O Príncipe Maldito II

Ágata nasceu cega, nunca viu nada em sua vida além da escuridão.

Mas ao crescer, mostrou-se extremamente atenta às coisas ao seu redor. A sua atenção e percepção eram tamanhas, que chegavam assustar a sua mãe e as amas. Ah, Ágata era uma princesa, a filha caçula do rei Leopoldo. Era mais querida talvez por ser a mais cuidada, ou a mais cuidada por ser a mais querida. Suas duas irmãs não eram más para com ela, até porque costumavam compensar a inveja que tinham dos mimos dos pais para com Ágata fazendo coisas que ela não conseguia fazer. Ágata nunca brincara com as outras crianças. Nunca saiu para cavalgar. Nunca freqüentou as festas da corte. Nunca flertou com algum rapaz. As suas irmãs julgavam-se mais felizes do que ela, mas não percebiam que alguém que nunca conhecera certo prazer não poderia ficar triste por não desfrutá-lo. Ágata acostumou-se a viver no castelo tão bem que não precisava guia para os seus movimentos. Mas Ágata tinha um segredo e que só a sua mãe conhecia. A princesa cega, de tão atenta aos barulhos, movimentos e outras sensações que somente os cegos conseguiriam descrever, aperfeiçoou o ouvido com uma acurácia tão perfeita, que passou a perceber os menores ruídos cada vez mais nítidos. Às vezes, encostava-se à janela do castelo que dava para a feira e brincava de ouvir os sons lá embaixo. Aprendeu a sintonizar um em meio a milhares, e muitas vezes à distâncias em que uma pessoa normal julgaria impossível ouvir. De fato, o seu ouvido ficara tão sensível, que certo dia, a princesa Ágata passou a ouvir os pensamentos daqueles que a rodeavam. De início, assustou a sua mãe ao responder uma pergunta que esta não lhe fizera, apenas pensara. Assim, ambas descobriram a estranha habilidade que a princesa adquirira. A rainha, mãe de Ágata, julgava o dom da filha uma dádiva fornecida para compensar a cegueira, mas receosa de que os religiosos da corte julgassem mal a filha, fez ela prometer que não contaria a ninguém, nem mesmo ao rei, seu pai, sobre sua habilidade.

Um dia, porém, a estimada rainha faleceu. Em seu leito de morte, Ágata ainda ouviu o último pensamento da mãe, “a sua promessa continua após a minha morte, minha querida”. Ágata se agarrou a mão da mãe, chorando e dizendo que sim, que jamais quebraria a promessa, mas a mãe não ouvia mais nada, estava morta. Os que ouviram, o rei e as irmãs, não entenderam, mas a perdoaram, pois Ágata era muito apegada a rainha.

Depois do período de luto pela morte da rainha, o rei, desgostoso com a vida, jurou fazer de tudo para não se afastar de suas filhas, agora o seu único consolo e felicidade. Estabeleceu um teste dificílimo para os que queriam cortejar as princesas. O rei, ao ver o pretendente à sua frente, dava uma resposta, e ele tinha um dia e uma noite para retornar ao rei com a pergunta àquela resposta. É claro que ninguém acertava. Isso fez com que as irmãs de Ágata passassem a chorar e a reclamar muito na presença da irmã. Elas tinham planos de se casarem e terem filhos, mas com as condições impostas pelo rei, temiam virarem solteironas em alguma torre nos fundos do castelo. Ágata, comovida pela dor das irmãs, perguntou a elas: - Se eu souber a pergunta a resposta fornecida pelo rei, nosso pai, vocês conseguem informá-la aos vossos pretendentes? – Claro, responderam as irmãs, mas como você conseguirá tal façanha? – Não se preocupem com isso, mas preocupem-se em escolher a quem desejam como marido e me informem o nome, para que eu saiba qual a resposta que este deve dar ao nosso pai. Ágata mantinha assim a promessa à sua finada mãe, mas ao mesmo tempo ajudava as irmãs. Até porque, não era tão difícil descobrir que pergunta o velho rei fazia. Basicamente, ele vinha repetindo nos últimos meses as mesmas três perguntas, sem precisar formular outras, já que nenhum príncipe acertava.

Não preciso nem dizer que o plano funcionou perfeitamente, para a alegria das princesas e o espanto do rei, que atribuiu o acerto das charadas impossíveis de serem acertadas à Providência Divina. Aqueles só poderiam ser os maridos enviados por Deus para as suas filhas. E assim, casaram-se as irmãs mais velhas de Ágata, deixando-a como a única princesa solteira no castelo de seu pai. Apesar da sua limitação, Ágata era uma princesa inteligente, bela e formosa, e muitos cavalheiros chegavam até o rei para aceitar o desafio e desposá-la. Como havia uma pergunta na mente do rei, e Ágata não podia ver as feições dos seus pretendentes, ela preocupava-se em apenas escutar os pensamentos deles quando estavam na presença do rei para o desafio. Mas, ouvi-los desanimava ou assustava a princesa. Alguns chamavam o rei de bobo ou de louco, outros pensavam somente no dote, e ainda outros pensavam em fazer coisas vis e imorais com a princesa ou com o reino. Ela nunca iria desposar alguém com pensamentos egoístas ou impuros, mesmo com a aparência de príncipe. Para Ágata, mais do que para outra pessoa, o que havia íntimo era importante.

Um dia, foi solicitada uma audiência com um príncipe que viera de um reino distante, além das montanhas longínquas do horizonte. Ágata postou-se em seu lugar, um pouco abaixo do rei, não esperando daquele moço mais do que o de costume, quando entrou o cortejo do príncipe. Um arauto aproximou-se e disse em voz que eles vieram de um reino distante para pedir a mão da princesa e livrar os dois reinos de uma maldição lançada sobre eles. O rei e a princesa ficaram assustados, não sabiam de maldição alguma sobre eles. Foi então que o príncipe se aproximou. A princesa pode então ouvir os seus pensamentos mais nitidamente. Ele disse que fora amaldiçoado quando era jovem com duas maldições, mas que depois de algum tempo foi-lhe revelado como quebrá-las, assim como aquela que pairava sobre o rei Leopoldo e a princesa Ágata.

A maldição havia sido lançada por um bruxo que trabalhava naquele castelo antes do pai de Ágata tornar-se rei. O falecido pai do rei atual, o avô da princesa, havia expulsado os praticantes de magia negra do castelo, e o bruxo jurou que no dia em que todas as filhas de seu filho se casassem, os membros da linhagem real morreriam subitamente, no mesmo dia. Contudo, avisou que aquela maldição só poderia ser quebrada por alguém que fosse mais amaldiçoado que eles. E aquele príncipe tinha duas maldições. As palavras do bruxo perderam-se no tempo, mas se cumpririam assim que Ágata se casasse. Ágata ouviu tudo isso, mas foi somente ela, porque o príncipe nada falou. Ao invés disso, seu arauto revelou que o soberano não falava palavra alguma há quinze anos por causa de uma maldição, e que aprendera a ser um rei justo e bom desde então.

Ágata estava confusa, aquele homem era sincero em seus pensamentos, e revelava para ela uma maldição que somente ele poderia quebrar, ou então...

O rei, como de costume, embora receoso – e Ágata sabia – fingiu não estar interessado na maldição e disse ao visitante que a prova continuava sendo a mesma das outras filhas. O rei daria uma resposta, e o príncipe teria um dia e uma noite para pensar qual era a pergunta correta. O príncipe fez sinal para o seu arauto dizer que ele aceitava o desafio. A resposta dada pelo rei era “terra”. Os sentimentos de Ágata se agitavam em seu íntimo. Ela precisava pensar no que fazer. Se o estranho estivesse certo, ela teria, de algum jeito, de informar-lhe a pergunta que estava na cabeça de seu pai. Como fazer isso, já que ela era cega e o príncipe era mudo, Ágata não tinha a menor idéia.

(Continua...)