Haram
O Sol forte do deserto iluminava as dunas que derramavam-se no horizonte, o céu estava terrivelmente claro, mas ele não via a paisagem, seus pensamentos estavam longe, nas encostas das montanhas, no interior do país. Em sua memória reverberava uma cena ; Um homem estendido no centro de uma sala, sangue vertendo de um ferimento em seu crânio, e ao lado uma pesada tranca de porta. Lembrou-se então do desatino do dia anterior.
Hazir era negociante de diamantes, e seu sócio era o francês Jean. que com seu forte temperamento dominava a relação entre os dois, e o tempo se encarregou de incrustar no espírito de Hazir o germe do ressentimento. Hazir era árabe, das tribos Tuaregs, os orgulhosos homens do deserto, sua índole era tolerante, mas que o cálice não transbordasse, pois o fel se derramaria como a lava de um vulcão. Nas suas viagens Hazir conhecera a bela Tamanra, comerciante de joias, cercada de pretendentes ansiosos. A força da paixão que atingiu Hazir explodiu como um foguete, mas o tipo de vida sofisticada da bela Tamanra exigia muito dinheiro, e Hazir não estava preparado para isso. Cada lote que negociava envolvia a inevitável divisão a dois, e a paixão louca que nutria por Tamanra, aliada à mágoa com que encarava o domínio colonial dos franceses na região, logo pariu seus frutos.
Hazir tornou-se obcecado, e com o tempo perdeu o senso de medida. buscava freneticamente o lucro rápido. Jean tinha os contatos com os compradores europeus, e isso o mantinha no comando, e Hazir começou a rebelar-se com a situação. Motivos e lamentações imiscuíram-se no seu cérebro enfermo e apaixonado, e então ocorreu a tragédia. Em uma acalorada discussão sobre partilha de lucros, Hazir, no seu desespero, atingiu Jean com a arma a seu alcance, uma tranca de porta, que naquele instante era para ele uma vingadora cimitarra árabe. Desnorteado com o que fizera, Haram fugiu para o deserto .
O Sol brilhava no ápice do verão e as montanhas ao sul ficavam cada vez mais distantes, enquanto o jipe avançava pela estreita trilha varrida pela fina areia amarela. Hazir olhou o velocímetro e percebeu que já havia percorrido uma centena de quilômetros. A próxima cidade estava ainda distante algumas centenas mais, e de lá ele pretendia ir até a capital e então voar para a Europa. Eram onze horas da manhã quando ele começou a sentir a presença imperiosa da sede. Sua mente trabalhou para lembrar-se da água, e ele teve um sobressalto, na sua precipitação esquecera-se de encher o reservatório de água potável, mas ainda tinha alguma esperança quando parou o veículo e foi verificar o que no fundo já sabia. O recipiente estava totalmente vazio. Ao lado do veículo ele olhou desconsolado para o horizonte, e de repente lembrou-se da Estação meteorológica.
No meio do deserto os antigos e inoperantes poços de petróleo haviam sido transformados em Estações Meteorológicas Automáticas, e ele lembrou-se de que estava próximo a um desses postos, onde sempre havia um pequeno oásis com água potável. Sentiu-se mais animado quando deu novamente a partida no seu velho jipe. Na monotonia da paisagem seus pensamentos voltaram-se para a religião, ele era muçulmano e conhecia as leis do Qu’ran, o livro sagrado dos crentes. As ações dos homens tinham suas conseqüências inevitáveis, conforme seu mérito, e na sua mente, a ação que praticara não seria um crime, mas uma ação justa, o Jaiz, alguma coisa como uma ação autorizada, e estava muito distante do Haram, a terrível punição divina a uma ação maldosa. "Não há Deus senão Alá, e Maomé é seu profeta", ele repetiu mentalmente. O jipe avançou na estrada irregular. O sol aumentava de intensidade e ele sentiu seu corpo clamar por água, lembrou-se dos camelos e de sua extraordinária capacidade para descobrir o precioso líquido. Quem dera ele poder contar com um desses animais, e não com um jipe, que como todas as máquinas não tem a capacidade de se adaptar aos ambientes.
O deserto assemelhava-se a uma praia interminável, a estrada fora construída através da planície que irrompia na continuidade das dunas, mas o vento agindo na fluidez dos grãos de areia modificava a cada instante a aparência do horizonte. De repente surgiu, trêmulo pelas ondas de calor, o perfil negro de uma torre de petróleo, e Hazir estremeceu de ansiedade. Era afinal a proximidade da água, e a esperança do alívio de sua sede. O ruído do motor, não podendo ecoar nos espaços abertos do deserto, retornava com um som estranho a seus ouvidos. Alguns minutos mais, e de repente, deslocada no ambiente, surgiu uma cerca de arame paralela a trilha, e mais à frente surgiu um enorme portão de metal, e Hazir acelerou, forçando a passagem. Nesse movimento ele não percebeu uma larga placa de metal que voou através do ar quente e aterrizou á frente do jipe. O veículo avançou e logo alcançou uma pequena casamata, ao lado da qual despontava o poço de água.
Ele parou o jipe e desceu, e em um décimo de segundo sentiu a falta de alguma coisa, mas logo sua mente ocupou-se com o prazer de ter a sede aplacada. Um balde de metal jazia ao lado do poço e uma velha roldana foi posta a funcionar. O ruído do metal chocando-se com o líquido soou como uma agradável melodia aos seus ouvidos, e o balde subiu oscilando. Sofregamente ele sorveu o precioso líquido. O galão de água foi cheio, e ainda com o rosto molhado, levou-o ao veículo, e então retomou o caminho,
A satisfação ainda ressoava no seu corpo quando ele começou a sentir uma crescente sensação de mal estar. Um estranho torpor invadiu seus membros e no céu o sol pareceu multiplicar-se, e a alguns metros da torre o jipe finalmente parou. Um pensamento inesperado surgiu como uma tempestade em seu cérebro, repentinamente soube exatamente do que dera falta logo que chegara ao poço. Em todos os poços do deserto havia sempre um pequeno oásis, mas não naquele. Uma suspeita mortal o atingiu , e enquanto tornava-se certeza um desvanecimento físico alcançou-o e ele desistiu de lutar. Viu ao longe, no horizonte, dois vultos que flutuavam em sua direção e distinguiu-os ao se aproximarem. Eram Tamanra e Jean, sorrindo convidativamente para ele. Hazir sorriu de volta, enquanto a escuridão invadia sua mente. O vento aumentou e a areia fina do deserto varreu rapidamente a face de uma placa de metal que agora se mostrava ao sol, a mesma placa que havia sido derrubada pelo jipe. Em letras vermelhas podia-se ler a terrível advertência; "CUIDADO - ÁGUA ENVENENADA". Nas profundezas de sua alma, Hazir podia ouvir uma palavra repetindo-se para sempre, Haram, Haram, Ainda deu tempo para ele finalmente compreender que o julgamento final alcançara-o, e então, com uma luminosa resignação sua consciência lenta e fatalmente evanesceu-se.
FIM