Sonhos e Ilusões - Capítulo 01 - O Quarto

Dragon Quest

Sonhos e Ilusões

Capítulo 1: O Quarto

Não há ninguém no quarto. Os sons vespertinos da cidade invadem sutilmente o ambiente escuro, as luzes estão apagadas e os raios de um sol de fim de tarde preguiçoso são filtrados pela fresta da única janela do ambiente. A tarde está se indo, mas ainda não chegou o crepúsculo, estamos naquela hora onde o sol não possui mais forças para projetar sombras nos ambientes abertos, mas aqui, no quarto escuro, elas predominam sobre todas as coisas.

Poucas coisas estão à vista: uma velha cama sem espelho está apoiada num armário, tão degastada quanto ela. Uma das portas do ármario cai sobre o piso sujo do quarto, deixando a mostra umas três mudas de roupas e penduradas em cabides dois conjuntos verdes e encardidos que parecem uniformes. A parte de baixo do armário é aberta, e dois sapatos gastos dividem espaço com algumas caixas pequenas de trecos, fotos e lembranças de uma vida.

Na parede oposta ao armário, numa escuridão bem mais profunda, há um frigobar, antigo como seus companheiros de quarto e a julgar pelo barulho que faz, já no fim de sua vida útil. O frigobar está embaixo duma carcomida estante, onde ao mesmo tempo se apoía um fogão de duas bocas e uma televisão dessas bem pequenas. Seguindo a parede, encontramos no canto um tripé de vergalhões de aço, com vários ganchos onde estão penduradas umas quatro panelas e outros utensílios de cozinha. Já na parede onde está a porta, há um pequeno armário de cozinha, repintado de azul, sem um dos lados, o que faz a poeira da rua descansar sobre alguns pratos e talheres.

O quarto não é tão pequeno, mas o fato de que só é um cômodo servindo de sala, dormitório e cozinha torna-o apertado. A aparência degastada dos móveis e utênsilios intensificam a sensação de abandono. Apesar de não haver ninguém, o burburinho dos quartos vizinhos atravessam as paredes e criam a impressão de que este é só mais um quarto vazio numa enorme casa, onde diversas pessoas vivem como podem, convivendo com a falta de privacidade típica de qualquer prédio de apartamentos.

Falando do prédio, ele acompanha o que vemos no quarto. Velhos corredores, que reclamam há muito tempo uma repintura, deixam ver aqui e ali partes de uma antiga instalação elétrica. Há vazamentos em alguns andares, acúmulos de lixos nas escadas e um mal cheiro quase onipresente no local. Crianças sem preocupações correm livremente pelos seus corredores enquanto seus pais se ocupam em minorar seu sofrimento. Aqui moram aqueles que as estatísticas chamam de subpobres, os mais pobres entre os pobres, acima somente dos mendigos e miseráveis que perambulam pelas ruas, que não possuem a única riqueza que os moradores deste prédio tem: Um teto sobre suas cabeças.

O prédio é próximo ao cais do porto e nesta tarde as gaivotas dividem espaço com as andorinhas na cobertura. A sinfonia de gritos e arrulhos contrasta com a sensação de paz que o pôr-do-sol no oceano transmite aos seus espectadores. As pessoas já começam a mostrar a vontade de terminar o dia, de irem para casa para poderem dormir e voltarem no outro dia para seus afazeres.

As ruas em volta do porto são pequenas, as casas são compridas e com fachadas estreitas, que fronteiam diretamente a rua. Não há pátios, não há quintais. Nos prédios em volta há diversos varais com roupas secando. Muitas lavadeiras trazem suas trouxas para lavar em casa, somente isso explica a quantidade tão grande de roupa em alguns varais.

A cidade depende muito do porto. Todas as ruas desemborcam no cais e em todos os dias o movimento dos barcos e navios é intenso. Há muita pobreza aqui, justamente no lugar onde são geradas as riquezas que sustentam os que controlam os recursos, mas isto é outra parte da história.

Junto com a pobreza temos a violência, que grassa nas ruas ao redor, convivendo com a prostituição e o consumo de drogas. É esta violência que torna a vida neste local ainda mais miserável. Tão miserável que os habitantes do prédio passam a não mais se importar mais com ela, toleram sua existência como toleram que o sol é quente e a noite é escura e nem ligam para o fato de alguém tentar descaradamente arrombar um dos apartamentos, utilizando um pé-de-cabra, fazendo um barulho tal que só a certeza da impunidade poderia deixar acontecer.

São dois os ladrões, a porta é frágil, já ressecada pela velhice e muito fácil de ser arrombada. Quando ela cede, uma réstia de luz entra no quarto, iluminando o outro lado da cama. O dia já está na escuridão do crespúsculo, mas os ladrões ainda podem ver os poucos pertences que existem no quarto.

— Não tem nada de valor aqui... Perdemos nosso tempo!

— Perdemos nada! Eu consigo uns 20 paus nesta tv, e mais 30 neste fogãozinho.

— Não sei não... Essas coisas não prestam mais. Ninguém dá nada por elas.

— Não vou sair com as mãos abanando, me ajuda aqui!

Eles atravessam o quarto e não prestam atenção no fato das luzes já fracas do crespúculo terem sumido por completo. O corredor, que estava escuro, não é mais visto de dentro do quarto, e repentinamente, o ambiente mergulha em uma escuridão tão completa que assusta os ladrões, que passam a tatear em vão as paredes em busca de um interruptor.

— Que é isso? Ficou um breu aqui! Acende a luz!

— Não tô achando a droga da luz... Cadê? Cadê? Hã? O quê é isso?!?

Uma coisa fluida, uma espécie de névoa gelada envolve o ambiente do quarto. Além da névoa, vindo de lugar nenhum, um odor adocicado penetra nas narinas dos ladrões, causando uma náusea cambaleante.

— DROGA! O QUE É ISSO!?!

— VAMOS SAIR DAQUI!

Eles correm na direção de onde eles pensam que está a porta. Mas acabam batendo juntos na parede do apartamento. O desespero da fuga é tão grande que eles começam a esmurrar as paredes, procurando sem cessar uma saída daquela escuridão.

— 'Tamos presos AQUI!

— Tinha uma janela aqui... Sei que tinha!

Eles procuram agora a janela. Estranhamente, é como se não existisse mais nada no quarto, eles correm de um lado para o outro e não esbarram em nada. A cama, o armário, a estante e tudo mais sumiram por completo, só há as paredes, sem porta ou janela, o ar frio e o cheiro doce.

— PORRA! EU QUERO SAIR DAQUI!

— 'Tamos ferrados...

— FERRADOS NADA! EU VOU SAIR DAQUI, NEM QUE SEJA MORTO...!

Seu presságio se cumpriu, primeiro uma fraca luminosidade vermelha apareceu sob seus pés, uma sensação estranha de calor, um calor que doía, que causava angústia. Mas a sensação não durou muito, foi logo substituída por outra bem mais intensa, a sensação de estar sendo queimado por dentro e por fim uma explosão de fogo que consumiu totalmente seu corpo. O outro, aterrorizado por esta visão, deixou-se cair de joelhos no chão, certo que seria o próximo.

Ao se ajoelhar, o ladrão mal notou que o piso do quarto havia mudado. Seu medo lhe paralisava tanto que não via as paredes derretendo na mesma luminosidade vermelha. Fora do quarto agora só se via uma imensa área flamejante, uma espécie de inferno. E este deveria ser mesmo o lar dos condenados, pois ao longe o ladrão via imensas chamas queimando milhares de pessoas, almas em agonia. Um lampejo de percepção passou pelo seu cérebro, ele deveria ter morrido, e como não foi "flor que se cheire", agora iria sofrer na dor eterna.

O ladrão estava pensando nisso quando uma imensa forma surgiu de dentro de uma das chamas do local, um demônio na forma de um imenso inseto, um louva-a-deus monstruoso, dotado de lâminas brilhantes como aço, tingidas de sangue e dor, rubro como uma brasa, e com olhos latejantes de ódio e crueldade. Ele foi até o ladrão e parecia não está contente com o que via.

— Estas coisas por aqui?!? O demônio-inseto falou, sua voz mais parecia o crepitar das chamas de um incêndio medonho. — O mestre não pode saber disso!!

O ladrão não atinava com o que poderia estar acontecendo, mas rapidamente foi envolvido por uma espécie de rede que saiu do corpo do demônio e não viu mais nada a partir daí. Dentro da sua prisão de teia, só podia perceber que estava se deslocando com uma velocidade inimaginável. Seu medo e horror eram tanto que sua mente não resistiu e desmaiou no torpor do esquecimento.

Lenta, muito lentamente o ar frio da noite foi tomando conta do corpo aquecido pelos baixios infernais. A sensação de frio trouxe o ladrão de volta à consciência e percebeu que voltara ao seu mundo. Estava no meio da rua, sem roupa, e bem longe do prédio que tentara arrombar. Sua mente estava desvairada, seus pensamentos não possuíam mais nenhum nexo ou ordem, só conseguiu gritar bem alto e saí em disparada, enlouquecido pelas imagens que viu.

Ninguém estava mais na rua àquela hora e ninguém conseguiria depois dizer o que aconteceu com o ladrão. Fora alguns gatos que estavam de passagem por ali, nenhuma outra alma viu o condenado sumir nas ruas. Elas já estavam escuras, ninguém tinha coragem de enfrentá-las à noite, assim nada pertubava a tranquilidade dos prédio vizinhos. Nem no prédio de apartamentos os gritos frenéticos do louco chegaram, muito menos no quarto, que apesar de ter sido arrombado, ainda estava intacto, exatamente como seu dono havia-o deixado pela manhã. O ar frio da noite agora invadia pela porta escancarada, causando assobios na madeira velha, formando formas fantasmagóricas com as cortinas.

Um homem saí de um dos quartos no mesmo corredor. Seu passo é firme, decidido, não parece temer as sombras da noite recém-chegada. Seu destino é o quarto arrombado, ele pára na porta e olha para dentro do cubículo, nos seus olhos uma expressão de calma, como se estivesse fazendo uma tarefa de rotina. Ele toca nas partes forçadas da porta, que consertam-se imediatamente. Com um movimento suave, tranca novamente o quarto, faz uma conferência adicional e por fim faz o caminho de volta. "Definitivamente", ele pensa, "não há ninguém no quarto".

Próximo capítulo -> Vicente