e de flores, e de frutas exóticas e de ave raras, e de... miséria, que ele quer aplacar...

Quando o tempo for dele e a pedra desistir de o torturar...

(texto escrito por duas mãos, intercaladamente, à deriva, sem programa ou rota previamente definida)