O Mistério da Colina

Os três homens subiram lentamente a colina deixando a pequena vila aos poucos desaparecer na paisagem. Era uma manhã clara e úmida, chovera no dia anterior e a vegetação guardava sua reserva de líquidos em pequenas gotas ao sol. Izaias era o mais novo deles, Ivo era o topógrafo e Rodrigues o engenheiro, estavam lá para executar a medição de uma área da colina que margeava a vila, em um projeto de exploração mineral. Já há tempo as peculiaridades do local eram conhecidas dos moradores da vila. Izaias lembrava-se muito bem do susto que o assombrara quando criança, uma velha panela de ferro repentinamente arremessada de cima do fogão diretamente à parede da cozinha de casa. Esse fato o introduziu no universo das estranhas ocorrências que observaria pela vida afora.

Aos poucos ele foi conhecendo a gênese de tais fenômenos. Todos sabiam que havia um segredo na colina, mas todos o explicavam do seu proprio jeito, alguns exagerando, outros rindo, mas somando e diminuindo tudo, restava a lenda de um enorme imã residindo em uma caverna subterrânea no centro da elevação. Essa então era a causa dos casos que deliciavam os grupos que em certas ocasiões reuniam-se em torno de alguma fogueira para narrar aventuras domésticas. Os dois topógrafos haviam contratado Izaías para ajudá-los no transporte dos instrumentos, e ele nada sabia de instrumentos, só sabia que aqueles pesavam nos seus ombros. Havia uns com mostradores, que para Izaias eram simples relógios, e havia os tripés, incômodos, que atrapalhavam a caminhada. Já haviam subido durante uma hora quando Ivo parou para consultar uma caderneta que carregava com muito cuidado, e ali ficou. Rodrigues o imitou."Vamos parar por aqui" disse Ivo, e essas palavras soaram para Izaias como uma melodia. Os equipamentos foram descidos dos ombros, braços e cinturas, e com a orientação dos dois técnicos, os mesmos foram cuidadosamente dispostos em um lençol plástico no chão. O local era mais plano que as redondezas, e a vegetação mais rarefeita. Com alguns suspiros sentaram-se os três.

Enquanto Ivo e Rodrigues entregavam-se a um diálogo incompreensível para o guia, este deixou sua mente escorregar para seus próprios assuntos. "Izaias", uma voz feminina introduziu-se nos seus devaneios e mentalmente o rapaz dirigiu seu olhar para a direção da voz. Uma imagem atraente delineou-se no seu cérebro, uma imagem alva, roliça, de cabelos curtos e grossos , em um rosto juvenil de pequenos olhos castanhos, e aquela pele que parecia refletir todo o fulgor de seu desejo de adulto. "Val", e sua voz parecia vir de outro corpo, do centro da terra, suas mãos pareciam querer ir à boca e tapá-la como conservando a pronúncia do mesmo. Sentia tanto desejo por Val que não cria fosse possível ela corresponder tanto amor, conheciam-se desde criança e prometeram-se parceiros, não havia muitas escolhas na vila. Izaias então lembrou-se de Adão, seu primo e rival, assim ele o imaginava, no entanto não creditava ao mesmo tantas qualidades que desencorajasse seu sentimento de posse. Nesse trabalho ele receberia uma quantia respeitável para os padrões da vila, e com o que já tinha economizado talvez desse para casar com Val. Na vila havia pouco trabalho, e muitos haviam se candidatado para a função, mas o acaso, que é a loteria do destino, quis que ele fosse o escolhido.

Enquanto os dois técnicos montavam o tripé e calibravam os instrumentos Izaias admirava o verde que se estendia até o horizonte. Nunca chegara àquele ponto da colina, sempre a temera, com suas ondulações e variações de vegetação. Durante sua breve vida sempre ouvira falar em homens que desapareciam nos seus caminhos, mas mesmo na sua simplicidade intrigava-se com as vozes baixas que os mais velhos usavam para contar tais casos, o que ele realmente queria era a colina livre para o uso de todos, era muito espaço para ser desperdiçado. Já era mais ou menos meio dia quando afinal os técnicos calibraram os instrumentos e iniciaram uma outra atividade. A colina naquele ponto era recoberta com pouca vegetação, mas adiante uns cem metros, iniciava-se um trecho com árvores que impedia a vista de discernir sua continuidade. Ivo caminhou naquela direção, carregando os tripés e Rodrigues permaneceu no local, com o outro tripé já montado. Rodrigues olhou em volta e sorriu, talvez admirado com as cores fortes da vegetação.

O verde da relva tornara-se mais denso com a umidade, e para a direção oposta as arvores faziam uma curva gentil que delineava o horizonte de um céu azul sem nuvens. Izaias acompanhou o olhar de Rodrigues e sentiu uma ponta de orgulho, como se dissesse; "Esse é meu lugar, esse céu e esse verde são o meu cenário, e é aqui que vou viver feliz com meu amor". E a distancia realçava sua imaginação, e ele viu Val descoberta, com sua pele macia e suas pernas fortes a lhe esperar em alguma noite estrelada. Ivo parecia distante, e contou uma piada sem ao menos se importar se o outro escutava ou não. No entanto Izaias divagava, e o céu, o verde, o clarão do sol, acendiam no rapaz uma urgência no coração que nunca antes sentira. Rodrigues já estava longe quando parou, o tripé ainda no seu ombro direito. Ivo levou um binóculo aos olhos enquanto seu companheiro parecia adentrar um pouco mais entre as árvores. Sem saber porque Izaias lembrou-se dos desaparecimentos, mas logo retomou sua atenção e quando Ivo lhe pediu um dos instrumentos pelo nome, ele que já havia aprendido essa lição, correu e lhe entregou o mesmo. Izaias olhava em direção as arvores, e se estava entendendo bem, Ivo deveria retornar ao ponto que deixara o tripé, para iniciar as medições, mas nada acontecia.

Enquanto Rodrigues olhava e tornava a olhar através do binóculo, e o primeiro tripé permanecia como atento à iminência de seu próprio uso, o outro tripé quedou-se solitário a mais de uma centena de metros adiante. Rodrigues começou a demonstrar preocupação. Olhou de soslaio para Izaias, como que procurando ajuda, mas o olhar que recebeu de volta era de interrogação. "Que diabos está acontecendo" disse a si mesmo o impaciente Rodrigues ". Ele já deveria estar de volta, temos mais coisas a fazer”. Izaias preparou-se para algo inesperado, sua intuição soprava-lhe. Rodrigo gritou o nome do companheiro e no silêncio da colina um som quase inaudível atingiu ao mesmo tempo os ouvidos e os cérebros dos dois homens. O som repetiu-se, e na soma das ondas sonoras que vinham das árvores uma palavra tornou-se cada vez mais nítida. "Socorro", ouviram quase incrédulos. Izaias desvencilhou-se dos equipamentos que manejava, restando somente os apetrechos do cinto. Rodrigues fincou o tripé na terra e como se obedecesse a alguma ordem oculta, correram em direção às árvores.

O som desesperado aumentava aos poucos, mas era como se viesse de algum lugar muito distante, não correspondia ao cálculo mental que Rodrigues realizava. Izaias, mais rápido, apesar de menor estatura, acostumado ao campo, não olhava para trás, enquanto Rodrigues se esfalfava na sua corrida. Seu coração tanto corria para atender ao esforço de seu corpo como acelerava-se querendo fugir de um mau presságio. Ele e Ivo trabalhavam juntos já há algum tempo, eram como irmãos, e aquela quase inaudível súplica trazia em meio à corrida uma frouxa lágrima aos seus olhos. Sua mente maldizia a colina, a lenda dos desaparecimentos, só podia ser lenda, o preocupava. Izaías adentrou às árvores, desviando-se do segundo tripé, não conhecia esta parte do terreno, e o declive ficava ao lado oposto da vila, poucos de seus habitantes ousariam chegar mesmo até o topo. Após alguns passos, ele parou. A colina nesse ponto mudava sua inclinação, as árvores prosseguiam indefinidamente, mas agora para baixo, e imediatamente à sua frente a relva afundava como a cavidade oca em um ninho de pássaros. Agora a voz suplicante tornou-se clara e ao mesmo tempo aterradora. Era Ivo.

As árvores na realidade pareciam fazer parte de uma armadilha, encobrindo uma enorme cratera que desenhava-se a seus olhos. Rodrigues chegou logo atrás. Olhou rápido para o tripé, este meio adernado após a ruptura do terreno, e estancou com a visão do companheiro. O buraco tinha aproximadamente três metros de diâmetro, e era escuro, parecia um furo em um queijo suíço. Com certeza a vegetação disfarçava muito bem o perigo, e Ivo deve ter escorregado quando ajustava o tripé. Izaias empurrou levemente Rodrigues como para impedir alguma ação precipitada, pois Ivo estava a uns três metros da superfície, em um pequeno ressalto que dava início a uma negra descida. As paredes do buraco eram metálicas, quase brilhantes, Rodrigues, nunca antes vira tal brilho. Conhecia geologia, mas não conseguia classificar aquela visão. Izaias, embora atrás de Rodrigues, sentia algo que o empurrava para frente e para baixo, como se alguém o estivesse puxando pela cintura. Rodrigues olhava desesperado o companheiro que mal se equilibrava na parede lisa da cavidade. “Rodrigues, estou escorregando”, e Ivo levantava os olhos aterrados em direção aos dois homens.

Realmente Ivo, aos poucos perdia contato com o apoio do ressalto rochoso, e a queda parecia ser inexorável. O negrume do seu interior não permitia ver o fundo, mas pelo eco das palavras e até onde a vista alcançava, este deveria ser mortalmente fundo. De repente Izaias abaixou-se. Sentiu desta vez a força que o perturbava, sentiu a pressão no cinto largo, e sua caneca de ferro sendo puxada pelo buraco. Lembrou-se imediatamente das panelas que voavam na cozinha, algo estava empurrando a caneca de metal em direção ao buraco. Foi lúcido o suficiente para perceber o perigo, abriu rapidamente o cinto e jogou-o ao lado oposto. A caneca ali estancou, sem pular, grudada ao chão. Rodrigues abanava a cabeça, e levantava os braços, e olhava para os lados e chorava. Ivo parecia ter medo de mover-se. Centímetro a centímetro inexoravelmente caía em direção ao abismo. Rodrigues de repente puxou a fita métrica do cinto pensando em usá-la como corda, mas ela era muito frágil, provavelmente o movimento do homem em perigo tentando usar aquela improvisada ajuda o levaria desta vez às profundezas aterradoras do buraco. Izaias teve então uma idéia. Voltou ao local aonde jogara a caneca, puxou-a com força da sua prisão invisível, e com muito cuidado aproximou-se da borda da cratera, segurando o objeto de ferro com as mãos acima da cabeça. Ivo levantou seus olhos esbugalhados, e Izaias ponderou a distancia e lançou a caneca em um arco no ar. Como se uma mão invisível a empurrasse, o prosaico objeto fez uma curva no ar e acelerou-se em direção ao ressalto. Com um som metálico grudou-se a superfície e brilhou refletindo os raios de sol que adentravam as árvores. Ivo soltou uma das mãos da rocha que sem ângulos não permitia apoio seguro, e num movimento aflito segurou a caneca. Sua experiência com o magnetismo não o animava, imaginou a caneca deslizando para o fundo com ele mortalmente agarrado á mesma. Mas a caneca não se moveu.

Aquela força magnética era inusitada. A esperança percorreu suas veias, enquanto a caneca salvadora teimava em suportar seus esforços para nela se apoiar. Sorriu tremulo para Rodrigues que olhava a cena sem acreditar. Izaias sentiu-se de repente orgulhoso de sua idéia. Rodrigues gritou "Agüenta firme, Ivo" e seu raciocínio voltou ao normal. Seus olhos voltaram-se para o tripé, e ele arrancou-o da terra e segurando-o acima da sua cabeça, gritou para Ivo "Vou jogar, vê se agarra", e o arremessou em um movimento calculado, com as pernas de madeira para baixo. A mesma mão invisível grudou o teodolito na parede escura, então Ivo moveu-se rapidamente, e com um dos braços alcançou a haste de madeira do tripé, enquanto a outra mão apoiava-se na caneca. O olho escuro da cratera pareceu piscar de decepção ao ver sua presa escapar. O tripé suportou o peso que o puxava, e Ivo conseguiu alçar-se mais, e levantando o joelho apoiou-se na caneca, enquanto seus dois braços agarravam o tripé, e agora um dos pés apoiava-se na caneca. Já recobrando a confiança usou o tripé como escada, e enquanto Rodrigues estendia os braços em sua direção, Izaias com um braço agarrava-se a uma árvore e com o outro segurava os pés de Rodrigues, em uma corrente humana.

Em poucos instantes Ivo estava na superfície. Chorando abraçou os dois . "Nunca vi na parecido com isto, Rodrigues, esse magnetismo incrível ". E o desabafo trouxe um enorme alívio para o trio. "Izaias, você teve a idéia de usar a caneca, Ivo, nosso herói é ele". E os três abraçaram-se de novo como celebrando a vida que escapara da enorme goela escura. Os três jovens quedaram-se respeitosos frente à goela negra. Ivo apressou-se e encarou seu quase túmulo. Sua mente treinada não conseguia classificar tudo o que ocorrera, sua imaginação ganhou a disputa e tremulantes através do ar úmido ele viu outras colinas, viu o mar e suas cavernas abissais, viu o subsolo das grandes cidades, viu o espaço azul que encobre a terra, viu a floresta amazônica e a população inteira do mundo espremida em uma lata de sardinha, em uma enorme caixa que deslizava no oceano. Quantos mistérios ainda aguardavam impacientes para assombrar o homem.

Rodrigues e Ivo decidiram voltar. Ambos sentaram-se na relva, já distantes das árvores e iniciaram uma série de anotações, e vez em quando entreolhavam-se, gargalhavam, e Izaias juntava-se a eles, acabara de presenciar uma ressurreição. Izaias de repente acordou, como que prevendo o futuro. Certamente a notícia da descoberta se espalharia, talvez viessem mais engenheiros, máquinas enormes, talvez distantes turistas, mas restava o que ele presenciara, como se fosse um enorme quebra cabeças esperando para ser resolvido e o mundo não deixaria de vir só pra manter aquele paraíso bucólico, não, para o mundo o que importava o progresso.

“Izaias, vem cá”, e Rodrigues ficou sério, e Izaias sentiu-se importante. Rodrigues resolveu ali mesmo iniciar o jovem Izaias nos segredos do negócio, esforçando-se para incutir no mesmo a obrigação do sigilo, e lembrou sua agora categoria de herói, sugerindo um futuro na companhia. Revelou que talvez as variações magnéticas observadas há tempos na vila viessem da infiltração e absorção da água em alguns buracos no manto magnético, como aquele que quase engolira Ivo. Os homens então iniciaram a descida. Izaias sentiu uma paz interior, conseguira com sua presença de espírito salvar uma vida, tinha certeza disso, lembrou-se de Val, e pensou que se fosse ele que tivesse caído naquele terrível poço, talvez nunca mais a visse. Após uma silenciosa caminhada adentraram a vila. De repente olhou para Ivo a seu lado, ali estava um ressuscitado, e a vida então tomou nova forma, e sentiu que o futuro guardava a felicidade. A colina desvendara seu mistério, o destino lhe dera uma mão, e ele a agarraria com todas suas forças.

FIM