O Outro Nome da Magia
Ela o observava com interesse. A moça já fazia isso há tanto tempo que havia virado rotina. Talvez o menino já soubesse, mas ela não se importava. Depois de todos aqueles meses, de todas aquelas aulas na faculdade, do menino ter se tornado, sem saber, seu objeto de estudo, a única real relevância era o que ela tinha a oferecê-lo. Nem mesmo a moça sabia, mas aquele era o início de uma realidade tão absurdamente impossível, que chegava a ser verdadeira...
“- Amendoim!... Pipoca!... Nota grande a gente troca!”...
- Olá. –Disse a bela moça ao menino.
- Vai alguma coisa aí dona?
- Na verdade eu queria falar com você. Não está me reconhecendo?
- Acho que não.
- Eu venho aqui todo dia.
- Muita gente vem aqui todo dia dona. Isso é um parque.
É incrível como mesmo a criança menos instruída do mundo, tem a capacidade de, no seu mais simples comentário, desconcertar o maior dos intelectuais. Era esse desconcerto que a moça sentia naquele momento.
- É claro –ela disse-, eu sei. Só pensei que você poderia me reconhecer.
- Olha dona, se você passou mal no parque deve de ter sido por causa de algum desses ‘brinquedo’ doido. Eu ‘num’ vendo nada estragado.
- Não, nada disso, eu só quero fazer algumas perguntas, tudo bem?
- É que eu tenho que vender meus ‘produto’...
- Eu pago dez Reais se você responder as perguntas que eu tenho pra fazer.
- Cadê o dinheiro?
- Meu nome é Kátia –falou a moça enquanto estendia a nota de dez.
- E o meu é João.
Eles levaram algum tempo conversando. No início da conversa Kátia fez perguntas sobre o menino, mas com o desenrolar do assunto o que era para ser uma pesquisa sobre a educação das crianças de rua acabou se tornando uma conversa aberta, como se os dois já se conhecessem desde sempre, como se João fosse o irmão mais novo que Kátia não tinha.
- Eu não tenho família –disse ele-. Quer dizer, não conheço eles. Mas tenho família, todo mundo tem pai e mãe, não é?
- Claro. Mas você mora aonde?
- Por aí. Eu queria dormir no parque, mas eles não deixam. Por isso quando o parque ta fechando eu pego um ônibus para qualquer lugar e aproveito pra ‘fazer um troco’ vendendo pros passageiros.
- E você não se cansa?
- Até canso, mas já to acostumado, tem uns ‘ano’ que eu faço isso.
- Quantos anos você tem?
- Onze. Ou doze, não tenho certeza. Ninguém nunca me contou direito.
- Você nunca teve ninguém que cuidasse de você?
- Acho que me colocaram ‘num’ abrigo quando eu nasci, mas eu fugi com sete ou oito anos, não me lembro, por isso não sei direito que idade que eu tenho agora.
A conversa ainda correu solta e os dois só pararam de falar quando o parque estava fechando. Kátia se despediu de João e entrou no carro, estava com uma idéia que não lhe saída da cabeça. Enquanto isso o menino seguia para o ponto de ônibus. Ele havia gostado da moça, mas por causa da conversa ele não vendeu tanto amendoim quanto podia, por isso resolveu ir dormir em um lugar mais longe do parque, para ter tempo de vender mais coisas no caminho.
No dia seguinte Kátia foi ao parque, mas não encontrou o menino. Quando se viram de novo, na sexta-feira seguinte ao encontro, ele explicou que durante a semana o movimento do parque era pequeno e ele ia vender em outros lugares.
- Você nunca pensou em voltar para um orfanato, estudar... Nunca pensou em como poderia ser sua vida se você pudesse ter o que as outras crianças têm?
- Sei lá... Agente sempre sonha com uma família de verdade, mas depois de velho é muito difícil alguém adotar. E escola, pra que?
- Escola é importante pra ser alguém na vida. Você precisa estudar se quiser ter um bom emprego, uma boa vida... E mesmo assim é difícil.
- Mas como eu vou estudar se eu não tenho ninguém. E eu tenho medo de voltar pro abrigo. Eles me maltratavam, aí eu fugi.
- Se você quiser eu te ajudo a estudar, a se preparar para o mundo. Você quer?
- Mas como você vai fazer pra me ajudar?
- Eu sou professora. Ou, pelo menos, estou estudando para ser um dia.
- Mas como eu vou estudar? Eu ‘sô’ trabalhador sabe? Eu tenho que ganhar dinheiro.
- Eu posso dar um jeito...
Kátia havia conseguido um emprego na loja de seu tio para João. O garoto se mostrou prestativo e, além do dinheiro, ganhou um quarto para dormir. Ele estava muito feliz, mas a moça tinha muito mais alegria, pois ao invés de se encostar àquele emprego, o tempo que João ganhou de sobra ele usava para estudar. E estudava com mais afinco do que qualquer pessoa que Kátia conhecia. Em poucos meses ela viu o garoto que mal sabia falar direito, começar a ler e escrever como se fizesse aquilo há séculos!
Era mais uma aula. Há algumas semanas Kátia havia decidido que era melhor estudar em sua casa, pois o ambiente de trabalho do tio era muito barulhento. João ia animado no ônibus, imaginando o que aprenderia de novo. Ele fazia tantos planos, mas mesmo assim tinha medo. Medo de magoar Kátia e ser novamente abandonado. Medo de ser demitido por alguma besteira não poder mais estudar. Talvez ele não soubesse, mas sentia, sentia medo.
Kátia abriu a porta para João com um sorriso. Estava feliz por poder dar um novo passo no aprendizado.
- Olá João, está preparado para a surpresa que eu prometi?
- Acho que sim.
Ela estendeu um livro. Um livro de capa dura, com quase duzentas folhas. A capa era verde com muitos desenhos confusos e, um título em espiral que dizia: O outro nome da Magia.
- Um livro? –Perguntou João um pouco desconfiado.
- Isso. Por que? Algum problema?
- É só que eu acho um pouco chato.
- Mas agente sempre lê junto.
- Eu sei, mas com você é diferente. Você sempre me ensina alguma coisa, se eu ler sozinho eu não vou entender nada.
- Como você sabe se nunca tentou.
- Ah, eu só acho...
- Olha, um livro é o portal para uma dimensão infinita, para uma realidade onde tudo é possível. E depois, esse livro é mágico.
- Como assim mágico?
- Quando alguém lê esse livro não só pode “ver” a dimensão como também faz parte dela.
- Não acredito.
- Você só vai saber se tentar...
Era noite, por volta das sete horas. Kátia estava em casa, em conseguir digitar sua monografia, pensando no que João estaria achando do livro. João entrava no ônibus e procurava uma cadeira para se sentar. No banco, ele encarava a estranha capa do livro. “Será mesmo...?”, lhe ocorreu. Ele abriu o livro e começou a ler.
Era uma noite quente, típica do Rio de Janeiro. As luzes da cidade escondiam a maior parte das estrelas, mas mesmo assim a noite era linda. O vento entrava pela janela do ônibus e batia no rosto de João, refrescando o calor, mudando de intensidade de acordo com a velocidade que o motorista empregava. O ônibus fazia uma curva um pouco mais acentuada quando...
Uma floresta úmida se erguia no horizonte. Não era uma floresta qualquer, pois se via, mesmo no breu da noite, a luz característica de um campo concentrado de magia, que pairava sobre a copa das árvores. Muitas pessoas já haviam abandonado a caravana, restando um punhado de não mais que vinte viajantes para atravessar a floresta. Apesar da hora eles resolveram passar, afinal a magia não tem hora para se tornar assustadora e perigosa. O quanto antes eles se afastassem da floresta, melhor.
Carroças e carruagens atravessavam a larga trilha o mais rápido que podiam, haviam feito quase metade do trajeto sem problemas e queriam que a viagem terminasse assim. Algo passava desapercebido de todos, algo perigoso, um inimigo com o qual é preciso lutar com todas as forças.
Quando as pessoas perceberam já podia ser tarde demais. Um buraco havia sido aberto no campo mágico. Isso acarreta em um efeito muito sério: implosão. Um campo mágico não pode ser aberto, pois todas as suas partículas dependem entre si. Se acaso o campo tiver uma falha, todas as outras partículas tentam conseguir mais energia para suprir o buraco deixado por esta falha. Como a magia está em todo o lugar, pelo buraco entra toda a energia que se encontrava à volta e foi absorvida pelo campo mágico. Quando a falha era grande como aquela à pressão pode ser tão grande que faria toda a floresta se esmagar com o peso da magia e dobrar-se dentro de si mesma, explodindo em milhares de partículas mágicas e criando um novo campo no lugar do antigo. Isso recicla a magia, mas não é muito bom para a saúde do lugar nem dos que nele estiverem, digamos assim. O menino que estava mais perto da falha se esforçava para não sair voando. As pessoas se desesperaram e estavam prestes a serem esmagadas pelo peso da magia quando...
A moça sentada ao lado de João o cutucou no ombro. Ela o olhava com um ar de reprovação.
- Fecha essa janela meu filho. Olha esse vendaval! Ta no mundo da lua?
- Que chuva! –Gritou outro passageiro subindo para o ônibus.- Deve ter sido o calor que vem fazendo, há dez minutos nem parecia que ia chover!
João fechou a janela e depois o livro, marcando a página. Tentou dormir sem pensar no que tinha acontecido... Não conseguiu.
No dia seguinte ele foi novamente para a aula com Kátia, que o recebeu feliz da vida. Ela olhava para ele como se tentasse ler seus pensamentos.
- E então, -disse ela-, leu o livro?
- Sim, no ônibus.
- Você gostou?
- Acho que sim. É que aconteceu alguma coisa diferente... Deixa pra lá, depois eu conto. Eu quero estudar.
E assim foram os dois aos estudos, Kátia com um sorriso de vanglória nos lábios. Mas ao contrário do que João falou ele quase não conseguiu estudar, pois só pensava no livro e em como ele havia se transportado para um mundo todo novo. Por isso a aula acabou bem mais cedo, antes das seis, em parte porque o trabalho de Kátia estava um pouco atrasado.
Na volta, dentro do ônibus, João começou a ler novamente o livro e, de repente...
Era o por do sol do dia seguinte. O menino não sabia como, mas havia fechado o buraco no campo mágico antes que todos fossem esmagados pela força que entrava por ele. Depois disso a caravana havia dado-lhe um lugar melhor na carruagem, um pouco mais alto. Ele nem mesmo queria aquela homenagem e acabou cedendo o lugar para uma senhora idosa e ficando no seu banco mais baixo. A caravana saía da floresta com grande felicidade e se dirigia para Ville Isabelle, uma cidade conhecida por seus bons bardos e sua ótima hospitalidade.
Ao chegar na cidade a caravana fez questão de que o garoto fosse levado ao rei que, ao ouvir sua história, prontamente o recebeu. Depois de terem banqueteado e conversado sobre o acontecido o rei disse que era a história mais incrível na qual um menino poderia entrar, pois muitos homens passavam a vida sem fazer metade do que ele havia feito em uma noite, salvando a vida de tantas pessoas. O menino foi condecorado e guiado para o quarto que passaria a noite, o dia seguinte seria de grande importância, pois o rei disse ao menino que ele teria um encontro mágico, um dia cheio e...
O tio de Kátia estava na porta do seu quarto.
- João! Já ta tarde. Olha, eu sei que elogiei você por estar lendo, mas já está tarde. Amanhã você vai ter que trabalhar e estudar de novo. É melhor você descansar.
No dia seguinte João acordou cedo como de costume e foi ajudar o tio de Kátia a abrir a loja e arrumar tudo. Ele ficou feliz quando, na hora do almoço, Kátia apareceu e fez a refeição com os dois. Mesmo que tenha sido para dizer que a aula ficaria adiada para o dia seguinte, sem falta.
Depois do almoço, enquanto descansava, João olhou para o livro e resolveu ler mais um pouco. Kátia vinha se despedir, pois...
Depois do almoço o menino foi levado ao grande salão real. No salão havia uma bela moça que o aguardava. Depois das apresentações feitas pelo rei o menino descobriu que a moça tratava-se de uma maga muito conhecida.
Eles conversaram abertamente sobre o ocorrido e ela teve certeza de que o menino tinha um grande potencial mágico. Houve uma festa com alegria e saudade quando a cidade soube que o menino partiria para treinar suas habilidades com a grande maga, mas voltaria com seu conhecimento para ajudar o povo. Eles partiram logo depois das festividades e a maga disse que levariam um dia para chegar em sua torre para que ela pudesse treiná-lo nas artes arcanas. Ele se encontrava feliz com os acontecimentos, esperando poder usar o conhecimento que ia receber a favor dos que, como ele no passado, não tiveram oportunidades. Além disso,...
João foi dormir feliz porque estava quase acabando o livro. O fato de não ter ido estudar aquele dia havia dado tempo para ele adiantar bastante a leitura. Ele estava ansioso pelo dia seguinte, para poder contar tudo o que havia passado para Kátia. Ele tinha certeza de que ela ficaria feliz. E tinha certeza de que queria fazer outros como ele no passado, sem conhecimento, ter a chance de vivenciar o que ele estava vivenciando.
No dia seguinte João, depois do trabalho, foi à casa de Kátia para eles estudarem...
No dia seguinte o menino, depois da viagem, chegou à torre da maga para que começassem a treinar...
E ele não parou mais. Com altos e baixos, perdendo e ganhando amigos e família, adquirindo conhecimento e realizando seu sonho de ajudar outros como ele. Porque há muitas formas de magia nesse mundo, mas nenhuma tão poderosa quanto a imaginação. Porque há muitas formas de se ajudar alguém nesse mundo, mas nenhuma tão eficaz quanto a doação gratuita de conhecimento. E dez anos depois, quando ele observava algumas crianças de rua na praça, você não saberia dizer se ele era um professor ou um mago.