O Toque das Mãos
O Toque das Mãos
Era uma manhã bonita de sábado e eu estava com boa disposição. Os sábados são dias especiais, principalmente suas manhãs, é como se começasse uma nova vida, tudo sendo possível. Fazemos questão de esquecer a semana que daí a dois dias recomeça, a embrulhamos em uma caixa e a separamos com cuidado em um canto da memória para no domingo à noite, meio constrangidos a presentearmos ao nosso outro eu, àquele que dá brilho à lança para cavalgar a segunda feira. Naquele sábado o sol surgiu, após alguns dias nublados e eu podia escolher livremente dentre as alternativas viáveis. Eram aproximadamente dez horas quando tocaram a campainha, e sábado de manhã você pode acreditar, é ou Dionísio ou Pandora, e nesse caso era Pandora. "Precisava de um grande favor. Minha mãe não passou bem essa noite, não dormiu um minuto, acho que é sua coluna, de vez em quando ela tem essa crise, será que o senhor pode nos dar uma carona até o pronto socorro, acho que é rápido lá.” Era a nossa vizinha, uma simpática chinesa que já estava no bairro quando lá cheguei, morava ela, o irmão e a mãe na casa. O pai falecera já algum tempo, e os filhos eu só os via fim de semana. O irmão de Lan (esse era o nome da moça), viajara para o litoral no dia anterior. Como recusar um pedido destes, o carro estava estacionado na entrada da casa, eu, acredito aparentando estar saudável, e afinal eles eram bons vizinhos, tranqüilos, se bem que um tanto metódicos pro meu gosto, mas já me acostumara com suas maneiras rápidas e reticentes.
"Não tem problema Lan", respondi automático, já enumerando na mente as providências práticas a enfrentar. A senhora já estava à porta quando manobrei o carro para sairmos, de compleição franzina, não muito baixa, faces macilentas, mas com uma aparência surpreendentemente agradável, cabelos bem curtos, com ainda resquícios de uma beleza oriental. Sempre a vira ativa, andando rápida pela rua, mas naquela manhã ela estava estranhamente encurvada quando surgiu ao portão, sorrindo. Lan havia adentrado à casa e não demorou muito, saiu para nos encontrar. De físico diferente da mãe, mais encorpada e mais alta, o rosto bonito e expressivo. O Pronto-socorro era próximo, não demoramos a chegar, e no trajeto, enquanto Lan abraçava a mãe com cuidado, aquela não se cansava de me agradecer; “Muito obrigado, muito obrigado”, naquele jeito típico dos orientais. Já no carro eu a olhava pelo retrovisor e subitamente a vi mais morena, com um olhar distante que atravessava o vidro da janela, com repentes de um meu conhecido e amado sorriso, e então ela não era mais a mãe de Lan, era a minha própria, que já não havia mais, e eu teimava em descobrir em cada nuance do sorriso da chinesa, traços daquele outro saudoso, enquanto um resquício de líquido pedia passagem através dos meus olhos.
Ao chegarmos ao prédio, supus que houvesse alguma demora, pela quantidade de pessoas na sala, mas o tempo calculado reduziu-se a um terço, e eu imaginava como pode em um sábado pleno de sol haver alguém ou tanta gente assim necessitando de cuidados médicos, e refleti sobre o montante de infortúnio reunido em um só lugar, como uma nuvem cinza de inverno pairando em um campo ensolarado de verão. Mas as nuvens se movem sempre, e eu torcia para que aquela em especial que sobrevoava as chinesas, movesse-se breve para longe, empurrada por qualquer vento de boa sorte. Eu acredito em pensamento positivo, mas eu mesmo não fazia muita justiça à sua existência, não sabia, como descobri depois, que é preciso não somente pensar positivo, mas principalmente sentir positivamente, e saber sobrepor esse poderoso sentimento às nossas próprias circunstancias, por mais atribuladas que possam ser. No meu caso me justifico todos os dias pelo tempo que perdi, afirmando a mim mesmo como um consolo forçado, que esse era o destino. Logo após as formalidades do atendimento, Lan, sempre amparando sua mãe, com uma competência surpreendente, transitou pelos meandros da burocracia do hospital, e logo as duas estavam à espera da sua vez, confortavelmente sentadas em uma comprida longarina estofada. Eu não tinha muito que fazer ali, então voltei ao carro e liguei o rádio, um pouco de música deveria servir para desanuviar meus pensamentos, mas a paisagem era deprimente, com toda aquela gente, salvo raras exceções, movendo-se silenciosas e concentradas em si mesmas, então voltei ao salão.
Olhei em direção ao lugar em que havia deixado as chinesas e percebi que havia agora um estranho conversando com elas. Era um homem aparentando cinqüenta anos, baixo, de compleição física forte, poucos cabelos negros emoldurando uma face redonda e calma, vestido com um blazer simples e batido, transmitindo modéstia e serenidade. Pareciam conversar, isto é, ele parecia falar, enquanto as chinesas escutavam atentas, mas eu não distinguia suas palavras. Lan, para minha surpresa, que sempre a vira esquiva com estranhos, olhava sorridente para o homem, que aparentemente dirigia a sua atenção para a mãe. A alma humana é insondável, e da escuridão inata da vida, de lugares obscuros e terríveis do nosso cérebro, surgiram aqueles pensamentos soturnos que em certas ocasiões nossa inconsciência destila como um fel inevitável. Dentre as hipóteses eu imaginei a pior.
Apesar da figura do homem transmitir tranqüilidade, meu cérebro saturado por imagens subliminares, imputava ao estranho suspeitas intenções. Mas lentamente essa impressão derreteu-se e a expressão da chinesa com certeza ajudou nessa mudança. Lan olhava para o local da chamada, esperando sua vez, mas a empatia que se processava entre sua mãe e o estranho era perceptível até para mim, à distância, como uma onda magnética propagando-se no ambiente. Repentinamente, como se houvesse algum acordo tácito e desconhecido para mim, a chinesa e o estranho levantaram-se. Lan ainda permanecia sentada, quando sorridente e curiosa olhou para os dois. O homem era da mesma estatura da chinesa, e naquele ponto da longarina, ainda afastados da pessoa mais próxima, junto á janela que dava para o pátio ocorreu o milagre. Dirá você, que milagre? O homem era algum santo? Não sei, e até hoje não consigo esclarecer para mim mesmo o que ocorreu. Enquanto a chinesa, em uma atitude totalmente inesperada para mim, semicerrava seus olhos e apoiava-se à parede, o estranho aproximou-se, e com uma segurança inusitada,, impôs suas duas mãos nas costas da mulher, na altura da coluna espinhal. Eu estanquei. O que estava ocorrendo, ali, deveria eu intervir? A chinesa então apoiou as duas mãos na parede, encurvou um pouco o corpo, enquanto as mãos do estranho continuavam naquela posição com as palmas para cima. Percebi que o homem semicerrava os olhos naquela atitude, e assim ficaram algum tempo. Meu corpo permaneceu no mesmo lugar obedecendo à minha própria hesitação, enquanto passavam-se minutos, horas, a eternidade fluindo naquele salão, meus olhos não viam mais ninguém, eram vultos desfocados emoldurando um par de seres humanos destacando-se com um halo tridimensional de caridade, exalando luzes multicores no ambiente.
Lan continuava a olhar os dois, e então a chinesa virou-se. Percebii que alguma coisa que meu cérebro terreno não conseguia discernir o que acontecera com sua mãe. Agora surgia um brilho inesperado na sua face, um frescor surpreendente nos seus cabelos negros, um movimento mais rápido no piscar de seus olhos, e meu coração quase parou. Sempre ouvira falar do fenômeno da Imposição das mãos, e veio-me à mente que talvez estivesse testemunhando tal fenômeno. Aquele homem, não importava quem fosse, funcionário, operário (o que não parecia ser), algum artista aposentado, (parecia um tipo assim) aquele homem era o tempo sem direção, era o eterno inesperado, que vive encoberto pela ilusão da existência, e então me veio um alívio que teimo hoje em buscar reviver . Aquela chinesa, a mãe de Lan, era a minha também, e de alguma maneira o tempo que estancou naquele momento teria em algum lugar seu ponto de eternização, e talvez aí todos sofrimentos do mundo fossem curados ,e seriam listados como arquivo morto, e transmutados em benevolência, e fariam o fundo musical de um renascimento espiritual universal.
O homem ainda olhou com carinho para a chinesa antes de se afastar. Enquanto eu me detinha no exame da aparência da mãe de Lan, o homem desapareceu. Meu lado racional e cético ainda tentou prevalecer e corri para a entrada para tentar descobrir quem era aquele estranho, mas apesar de ter ficado alguns minutos perscrutando a movimentação não o vi mais. Desisti e voltei. Lan já estava sozinha aguardando a mãe que fora chamada para a sala de Radiografia. “Quem era aquele homem que conversava com vocês?” perguntei sentando-me a seu lado. Ela virou-se me olhando nos olhos, e era raro assim ela o fazer, e uma luminosidade surgiu em sua pele clara, e seus olhos de filha pareciam satisfeitos, diferentes daqueles que me interpelara de manhã, “Eu não sei, ele começou a contar a sua vida, ele parecia sincero. Depois ele colocou as mãos dele nas costas de minha mãe, parecia uma cura espiritual" Era o que bastava para mim. Se houvesse alguma suspeita de qualquer intenção duvidosa na aproximação do estranho, a sinceridade absoluta implícita nas palavras da jovem, seu sorriso aberto e todo o conjunto de evidencias demonstrava o contrario.
Logo sua mãe retornou com os exames e dirigiu-se para a consulta. Lan acompanhou-a até o consultório enquanto eu, sentado no mesmo lugar onde há poucos o estranho estava, mantinha-me alerta, tentando combinar a imagem do desconhecido com as pessoas que iam e vinham. Um homem de avental atravessou o saguão e eu pensei ter identificado o estranho, era o mesmo andar pausado e firme, era a mesma estatura, mas não consegui vislumbrar seu rosto, levantei-me e ultrapassei-o. O homem ainda virou-se para olhar-me, eu estava muito próximo, mas não, não era a fisionomia que eu procurava, aquele era um médico, mas quando o mesmo seguia seu caminho, um arrepio percorreu meu corpo ao de novo reconhecer nos seus passos os do estranho. Voltei ao salão e Lan e sua mãe já estavam a minha espera. Era outra a disposição da chinesa. Agora andava ereta, com os movimentos livres e cheios de energia. Olhei para Lan como tentando descobrir nas suas atitudes algum indicio do mesmo sentimento de surpresa que eu tivera. Não consegui nada além da percepção de um brilho diferente no seu olhar, como a satisfação de um desejo realizado. Fomos para o carro e não pensem que eu minto quando digo que a chinesa foi na frente, com a pobre Lan tentando seguir seus passos e ampara-la ao mesmo tempo. "Como está a senhora?" perguntei à agora ex-doente, pois não parecia mais a mesma mulher daquela manhã. "Muito bom, muito bom, agora estar bem, né ?" E exibiu um largo sorriso chinês. Não quis perguntar a ela quem era aquele homem com quem conversara, não achei conveniente, o dia estava muito bonito, Lan estava radiante como eu nunca a vira, olhava para a mãe, ouso dizer como que incrédula, mas não exibiu sua surpresa de tal maneira a mais que isso, deixando-me com a impressão de que por mais que buscasse nela qualquer explicação nunca a encontraria.
Nosso trajeto de volta, apesar de curto, pareceu longo. Ao chegarmos, a chinesa foi a primeira a descer, já bem ereta, movendo-se com total desenvoltura. "Obrigado" e Lan apertou calorosamente minha mão, enquanto sua mãe já adentrava a casa. Estacionei o carro e desabei no sofá da sala, não entendia muito bem o que ocorrera e nem estava com disposição para tal, pensei em aproveitar aquele dia ensolarado. Mais tarde vi saírem mãe e filha, e posso dizer que pelo andar que exibiam não se distinguiam absolutamente, ambas naqueles passos rápidos e curtos. Saí pouco depois e ao voltar, Lan estava no jardim, molhando as plantas. "Puxa vida, não sei o que aconteceu, né ? Minha mãe está ótima, sabe aquele homem que a tocou no hospital ? Eu penso que ele ajudou na sua recuperação." Ela dirigiu-se a mim casualmente como não querendo estender o assunto, e nem eu assim o fiz. Atravessei o sábado em um ótimo estado de espírito, poucos dias de minha vida foram tão preenchidos com uma sensação de dever cumprido, e no fundo de minha mente espocavam os flashes de algum tipo de entendimento, ou iluminação. Se afinal existe mesmo um poder supremo no Universo, seja o que for naquele dia tinha dado uma amostra de sua força. Algum tempo depois fui pesquisar sobre o assunto "Imposição das mãos." O que achei surpreendeu-me positivamente. Continuo cético como antes, mas agora uma fração da minha lógica está comprometida pela exposição a uma dimensão espiritual pouco compreendida. Continuando as pesquisas descobri que cientistas registraram alterações nas taxas de hemoglobina no sangue de cobaias expostas a um determinado tipo de imposição de mãos.
Não sei até hoje o que aconteceu naquele dia. A mãe de Lan nunca mais reclamou da coluna. Sei que ela seguiu à risca os conselhos e receitas prescritas pelo médico. Teria sido esta a causa de sua cura? Sinceramente hoje quando a vejo de longe a confundo com sua filha, tal sua jovialidade. Quem seria aquele estranho no hospital? Confesso que voltei algumas vezes aquele hospital para tentar encontra-lo novamente. Mas nunca mais o vi. Já tive o pensamento egoísta de que se o tivesse encontrado à época da doença de minha mãe, talvez ele a tivesse podido curar. Já tive também o pensamento de que eu mesmo pudesse ser curado de minhas próprias idiossincrasias obscuras, mas hoje aceito as coisas como elas são. Em algum momento de solidão e desalento, quando minha imaginação febril persiste em arrastar-me para o fundo do abismo, a visão daquele estranho e a idéia de que talvez esteja agora mesmo em alguma sala de hospital suavemente conversando com alguém, suas mãos curadoras preparando-se para a ação, sobrevém-me como uma onda de salvação e eu torno a ter esperanças na vida.