Conto mágico

Havia uma vez uma princesa à que um malvado gigante tinha prisioneira numa cela na torre mais alta do seu castelo, vigiada por um ancião dragão que habitava, graças à interesseira generosidade do gigante, na lagoa que rodeava o castelo e que apenas podia ser galgada através duma ponte elevadiça, a qual somente bulia às ordens do gigante, quem, por outra banda, pouco precisava da tal ponte mercê à sua talha. A única companha da princesa era um pequeno mouro (na minha terra, chamamos mouros a uma raça de seres mágicos) que habitava um bosque encantado que havia a carão do castelo mais um espelho falador que o gigante rompera o dia que a sequestrara. O gigante não actuara invejoso da sua riqueza, não, que ele o era de seu, mas por causa da amizade que a coitada cultivava com os anões que trabalhavam nas minas do gigante, contribuindo por isso, segundo o cálculo do malvado, para a falência do seu negócio de venda de diamantes. O espelho só sabia queixar-se e a rapariga tinha abondo com os queixumes dela. O mouro vinha quando podia, que não era sempre, porque são duma raça que também precisa de trabalhar para sobreviver, pese embora os seus importantes poderes, que não são tal se não é em presença dos homens, como podemos calcular, entre pessoas com as mesmas qualidades, elas não surpreendem tanto.

Um dia, o mouro trouxe-lhe um presente. Uma rã bem feia, de textura peganhenta.

- Homem, José- disse a princesa -, pensava que éramos amigos e trazes-me este ser horrível.

- Cala-te, Marica, e deixa que che conte uma história. Hoje, ao sair do trabalho, topei-me com o lobo que comeu a avó de tua amiga. Acabavam-lhe de dar a alta no hospital, depois de seis meses. Estava contente e mesmo podia fazer troça da enorme cicatriz que as diferentes operações cirúrgicas ao que o submeteram lhe deixou no estômago. Já sabes a história do lenhador e poderás calcular como sofreu o coitado de meu amigo, o lobo.

- Bem o mereceu- interrompeu-o a princesa, de súbito.

- Desculpa - o mouro ainda demorou a reagir:, é que o lobo e mais eu somos bons amigos desde a nossa infância. Bom, como che dizia, estivemos a falar um bom naco. Afinal, confessou-me que, nos meses que se passara no hospital, elaborara um plano que não podia falhar para saquear a cova dos quarenta ladrões. Não sei se foi pelo tom com o que mo pediu ou porque o plano era mesmo tão bom, mas embarquei-me na aventura. Eu não acreditava que estes criminosos fossem tão imbecis para repetir a combinação da porta da sua cova. Mas o meu amigo acreditava mesmo. E levava razão. Assim que chegámos àquela cova, perguntei-lhe ao lobo de onde tirara a informação sobre os horários da quadrilha de Ali Babá, e ele contou-me que, no hospital, tivera várias semanas como companheiro de habitação um antigo membro da quadrilha que fora expulso por lhe roubar a moça a Ali Babá. Notavam-se-lhe no rosto as ânsias de vingança, e não foi difícil convencê-lo a me contar todos os detalhes. O coitado morreu durante a operação de cirurgia estética do pé direito à que tinha que ser submetido. Mas tu estás certo, perguntei, que che contou verdade. E sobretudo, estás certo que a quadrilha ainda mantém a mesma rotina. E o lobo respondeu-me que a certeza não a tinha, não a podia ter, mas que este homem morrera havia uma semana. Meio convencido, apoiei-me numa árvore e o lobo berrou: Abre-te, Sésamo. E Sésamo abriu-se. A rocha que cobria a entrada quitou-se do meio e nós dous entrámos na Câmara do Tesouro. O ouro, a prata, o incenso, a mirra, brilhava por toda aquela habitação, desde o chão até ao teito, passando pelas paredes. Montanhas de moedas, rios de prata, feixes de figuras. Passámos um bom naco a rir e a nadar entre o tesouro. O reparto do botim foi simples, porque eu surpreendi meu amigo com a minha petição. Ficaria com a lâmpada do génio, que Ali Babá lhe roubara a Aladino no decurso duma viagem às ilhas Cotovias no navio de Sinbad. Este lobo é um ateu praticante e por isso não acredita em génios ou espíritos, a contrário do que pensava sobre a capacidade de invenção dos quarenta ladrões. É claro que o que nós, os seres legendários e personagens de contos infantis, entendemos como espíritos é outra cousa distinta à que entendedes vós, os humanos, embora sejades também, como é o caso, personagens de contos, não sei se infantis. Bom, eu, pela minha banda, não apenas acredito, sempre a levar a contrária, como ainda sei que existem os génios das lâmpadas. Aquando novo, sendo ajudante da biblioteca da Universidade de Damasco, conheci a doutora Sherezade e tive a oportunidade de a acompanhar nalguma das suas excursões científicas para a elaboração da tese doutoral, isto foi antes que casasse, e vi, com estes olhos pequenos habituados a verem baixo a terra, milagres e prodígios, alguns dos quais ultrapassam a capacidade de imaginação de qualquer ser humano e mesmo criatura de fantasia que habita estes pagos. E se não me enganava, ainda lembrava os códigos que distinguem o tipo de lâmpada do génio conforme o número de desejos que um pode pedir. E aquela lâmpada era do tipo VIII, isto é, um podia pedir até oito desejos. Meu amigo, o lobo, antes de eu deixar a cova, ainda me quis compensar, um bocado retranqueiro, com esta rã, feia e nojenta, que vês nas minhas mãos. Nas minhas mãos?- perguntou e exclamou a um tempo, ao tempo que virava as mãos por forma a deixar a palma a apontar contra o chão. Deste jeito, foi a rã que caiu ao chão, mas nem se mexeu. O mouro pegou num dos papéis que a princesa utilizava para escrever as crónicas diárias que enviava ao jornal da freguesia e que lhe ajudavam a passar melhor o cativeiro, e limpou-se com ele.

- Merda- disse a princesa- Já acabara a minha crónica de hoje.

- Deixa-te de crónicas e atende. O lobo e mais eu despedimo-nos ao pé da lagoa de Valverde, que, como já de contei noutras ocasiões, estes meses está a sofrer os efeitos da seca, e por isso, é possível ver o campanário da igreja mais os telhados das casas da vila amaldiçoada por Nosso Senhor quando andava pela terra. Ele colheu a caminho do seu covil e eu sentei-me na ribeira, a contemplar o sol de meio-dia. Peguei na lâmpada, botei-lhe o bafo e pus-me a limpá-la com a manga da camisa. Depois de muito teimar, saiu um fumo mouro, que tomou a forma dum eunuco com bigode. Apresentámo-nos, falamos sobre o tempo, perguntou-me sobre o país e o mundo. Perguntei-lhe se realmente era um génio do tipo VIII. Respondeu-me que sim, infelizmente. Durante muito tempo, como bem devia saber, fora um génio do tipo III, mas o assunto do Aladino rebaixara-o de categoria. Manifestei-lhe a minha fingida solidariedade e permiti-lhe, a seu pedido, voltar para a lâmpada acabar de enviar uns correios electrónicos atrasados. Antes de se retirar, viu a rã, e afirmou-me que, ou muito se enganava, ou aquela rã agachava mas era um príncipe encantado dos que se desencantam com três bicos. O génio retirou-se e eu vim ter contigo. A lâmpada trago-a na bolsa e ela aí está bem guardada. Quanto à rã- e olhou com renovado nojo ao ser que repousava preguiceiro sobre o peitoril da janela, sorte que estava fechada -, podemos provar se é verdade o que me contou o génio. Se não é, sempre podemos cozinhá-la. - ao ouvir isto, o animal começou a saltitar contra o vidro da janela como a procurar fugir.

- Eu não vou beijar esse bicho nojento- afirmou, repetindo o aceno de nojo e a afastar dela a rã. O mouro pegou nela de vez.

- Não confias em mim, pois não? Terei que a beijar eu.

Mal a rã foi beijada, operou-se uma metamorfose acelerada. A rã medrou em tamanho, adoptou uma posição erguida, nasceu-lhe pêlo em diferentes partes do corpo, mudou de cor, de verde castanho a laranja pálido, os olhos diminuíram de tamanho, ganhou de novo as cordas vocais. Enfim, surgiu de novo o príncipe, com o seu traje de príncipe, a sua espada de príncipe e a sua olhada de lerchã conformista:

- Eu- começou a história, em resposta às perguntas dos seus estranhos companheiros de cela -, eu apenas me lembro de sair de farra com os amigos uma quinta-feira. No último bar onde estivera antes de perder a consciência, figurara-se-lhe um bocado esquisita a figura do camareiro, com aquela enorme ruga num nariz de boxeador e aquele sorriso sinistro e aquele sombreiro preto de asa longa rematada em ponta com estrelinhas debuxadas e aquele uniforme, também preto,... Mas apusera-o então aos efeitos dos cubatas. A partir daí, é tudo uma nuvem difusa até que acordou convertido numa rã em cas do camareiro, que, com efeito, era uma bruxa. Então já acordaste, meu príncipe, falou-me. Pois olha, eu sou uma antiga amante de teu pai. e como não me posso vingar dele, porque o seu poder ultrapassa o meu, vingo-me de ti. Quis-lhe repor que não acreditava que meu pai pudesse ter sido amante dela e que, ainda que assim fosse, eu não lhe tinha culpa. Mas duas razões mo desaconselharam. Uma, foi ver uma foto da bruxa aquando nova a carão de meu pai, também aquando novo, que havia pendurada na parede oposta ao meu lugar de repouso. Ela não tinha ruga nenhuma num nariz bem formado, que casava perfeitamente com um formoso rosto de belas proporções e uma doce olhada azul. A segunda razão foi que as rãs não sabem falar e por isso, o único que saiu da minha boca foi: Cro, Cro. Poupo-vos mais detalhes. A bruxa ceivou-me na lagoa de Valverde e disse-me que, quem me quiser desencantar, três bicos me teria de dar. E mais também, que teria de me casar com essa pessoa. Por isso- e olhou para o mouro com um gesto de desaprovação, correspondido por um semelhante composto pelo mouro -, quando é que será a cerimónia.

Apesar dos protestos do mouro, o príncipe teimou em que, embora lhe agradasse talvez ainda menos que ao mouro, as ordens da bruxa foram bem claras:

- Ouve-me bem- repetiu as palavras exactas dela. Tens que te me casar com a pessoa que che dê os três bicos de rigor.

Afinal, foi necessário que, valendo-se das suas artes, o mouro convertesse o príncipe de novo numa rã. Saiu-lhe um sapo, mas isto tanto tem. A princesa ainda hesitou uns segundos antes de beijar, o mais rápido que foi capaz, três vezes a pele cheia de buracos do anfíbio. Voltou o príncipe. A princesa calculara que se quadra o reino do sogro era mais poderoso e rico que o do pai, que governava um país habitado por poucos homens e muitas raças fantásticas que não pagavam impostos. O dragão ouviu as vozes e assomou o focinho pela janela para ver o que se passava. Quando viu o príncipe, bufou de cansaço, e lembrou-se do enfrentamento que tivera com São Jorge e como enganara aquele cavaleiro fazendo como que morrera. A princesa prometeu-lhe restaurar o seu nome e manchar o de São Jorge. Assim que o gigante assomou o focinho foi queimado pelo fogo do dragão que ficou como dono do castelo.

O príncipe mais a princesa logo se casaram, no próprio bosque mágico perto do castelo, numa cerimónia presidida pelo mago mais sábio de todo o reino, que chegara numa carroça alugada. O tesouro do gigante foi repartido entre todas as raças mágicas que habitavam o bosque mágico. Depois do casamento e do banquete, e das fotos mágicas, tiradas pelo espelho, de novo reabilitado, os noivos saíram de lua de mel numa bateeira da ria de Arousa. A bateeira afundou-se devido a uma forte tormenta e os noivos foram dar numa ilha deserta a maior parte do tempo. À noite, apareceu uma sereia metida numa concha de vieira, com uma longa cabeleira dourada lisa, suave, acolhedora mesmo a distância, uma olhada verde cúmplice, convidativa, galhofeira, no seio dum rosto branco pequeno de ângulos suavizados, um busto generoso, bem colocado, mas não excessivo, antes graciosamente fino, e uma nadadeira caudal de escamas simétricas e brilhantes que se mexia como a insinuar prazeres certos. O príncipe, que não ajudara nos trabalhos da princesa para sobreviverem, ficou a morar com a sereia, namorado dela. Por sua vez, um cavalo voador, enviado pela mulher do mouro, assim que chegaram ao bosque as novas do naufrágio, acudiu a salvar a princesa.

- Para me pagares o favor que che fiz, tens que recuperar um anel que o meu velho pai perdeu uma vez que foi ao mar (a fome que atravessavam os mouros obrigou-os a depender da pesca, que lhes aprenderam, em troca doutros favores, os marinheiros duma aldeia). Num momento de confusão, o homem usou o anel de casamento como anzol. Minha filha quer casar, e precisamos do anel de casamento. Tu, para além de seres a madrinha, terás que trazer de regresso o anel.

Mas estas são outras duas histórias.