A Torre das Duas Luas
Quando Ismália enlouqueceu, meu pai mandou que a deixassem naquele quarto localizado no último andar da casa, aquele mesmo em que minha avó passou seus últimos dias. Era escuro e bolorento. E tinha uma janela. Eu, secretamente, chamava o quarto em que minha irmã Ismália passou seus últimos dias de “A Torre”. Na Torre, Ismália ficava as manhãs e tardes inteiras em silêncio. O problema era quando a noite chegava.
Ismália apaixonou-se pela lua. Não importava em qual fase estivesse, a lua era sua paixão. Assim que a lua se acomodava no céu estrelado daquelas noites quentes, Ismália punha-se a sonhar. Via uma lua no céu. Enxergava outra lua no mar, lá embaixo, onde as ondas vinham bater nas pedras.
Certa vez, em meio aos gritos angustiosos da minha irmã mais jovem, subi até a Torre, para consola-la no seu desvario. Ela esticava os braços para o céu e melancolicamente olhava para o mar. Fiquei por horas a fio, até o sol nascer, com Ismália em meus braços, tentando acalmá-la naquele seu tormento sem fim. Somente quando o primeiro raio de sol iluminou a Torre, Ismália adormeceu, sonhando com as duas luas. Deixei minha irmã com seu lindo sorriso no rosto, imaginando qual grande pecado teria ela cometido para amar algo tão inalcançável.
Certa noite choveu. E por vários dias não houve nem sol nem lua. Isolada no alto da Torre, Ismália lamuriava-se por achar que a lua a teria abandonado. Por vezes tentei subir para lhe explicar a verdade. Sim, a lua não havia partido. Estava escondida atrás das nuvens de chuva e os pingos de água que entravam dentro da Torre, nada mais eram que as lágrimas da lua por amor e saudade de Ismália. Porém, meu pai – sempre ele – não permitiu que eu subisse, temeroso de alguma reação mais forte por parte da minha pobre irmã. E então, foram noites e dias de gritos e desatinos, em que nós todos lá em casa simplesmente fomos obrigados a ignorar.
As estrelas voltaram e com elas, a lua cheia. Tão enorme e imponente que até eu mesma me apaixonei. Ao primeiro luar que se seguiu, pude ouvir a voz de Ismália. Ela cantava! E estava tão feliz que invejei sua felicidade. Quem mais poderia ser tão feliz quanto Ismália era naquela noite de lua cheia? Eu também queria um pouco da sua felicidade, por isto subi até ao quarto dela, depois que todos se recolheram. Abri a porta da Torre bem devagar. Lá estava Ismália, no parapeito da janela.
Ela pressentiu quem alguém entrava na Torre e parou imediatamente de cantar. Voltou-se para mim, num enorme sorriso iluminado. A camisola branca flutuava a sua volta, como se Ismália fosse um anjo desgarrado. Só lhe faltavam as asas. Fiquei mais surpresa que apavorada ao vê-la em pé, na janela, pronta para o salto. Perguntei o que ela estava fazendo e minha irmã respondeu que Deus havia lhe dado asas. Não era possível que eu não estivesse enxergando, xingou-me Ismália.
O som do ruflar de asas tomou conta da Torre. Eu sabia que o que Ismália pretendia fazer, acho que foi por isto que eu não movi os pés de onde eu estava. O corpo dela pendeu para o espaço vazio, bateu nas pedras, caiu no mar. Cheguei até a janela da Torre. A lua cheia iluminava a noite. Juro que vi a alma de Ismália subindo aos céus. O corpo de Ismália perdeu-se no mar.
Baseado no poema Ismália de Alphonsus de Guimaraens,
Quando Ismália enlouqueceu/Pôs-se na torre a sonhar.../Viu uma lua no céu, /Viu outra lua no mar/No sonho em que se perdeu/Banhou-se toda em luar.../Queria subir ao céu/Queria descer ao mar.../E, no desvario seu/Na torre pôs-se a cantar.../Estava perto do céu/Estava longe do mar.../E como um anjo pendeu/As asas para voar.../Queria a lua do céu/Queria a lua do mar.../As asas que Deus lhe deu/Ruflaram de par em par.../Sua alma subiu ao céu/Seu corpo desceu ao mar...