O Príncipe Maldito III

O salão estava em silêncio, apesar de repleto de pessoas. Repleto não, lotado. Curiosos aproveitaram a pausa entre a parte anterior desta fantasiosa história e esta para entrar no salão deixando-o mais abarrotado de gente. Todos queriam presenciar a mesma coisa: ouvir a resposta - na verdade a pergunta - que o príncipe daria à pergunta - na verdade a resposta - fornecida pelo rei Leopoldo. Ninguém imaginava que iria sair boa coisa de um príncipe que não falava e que ainda por cima teve a audácia de dispensar o prazo concedido. O rei pensou que o príncipe não havia entendido direito - talvez fosse meio lento ou bobo, afinal, a maioria dos governantes é - e repetiu as condições do desafio: a mão da filha caçula, a formosa princesa Ágata, seria dada em troca da pergunta-resposta à resposta-pergunta do rei. O rei revelou a resposta, "terra”, e aguardava que o príncipe fornecesse a pergunta correta. O príncipe fez um gesto e o arauto respondeu em alta voz que ele entendera perfeitamente o desafio já no início e estava pronto para fornecer a resposta. A postura do príncipe era imponente e confiante. A princesa Ágata - cega de nascença mas capaz de ouvir pensamentos alheios sem precisar de autorização judicial - ouvia os pensamentos dos presentes descrevendo a postura imponente e confiante do príncipe. Mas não conseguia ouvir os pensamentos do príncipe. Não tinha idéia do que ele diria, pois a mente dele estava completamente muda, em um profundo estado de concentração que Ágata só vira antes (mentalmente, claro, porque ela era cega, lembra?) quando um monge tibetano passou pelo reino. E a princesa não gostava de ficar às cegas (não leve tudo ao pé da letra) quando o assunto era o seu próprio casamento.

O rei, diante daquela situação inusitada, autorizou que o visitante continuasse. Cada gesto do príncipe era observado meticulosamente por centenas de olhos, que geravam dezenas de pensamentos e chegavam até a princesa, que acompanhava a tudo mentalmente. O príncipe levantou va-ga-ro-sa-men-te a mão direita e a colocou em um bolso do lado esquerdo de seu colete dourado, ricamente adornado com pedras preciosas de diversas cores, e retirou um pequeno pergaminho azulado. Entregou ao arauto. Com uma voz grave e retumbante, preparada para ocasiões em que uma voz grave e retumbante se fazia necessária, o arauto ecoou pelo salão a resposta do príncipe.

“Ó grandioso rei Leopoldo,

Este servo que chega diante de ti passou muitos anos amaldiçoado por causa de um momento de insensatez juvenil. Mas a maldição também me trouxe benefícios: por não poder falar, aprendi a escutar. Assim, com o passar dos anos, tornei-me bom e sábio e, ao assumir o trono, era o homem mais bem quisto entre o meu povo. Como prosperavam a paz e riqueza em meu reino, resolvi empreender viagens em busca de aventuras e alguma solução para os males que me castigavam. Creio que é a sina de todo homem bom corrigir-se com o tempo e remediar os erros de outrora. Em minha jornada, cheguei as distantes terras do norte e, confrontando Ahkbar, o último dos gigantes, finalmente encontrei o que procurava. Depois, fui conduzido até este reino, com a solução ao enigma proposto por vossa majestade.

Porém, antes de fornecer a resposta, quero exaltar perante os presentes que somente um rei grandiosamente sábio - e um sábio reconhece outro quando o vê - poderia formular a pergunta que descobri ser a residente na mente do rei. Se eu não tivesse sido abençoado pelos deuses, nunca venceria o desafio. Mas, para provar a minha admiração por este sapientíssimo rei e o meu desejo sincero em desposar a bela princesa Ágata, revelo o sublime enigma proposto pelo rei Leopoldo, que é:

Dentre todas as mães

A mais maldita sou eu.

Pois vejo, ao meu ventre,

Retornarem mortos

Os filhos meus.

Quem sou?

A resposta a este enigma todos já sabem, o próprio rei a forneceu. Terra. Muitos a denominam a Grande Mãe. Outros ensinam que o primeiro de nossa raça foi moldado dela como um vaso de barro e que por isso os elementos alquímicos presentes em nosso corpo e no solo são os mesmos. Se assim for, o fim dos filhos da Mãe Terra, inexoravelmente será a sepultura, escavada nas profundezas de seu ventre.

Espalho aos quatro cantos do mundo e ponho fim ao desafio majestoso de um rei majestoso. Melhor e mais sábia pergunta a esta resposta não há, e seria um ultraje pensar que algo mais simples tenha sido formulado pela sapiência deste grande rei. Desafio a todos os presentes, e ausentes também, a mostrarem outro enigma mais inteligente que este formulado pelo rei Leopoldo. E convoco o próprio rei a assumir a autoria desta pérola do saber, que a partir de hoje entrará para os anais do conhecimento da humanidade.

São as palavras do príncipe Nadj, senhor do 3º Reino das Terras Orientais, que fica virando à direita no maior carvalho da estrada entre Babilônia e Damasco, logo após o 2º mas sem chegar no 4º Reino.”

O arauto se calou, enrolou o pergaminho e fez uma mesura. A corte foi tomada de grande assombro. Havia cochichos e acenos de cabeça. Nobres e não-tão-nobres se olhavam e diziam que realmente era uma boa pergunta. O rei parecia espantado. A princesa mais ainda. Ágata parecia totalmente confusa.

O príncipe havia errado o enigma, totalmente.

O que ele pensava em ganhar com isso, nem ela, capaz de ler pensamentos, sabia. Mas a perplexidade de Ágata aumentou quando o rei disse euforicamente a todos que sim, aquela era a solução correta do enigma. Ágata sabia que o rei estava mentindo. Mas além do pai, dela e do príncipe, ninguém mais saberia disso. O porquê do rei fazer aquilo foi fácil para Ágata descobrir: ele estava com medo da maldição que o príncipe revelou existir sobre o reino e sentiu receio em contradizer o príncipe, quando este revelou algo bem mais inteligente que aquilo que o rei pensara como enigma por anos. O rei percebeu o burburinho dos presentes e não queria passar por burro depois que o príncipe elogiou tanto a sua sabedoria.

Quando o rei Leopoldo anunciou que concedia com prazer a mão da filha ao nobre cavalheiro e que gostaria que a data do casamento fosse em breve, Ágata se levantou e pediu a palavra.

- O príncipe venceu o desafio, e eu respeito a decisão de meu pai em valorizar a verdade tanto quanto o meu matrimônio - disse, olhando diretamente para os pensamentos do pai - contudo, todos no reino conhecem a minha fama em discernir a verdade da mentira. Não que eu ponha em dúvida a resposta do príncipe, pois estaria assim duvidando de meu próprio pai, mas gostaria que ele me convencesse de como chegou até ela. Somente assim eu o aceitarei como marido e senhor. Por favor, conte-nos, conforme mencionou anteriormente, como foi o confronto com Ahkbar, o último gigante, e como daí resultou a resposta ao enigma. Mas aviso de antemão, caso eu perceba, mesmo que seja o mais leve toque de inverdade em seu relato, não haverá casamento. Prefiro ser conhecida como a solteirona da torre que casar com um mentiroso.

Agora, a comoção entre os presentes não era mais em forma de murmúrios. As pessoas falavam todas ao mesmo tempo, não entendendo a atitude da princesa, a quem julgavam feliz por finalmente estar desencalhando. O rei nada falou, apesar de contrariado, pois não queria dar a impressão de estar forçando-a a se casar, além de sentir um pouco de remorso por mentir sobre o enigma. Repentinamente, o barulho cessou. Ágata ouviu os pensamentos e não acreditou no que todos ali estavam vendo. O príncipe dera um enigmático sorriso e, colocando a mão esquerda no bolso direito do colete, retirou outro pequeno pergaminho, desta vez escarlate, e entregou ao arauto.

(Continua...)