Tempestade
DANIELA ERA ESPECIAL. NÃO QUE tivesse um braço a menos ou qualquer tipo de deformação, não era isso. A circunstância que a fazia especial era a de poder ver além das coisas que as pessoas comuns podiam. Era isso que fazia dela um oráculo.
Os oráculos eram raros e admirados pelo povo, e os Grandes Sacerdotes eram os únicos que podiam dizer ou não se a pessoa possuía a dádiva da clarividência. O teste era feito antes da criança completar um ano de idade, e, por isso, alguns Sacerdotes viviam como nômades, coletando informações sobre mulheres com filhos recém-nascidos.
Ter um oráculo na família era sinal de sorte e graça divina. Quando os pais de Daniela descobriram que a filha era uma abençoada, a festa foi tremenda. Logo, parentes e desconhecidos apareciam na casa da família, com a esperança de poderem ver a pequena criança. De um momento para o outro Daniela virou o tópico principal das conversas do povo. E, de certo modo, os pais – antes simples verdureiros – sentiam-se importantes. O destino da menina lhes rendera uma gigantesca ascensão social.
No entanto, nem tudo eram alegrias. Assim que descobertos, os oráculos eram levados pelos Sacerdotes até o templo, onde tinham seus olhos queimados pelo fogo divino – uma chama acesa há cerca de dois mil anos e que nunca se apagara. Segundo os Sacerdotes, os olhos humanos eram dispensáveis aos oráculos, que tinham o poder de utilizar os olhos da alma. Os gritos de Daniela enquanto as brasas incandescentes chilreavam em suas pálpebras eram torturantes, mas tanto o pai quanto a mãe sabiam que era para um bem maior.
Finalizado o ritual, a criança era levada por um Sacerdote até a academia, onde, em união com outros oráculos, aprenderia todos os segredos e técnicas da arte. Ficaria trancafiada, interagindo apenas com Sacerdotes ou outros oráculos, até completar vinte anos de idade, quando os ensinamentos estariam concluídos e ela estaria pronta para se reintegrar à sociedade.
- TUDO O QUE VOCÊS DEVEM saber está dentro de vocês! – gritava o Sacerdote. As grossas gotas de chuva caíam generosamente, descendo pela cabeça pelada do homem e molhando sua túnica branca. – Vocês são melhores que os homens normais! Vocês foram escolhidos para guiar os homens normais pelos caminhos obscuros, claros como o dia para vocês.
Daniela estava sentada no chão, as pernas cruzadas, completamente nua. Uma venda branca tapava-lhe as cicatrizes horripilantes dos olhos. A sua volta, outras vinte e nove crianças encontravam-se em mesma situação, sentindo a água gelada se enfiar em suas intimidades e lhes causar um frio tremendo.
Daniela tinha seis anos, e ainda não fora acometida por nenhuma visão. Mas, quando um Sacerdote lhe perguntava, ela sempre inventava alguma coisa. Todos diziam ter visões, e ela seria ridicularizada se não mentisse.
- Me façam ter uma visão, me façam ter uma visão... – ela sussurrava para si mesma, dando pouca atenção às palavras do Sacerdote. Tudo o que queria era sair dali o mais rápido possível, se secar e poder descansar.
Naquele dia, o ódio de Daniela pela chuva começou a se manifestar.
SENTIA MÃOS EM SEU CORPO, alisando-a sem pudores, enquanto a chuva caía do lado de fora do quarto. A princípio, pensou que fosse mais um daqueles sonhos que lhe proporcionava tanto prazer: uma mistura de sensações e sentimentos completamente inexplicáveis. Daniela chegou a sorrir de prazer.
- Isso, minha putinha! – ela ouviu alguém sussurrar.
Sentiu-se acordada, e percebeu que as mãos ainda estavam ali. Sobressaltou-se, tentando puxar as pernas para si, com medo do que pudesse ser aquilo. Reconhecia a voz do Sacerdote, mas não sabia o que ele estava fazendo ali, na hora em que todos deveriam estar dormindo.
- O que aconteceu? – ele perguntou. – Estávamos indo tão bem!
O instinto de Daniela dizia que estava em perigo, e, ato reflexo, encheu os pulmões e preparou-se para gritar. No entanto, antes que o fizesse, sentiu uma lâmina fria em seu pescoço.
- Esse grito será a última coisa que sairá dessa garganta linda. – ele sussurrou. – Agora se cale e abra as pernas.
Ela obedeceu, aterrorizada. Enquanto o homem fazia investidas cada vez mais fortes, Daniela sentiu que iria desfalecer ali mesmo. Mas manteve-se firme até que o homem se sentisse satisfeito.
Daniela tinha doze anos, e odiava ainda mais a chuva que caía do outro lado da janela. Ela era a culpada de todas as desgraças.
- VOCÊ REALMENTE ME AMA, NÃO é? – ela perguntou, alisando os cabelos lisos de Desmond.
Estavam apenas os dois ali, escondidos dos Sacerdotes e dos outros oráculos. Daniela tinha dezesseis anos.
- Se isso o que sinto aqui dentro se chama isso, então sim. – ele respondeu, chegando mais perto dela e beijando-a cálida e longamente. – Tenho uma coisa para te contar. – ele disse.
- E o que é?
- Eu tive uma visão... uma visão nossa.
- Ah é? E o que você viu?
- Eu vi seu rosto, e ele era o mais lindo de todo o mundo. Nós estávamos sentados em tronos, respondendo às perguntas de camponeses, enquanto eles depositavam sacos e mais sacos de ouro aos nossos pés. Éramos ricos e nunca estivemos tão felizes.
Ela sorriu.
- Você acha que vai se concretizar?
- E por que não? Eu vi, não vi?
Nunca uma mentira foi tão convincente quanto aquela. Tudo para deixar Daniela feliz e esperançosa de sair daquele lugar. Desmond não aguentava mais ouvir os choros dela pelos corredores. Precisava dar um motivo para que ela sorrisse novamente.
- Eu te amo, Desmond.
- Eu também te amo, Daniela.
Os pássaros cantavam e o sol estava quente naquele dia. Não havia nuvens nem sinal de chuva.
A CHUVA CAÍA EM GROSSAS gotas no céu, molhando a venda branca empapada de sangue. Estava com as costas no chão, enquanto a dor entorpecia-lhe o corpo. Um trovão ribombou no céu, fazendo o solo tremer.
- Desmond... – ouviu a voz de Daniela.
- Isso é o que acontece com quem quebra as regras! – ouviu um Sacerdote gritar. – A punição é a morte!
Daniela acordou de súbito, assustada. Tivera sua primeira visão. Estava no corpo de Desmond, entorpecida pela dor. A vida dele estava indo embora, havia sido assassinado por um Sacerdote.
O gosto da bile subiu-lhe a garganta, fazendo-a vomitar. Limpou a boca e também o chão o mais rápido que pode. A sensação de Desmond morrendo fazia-lhe mal.
Precisava fazer alguma coisa. A visão que ele tivera dos dois ricos e felizes precisava se concretizar.
Tinham que fugir o mais rápido possível daquele lugar horrível.
O DIA FINALMENTE HAVIA CHEGADO. Depois de duas semanas de espera e planos, os dois estavam prontos para fugir.
Daniela havia contado para Desmond sobre sua visão – sem, contudo, dizer que ele morria. Ela havia-lhe dito que precisavam ir embora, caso contrário um dos Sacerdotes iria lhe fazer muito mal.
No dia da fuga, uma tempestade memorável caía do céu. Daniela estremeceu, mas mesmo todo seu ódio e receio da chuva não a fez desistir. Sabia que, se não fugissem agora, nunca mais teriam coragem para fazê-lo.
Encontraram-se no pátio, muito depois do toque de recolher. Andavam lentamente, ouvindo todos os barulhos e certificando-se de que nenhum Sacerdote estava observando.
Seguiram apressados até o muro de pedra que circundava toda a academia. Sabiam exatamente aonde ir – passaram todo o tempo livre disponível das duas semanas tateando o muro e tentando achar o melhor lugar para escalarem. A parte para onde estavam indo tinha reentrâncias grandes o suficiente para as mãos e os pés.
Desmond subiu primeiro, e Daniel foi logo atrás.
- Ei! – ela ouviu um Sacerdote gritar, assim que Desmond deslizava para o lado de fora e ela estava em cima do muro. – O que estão fazendo aí! Desçam já!
- Rápido, Desmond, corra! – ela gritava, pouco se importando com sua própria segurança. Só queria que Desmond ficasse vivo e que sua visão não se concretizasse. Ela ficaria bem.
Sentiu que mãos envolveram seu tornozelo e tentavam puxá-la. Sabia que o Sacerdote fora ágil o suficiente para subir até a metade do muro, e agora tentava derrubá-la. Ela chutou-o com toda força, mas, no momento em que o homem se desequilibrava e caía, a mão dele fechou-se com ainda mais força sobre o pé de Daniela. E ela, perdendo o equilíbrio, caiu na grama fofa. Com o impacto, o nariz sangrou, manchando sua venda branca.
A chuva caía em grossas gotas no céu, molhando a venda branca empapada de sangue. Estava com as costas no chão, enquanto a dor entorpecia-lhe o corpo. Um trovão ribombou no céu, fazendo o solo tremer.
- Desmond... – ela sussurrou.
Então era assim que terminava. A única visão de Daniela havia, de fato, se concretizado.
- Isso é o que acontece com quem quebra as regras! – ouviu um Sacerdote gritar. – A punição é a morte!
Sentiu os cabelos sendo puxados enquanto ele a arrastava pelo caminho lamacento. Mas não gritava de dor nem indignação, sequer tentava se debater e soltar-se das mãos daquele homem vil.
Sabia qual seria o seu destino, e estava em paz. Desmond estava bem. Estava livre.