Sonhos e Ilusões - Capítulo 02 - Vicente
Dragon Quest
Sonhos e Ilusões
Capítulo 2: Vicente
Já é tarde. A cidade da noite é a mesma do dia, mas as sombras são diferentes. As sombras do dia são pouso para corpos cansados do calor, cansados da luminosidade que os mantêm acordados e os obriga a trabalhar para sustentarem suas tristes vidas. As sombras da noite são esconderijos daqueles que a sociedade rejeitou, aqueles que o mundo relega a meros sobreviventes de um sistema de vida que não perdoa os perdedores.
Mesmo os perdedores dormem, mas seu sono é leve, carregado de apreensões e medos. O prédio de apartamentos está cheio deles, pessoas que trabalham miseravelmente de dia e continuam em sua miséria a noite, voltando à suas cavernas, onde lambem suas feridas em busca de algum alívio. Não existe elevador neste prédio e as escadas são escuras e sujas. Um homem enfrenta com dificuldades a escuridão e o mal-cheiro. Seu nome é Vicente e ele mora sozinho num dos quartos.
Vicente está cansado, seu trabalho hoje durou o dia inteiro, não comeu quase nada e não tem o que comer agora. A chave gira na velha porta, causando um "clec" bem pronunciado. Os rangidos da porta também não são nada discretos e as luzes fracas do corredor penetram no quarto escuro, deixando Vicente ver sua velha cama sem espelho. Ao entrar no quarto, Vicente não liga imediatamente as luzes, uma leve apreensão lhe assalta a mente, como se houvesse uma armadilha lhe esperando. Ele olha bem para dentro do quarto, vê a estande com a televisão e o fogão, escuta o barulho característico do frigobar e corre os olhos sobre os armários. Não vê nada de estranho, e a sensação desaparece tão rapidamente como veio.
As luzes são ligadas e agora podemos ver quão gastas são as paredes, velhas teias de velhas aranhas enfeitam o teto do quarto, causando um emaranhado que mais parece avenidas de uma metrópole. o fogão está bem enferrujado, assim como a porta do frigobar, Vicente não liga para nada disso, é o que tem, é o que pode ter. Rapidamente ele fecha e tranca a porta e agora seguro em seu castelo, retira suas roupas e se prepara para dormir.
Um espelho que só agora pode ser visto reflete sua triste figura. Cabelos brancos emaranhados e sujos combinam com a brancura de sua pele. Vicente possui uma pele muito clara, claríssima pra dizer a verdade. Mas não tem problemas de queimaduras ou coisas assim, muito menos fica bronzeado, não importa o tempo que fica no sol. Seu corpo, apesar de estar sujo e debilitado, ainda mostra sinais de uma antiga força, como um atleta que pára de repente de fazer exercícios, e pouco a pouco vai perdendo a forma. Ele não vê, mas em suas costas há uma imensa cicatriz de cima a baixo, nas pernas também há várias cicatrizes, seus braços parecem trilhados por tridentes e falta a unha de seu dedo mínimo. Uma vida movimentada, às vezes ele pensa, foi o que ele teve.
Vicente não sonha, seu sono é estranhamente pesado. O dia chega de repente e ele já está atrasado. Sem asseio ou café da manhã, Vicente sai de sua caverna e volta para a selva que passou a chamar de lar nos últimos 2 meses.
Pois faz 2 meses que Vicente acordou numa das ruas desta cidade, não se lembrava de onde veio, não se lembrava quem era, só o conhecimento do seu nome não lhe escapara. Em seu corpo, abundantes ferimentos denotavam uma considerável perda de sangue, provável causa de sua amnésia. De início viveu nas ruas, até que, sem querer, socorrendo uma pessoa que estava passando mal, acabou sendo herdeiro do único bem que o falecido havia deixado: as chaves do apartamento onde morava agora. Nunca soube quem era seu "benfeitor", mas isso não lhe importava. Os outros moradores do prédio simplesmente lhe ignoravam e sempre havia pessoas indo e vindo, de modo que não se estranharam o dia em que ele entrou no apartamento e tomou posse das poucas coisas que haviam lá.
As ruas do centro boêmio, longe do porto, são bem movimentadas à noite. Pela manhã se vêem os resquícios da bebedeiras e farras, latas e garrafas amontoadas pelas calçadas. Mas é nessa hora que um pequeno exército de trabalhadores informais vem em socorro da limpeza urbana, recolhendo todas as latas e vasilhames para reciclagem, vendendo por pouco, muito pouco, mas é o que lhes sustenta. Vicente conseguiu uma "vaga" neste exército, mais um benefício herdado pelo antigo dono do seu apartamento. Os outros recolhedores não se importavam e ele trabalhava a manhã inteira recolhendo latas e colocando-as em sacos que levava para o outro lado da cidade, numa viagem à pé e cansativa. Muitas vezes preferia não gastar o dinheiro com uma condução, voltando à pé para seu quarto no porto.
A manhã está com um sol bem brilhante, o calor está começando a ficar insuportável, Vicente está andando há muito tempo, em seu estômago somente um pequeno pão com café. Ele vira uma esquina, fica ao lado de um imenso prédio, que não havia notado antes e é nesta hora que ele vê:
Eles parecem pequenos macacos, membros finos e uma cauda, mas não possuem pêlos e imensas orelhas pontudas em suas cabeças de réptil afastam totalmente qualquer semelhança com símios. São uns dez, mais ou menos e a bagunça que estão fazendo é enorme. Vicente nunca havia visto tais criaturas e parece que ele é o único que os vê. Os trausentes nem ligam para o que está acontecendo, sendo muitas vezes atingidos, sem se importarem com o que lhe atingiu.
As criaturas por fim percebem que Vicente pode vê-las, elas ficam paradas por um tempo, todas olhando para ele. Vicente não sabe o que fazer, as criaturas não são muito fortes ou com aparência perigosa, mas são muitas. De repente uma delas solta um guincho agudo e desaparecem numa desabalada carreira rua abaixo. A rua fica vazia novamente, mas várias latas de lixo reviradas dão testemunho da presença dos pequenos reptéis arruaceiros.
Vicente não conta para ninguém o que viu. Além de não ter amigos com os quais possa conversar, acha que o tomariam por um louco se disesse que pequenos monstros estavam pintando o sete em pleno dia, numa rua movimentada.
— Será que eu estou ficando louco?, Vicente duvida de sua sanidade — O que está acontecendo comigo? Esta pergunta não é só para a visão das criaturas, mas para tudo o que lhe aconteceu nestes últimos 2 meses. Desespero e angústia tomam conta da sua mente. E ele desaba derrotado na calçada, mais um mendigo nas ruas desta cidade...
A sombra aparece de repente, o sol, que estava inclemente, fica oculto na penumbra que atinge todo o quarteirão em que Vicente está. Institivamente ele dirige seu olhar para o céu e vê a imensa forma que está pairando sobre a cidade. Parece uma baleia, mas está voando uns 3 quilômetros acima do solo, e é enorme, tão grande que bloqueia os raios solares.
— Agora estou louco mesmo! Vicente corre, fugindo, atravessando a cidade. Chega no seu quarto, a forma ainda está no céu, impertubável, parece agora que está indo embora e por fim desaparece no horizonte. E da janela do seu apartamento, Vicente acompanha o vôo da criatura.
— O que está acontecendo comigo?!? — O que está acontecendo COMIGO!!!??? Vicente grita, ele está cansado, esta não é uma vida que um ser humano gostaria de viver. Mas ele está vivo e não pode fugir do fato de que não sabe nada de si mesmo, não sabe o que fez, como chegou à esta cidade, ou porque agora está tendo alucinações. De si mesmo só conhece o nome, Vicente, que de alguma maneira está bem gravado na sua mente. Fora isso, é um completo estranho.
A noite cai. Vicente não está bem, sua cabeça doí, não sabe se está doente, ou se é apenas a fome. As luzes do dia já se foram, e a solidão do quarto lhe deprime ainda mais. O desespero vai cedendo espaço para o cansaço e desânimo, e por fim, Vicente dorme.
As luzes, de início, eram bem fracas. O armário vibrava um pouco, mais do que o frigobar. Sem aviso a porta do quarto se abriu e uma luz bem mais forte entrou no aposento. Sons de muitos passos chegaram do corredor, acordando Vicente. A luz forte lhe cega momentaneamente, mas quando se acostuma com a claridade, percebe que os macacos-répteis que viu mais cedo agora estão no corredor do prédio. Eles passam de lá pra cá, dão uma espiada no quarto e continuam seu caminho. Vicente está revoltado, seu desânimo é tão grande que ele nem tem tempo de ficar com medo das criaturas. De alguma forma ele sente que as criaturas estão com medo dele, por isso não entraram no quarto, mas estão à espreita.
Súbito, Vicente suspeita que as criaturas na verdade estão vigiando-o, esperando por outro ser mais forte. Ele percebe isso na impaciência do andar delas. Seus receios estão certos, pois uns 15 minutos depois de ser acordado, Vicente escuta passos bem mais pesados no corredor e as criaturas se afastam, deixando o corredor vazio, só com os passos.
Um monstro enorme, que mal consegue passar na porta entra no quarto de Vicente. Ele só um possui um olho e porta uma imensa clava, seus músculos são imensos e seu cheiro insuportável. Esta visão congelaria qualquer um de medo, mas Vicente está estranhamente calmo, em sua cabeça lampejos de memória começam a aparecer, pensamentos que reconhecem o monstro à sua frente:
"Um ciclope das montanhas Honos", é o que pensa Vicente, mas não sabe realmente o que é um ciclope, nem tampouco onde fica estas "montanhas Honos". O ciclope avança em direção à ele, como o quarto é minúsculo, Vicente está em vantagem por poder se movimentar com mais desenvoltura. O monstro emite um grito bem grave e tenta acertar em Vicente um golpe com sua clava, mas ele não estava mais no local que o mostro acerta. O ciclope procura por Vicente e não o encontra em lugar algum. Por fim sente que alguma coisa está subindo nas suas costas, mas já é tarde demais: Vicente acerta uma panelada bem segura na cabeça do ciclope, fazendo com que ele caia desacordado, quebrando a cama e o armário na sua queda.
Vicente pulou para o lado quando o monstro caiu e viu de relance uma figura humana na porta do seu quarto, quando atingiu o chão, jogou a panela que nocauteou o monstro na nova ameaça. Mas quando olhou novamente, a panela bateu no outro lado do corredor, imediatamente Vicente deu uma volta completa em torno de si mesmo, para tentar localizar seu alvo e não viu mais nada. O ciclope já se recuperava do golpe, Vicente correu para o canto do quarto onde estava as panelas, procurando por outra arma e acabou encontrando uma pequena faca, muito pequena para dar fim na imensa criatura. Deu mais uma olhada em todo o quarto e viu a pessoa que havia visto antes, sem pensar duas vezes, arremessou a lámina no estranho que, impertubável, agarrou a arma branca no ar.
— Você é sempre esquentado assim? O estranho pergunta, sua voz está calma, como alguém que encontrou o que estava procurando há muito tempo. O estranho age como se conhecesse Vicente, apesar deste nunca ter visto alguém como ele. Sua roupas eram de pura seda, tingidas com um padrão amarelo e escarlate. A vestimenta caía folgada em seu corpo, amarrada por um cinto de ouro.
Enquanto está ponderando o que vai fazer, Vicente percebe que o ciclope já está de pé, ele dá um salto para trás e tenta pegar alguma coisa maior para bater na criatura, mas não tira os olhos do estranho que está parado na sua porta.
— Com licença... O estranho se volta para o monstro, que percebe que há uma ameaça maior no homem de vermelho e levanta a clava para lhe acertar um golpe fatal. O que acontece é muito rápido: com um movimento descendente da faca que Vicente lhe arremessou, o homem descreve um arco no ar, que mesmo depois de executado continua a brilhar e é suficiente para defender o poderoso golpe do ciclope. O impacto joga o monstro para trás, que desaba na outra parede do quarto de Vicente, quebrando o que ainda estava inteiro.
Pontos brilhantes começam a aparecer ao redor do estranho, Vicente percebe que cada ponto na verdade é uma pequena chama, que rodopiam em volta do corpo do seu "salvador", o homem junta as mãos e todos as chamas se concentram nelas, com um movimento de arremesso uma grande bola de fogo é jogada contra o ciclope.
— BEGIRAMA!!! O grito acompanha a bola de fogo, Vicente se afasta o que pode, e o monstro é atingido em cheio, destruindo a parede e desabando três andares abaixo, com uma imensa área chamuscada em seu peito.
— Há! Um Ciclope de Jiste não é páreo para um Begirama... Humm, acho que fiz um grande estrago, não que isso importe.
— Era um Ciclope de Honos... E EU ME IMPORTO MUITO!
— Ahhhh, sem drama...! Seu quarto era mais um chiqueiro, além disso você não vai mais ficar aqui! Vamos embora!
— EU NÃO VOU PRA LUGAR ALGUM!
— Ei, não precisa ficar nevorso, é só vim comigo, certo?
— QUEM É VOCÊ? O QUE ESTÁ ACONTECENDO?
— Ai, ai... Tô vendo que você vai me dar trabalho...
— O que vai fazer?!?
Sem aviso, o estranho retira um pequeno pacote de uma das dobras de sua roupa e joga com força no chão. Uma névoa fria toma conta do quarto e Vicente não consegue mais ficar acordado, desabando no chão como se estivesse morto, mas na verdade num sono profundo.
— Ainda bem que ele não sabe de nada... Nunca consegui usar este pó do sono, todo mundo sabe evitar!
E sem dizer mais nada, o estranho carrega Vicente e sem medo dá um pulo no buraco recém-aberto, sumindo na escuridão da cidade.
...
Após a saída dos dois, alguns macacos-répteis voltam para o quarto, seus olhos estão inquietos, eles procuram e reviram em todos os cantos do apartamento, mas não acham o que procuram. A porta de outro quarto do corredor se abre e um homem de passos calmos vai para o quarto de Vicente. Os macacos-répteis assumem uma atitude respeitosa na presença dele e ele examina detalhamente o buraco feito pela queda do ciclope.
— Acho que isso vai acordá-lo... Agora é esperar Dilax fazer as coisas certas. Vamos embora!
Dizendo isso, um portal aparece no corredor e uma por uma as criaturas o atravessam, por fim o homem também a atravessa, e quando faz o portal some. O prédio de apartamentos começa a desabar, como se estivesse sendo sustentado por um pequeno fio que agora se partiu e caí com um estrondo que acordaria todas as pessoas da cidade, mas ninguém aparece.
...
— Onde... eu... estou...? Vicente acorda lentamente, a luminosidade do local fere seus olhos e ele percebe que está numa cama bem confortável, a primeira sensação de conforto nos dois últimos meses.
— Em Phene. O estranho que salvou Vicente está ao seu lado, sentado num sofá do mesmo material da cama. — Você é mais pesado do que parece, me deu um bocado de trabalho lhe trazer pra cá.
— O QUÊ?!?
— Ahhh, sem drama! Só fiz o que Dilax me pediu, não vou ficar aqui brigando com você! E o estranho se levanta e vai embora.
— Espere! Quem é esse Dilax? E quem é você?
— Dilax é o meu mestre... E meu nome é Xalid.
— O que vocês querem de mim?
— Isso é Dilax quem sabe. Ele logo vai está aqui.
Xalid sai do aposento, que só agora Vicente nota que possui três portas. É um quarto circular e bem ao lado de sua cama há uma porta, e as extremidades do quarto possuem uma porta cada uma. É por uma delas que Xalid se foi e é pela outra que outra figura entra no quarto.
O homem que entra no quarto de Vicente é a própria imagem da sabedoria, longos cabelos brancos combinam com uma espessa barba de nívea cor, emoldurando um rosto enrugado e sério. O velho veste uma longa túnica rubra, com desenhos geométricos definidos em amarelo, em consonância com seu discípulo Xalid. Dilax, pois é ele, não parece andar sobre os pés, antes flutua poucos centímetros acima do solo, fazendo movimentos graciosos e suaves ao se deslocar. Ele senta-se no sofá, os olhos fixos em Vicente.
Vicente deve ter dormido por muito tempo. Seus cabelos, que estavam sujos e emaranhados, agora pousam lisos e brilhantes em seus ombros, seus farrapos foram substituídos por uma roupa no mesmo estilo de Xalid, mas com dois tons de branco, que em conjunto com sua pele claríssima, fazem Vicente parecer mais um fantasma pálido do que um ser humano.
— Você é bem-vindo em Phene... Mas preciso fazer um teste... Dilax se levanta de repente, de seus olhos um brilho verde atinge os olhos de Vicente e este caí pesadamente na cama. Imagens começam a se formar na mente de Vicente, imagens que ele não conhece ou lembra. Imagens que parecem sonhos...
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