O guarda-chuva vermelho

A primeira casa dele foi a capa de um livro. Um dia, sem explicação alguma, foi pintado numa capa branca e morava nas mãos da contadora daquela história; sem muita opção, seguiu a vida que pôde diante da morte, sua proprietária.

Quando Dona Morte, já cansada do trabalho e encantada por uma menina, decidiu largá-lo em uma estante qualquer e usar apenas a capa de chuva negra, o guarda-chuva vermelho de cabo comprido mutou e moveu-se.

Transformado em cédulas vermelhas, foi parar na carteira creme de uma mulher. Durou pouco ali, ela era consumista, em um dia de chuva, nem tão forte, entrou na primeira loja avistada, comprou um enorme e lindo guarda-chuva vermelho; assim, a alma das cédulas saltaram para aquele emaranhado de arames e tecidos, já tão familiar e amado.

Aquele enorme objeto de cabo longo virou um adereço ao visual, muito mais que um protetor dos pingos.

A mulher andando de lá para cá e ele apenas aproveitando os constantes passeios. Todos o viam e ele via a todos. O desfilar, aberto ou fechado, era sempre notado. Nos coletivos, os cutucões eram impossíveis de evitar. A mulher pedia desculpas, ele por sua vez, ria sem parar, pois adorava manter contato com gente nova, ainda que fossem, invariavelmente, mal humoradas.

Se tivesse pernas, ele poderia até mesmo passear por algumas cidades próximas e voltar, pois em poucos meses conheceu algumas, sempre levado por sua dona, essa, nada morta.

Quando chegou o final do ano, ele sentiu um aperto forte e não era das conhecidas mãos, era medo de ser trocado por algo novo que pudesse chegar, diante de tantas compras, por que não um preto, um azul ou um lilás? Nada disso, ele continuou amigo, companheiro em diversos shoppings, casas de parentes e botequins.

Conhecia a todos pelo nome, podia até mesmo falar sobre a personalidade de alguns, contar detalhes das aventuras amorosas de uma, das viagens gastronômicas de outro, daquele apaixonado por gatos então... Poderia até falar....

Três dias antes da grande ceia de natal, seria a primeira de sua vida fora da capa do livro, a ansiedade para que chegasse era enorme, mas ainda faltava um pouco. Seguiram para uma reunião de amigos. Muitas sacolas, muitos presentes, um bar com cheiro bom e risadas aos montes. Houve troca de presente, ele não aguentou e começou a pingar lágrimas, ali mesmo na mesa do bar, ninguém notou, mas ele se emocionou e chorou quase a noite toda, também queria um presente. Queria ser entendido.

Ao final da noite, ele ficou surpreso, pela primeira vez sentiu outras mãos tocá-lo; assustado, olhou para os lados e viu sua dona subindo em uma moto e ele sendo levado para um carro. Conhecer as pessoas ele conhecia, sabia que eram boas, mas teve medo de ficar naquele carro e passar a primeira ceia de natal em um porta-malas escuro. Mais pingos.

Por dois dias foi deixado no carro, sem sequer ser lembrado. Passou todo o dia 24 pensando em chuva, em temporal, em água caindo a cântaros e quase na hora da ceia, CHUVA.

Ouvia passos de gente correndo por todos os lados e ele ali, no banco de trás, virou uma peça disputada entre duas pessoas. Seguiu com os pudins. Ouviu risadas que atravessaram a madrugada, não ficou atrás da porta e conheceu muita gente, até com crianças pôde brincar na chuva.

Voltou para o carro e lá poderia ficar por tempos sem fim, mas não, NADA DISSO, após três dias foi para uma cidade bem mais distante. Desta vez, ele estava no porta-malas apertado como jamais esteve, não via uma luz sequer e sentia o peso das malas sobre seu cabo; pensou em dormir, mas as risadas vindas da parte de dentro do carro o impediam de fazê-lo. Já desconsolado, ouviu uma cantoria bem baixinha, era música de ninar e estava vindo de perto, enxergar não era possível, foi então que se perguntou:

― De onde vem essa música?

E para sua surpresa ouviu uma resposta:

― Nem adianta reclamar, eu não paro de cantar até chegar.

― O QUÊ?

― Vou cantando até Penápolis e chegando lá continuarei.

― Você fala?

― Igualzinho a você.

― E você me entende?

― Não, não, eu sou apenas sua consciência. É CLARO QUE ENTENDO.

Achando que estava delirando, fez as cinco horas de viagem um tempo para conhecer a sua consciência. Achou ela meio cheia de mulherzisse, enjoadinha, diferente dele.

Chegaram.

Mala por mala foi sendo retirada, o peso sendo aliviado e quando tudo terminou e antes que ficasse escuro novamente, ele pôde ver uma linda sombrinha amarela ao seu lado.

O guarda-chuva vermelho e a sobrinha amarela fizeram um lindo casal em dias de chuva de uma cidade do interior. Voltaram para São Paulo, coladinhos no porta-malas.