A Ilha

Havia no litoral de um país uma aldeia de pescadores. Eram poucos, dificilmente chegavam a duas centenas. Um tanto trabalhava duramente na lavoura, plantavam mandioca e banana. Outra parte trazia do mar a maior parte do sustento – crustáceos, peixes. Como na parte maior do país não há energia eletricidade na aldeia, o único gerador a diesel não funciona desde o início da guerra civil anos atrás.

A guerra deixou duas marcas severas na aldeia, além das inúmeras feridas abertas em todo o país: na última década nenhum visitante passara por ela e havia apenas um menino na aldeia.

Bem no começo da guerra, conta o velho pescador – o homem mais velho da aldeia – quando os lados da peleja ainda eram claros e dicotômicos e se lembrava porque lutavam, um comboio de guerrilheiros chegou a cidade no meio da noite. O Velho Pescador diz que foi a noite mais escura de toda sua vida, não havia uma estrela sequer e a lua além de nova se escondia por trás das nuvens pesadas de chuva. Vieram em três caminhões repletos de homens armados, houve terror, tiros e fogo nas casas simples. Uma a uma as casas foram violadas, os homens que se opuseram eram mortos sistematicamente, as mulheres espancadas, as virgens estupradas e os meninos – mesmo os de berço – iam sendo arrastados para os caminhões, os que tentavam se esconder eram ameaçados por fuzis com a ponta vermelha dos disparos, muitos foram queimados no rosto. Foi a noite mais triste da aldeia.

Quando o comboio partiu só havia na cidade velhos, mulheres, corpos para serem enterrados e ele – ainda misturado a placenta a beira do mar, quieto. Ninguém na aldeia sabia de quem era aquele menino. O Velho Pescador viu seu pai reunir a aldeia e decidir que cuidariam dele, deram seu nome, Menino.

O Menino cresceu, tem doze anos, dorme onde pode, trabalha onde precisam dele, come o que lhe dão. Nunca reclama o Menino. Na Aldeia muitos têm medo do Menino. As velhas fiandeiras, que costuram as redes dos pescadores e fofocam todo o dia, dizem que foi um capeta que o protegeu, mas para isso tomaram uma parte da alma do Menino, por isso ele não fala. O Menino sabe falar, só não fala.

Todo final de tarde se pode ver o Menino caminhar pela praia de cascalho, por entre os barcos encalhados dos pescadores, sempre carregando grandes pedaços de madeira. Ele sobe na pedra mais alta e olha para dentro do mar. O Menino tem a pele escura dos membros da tribo, mas seus olhos são azuis como o céu. O Menino junta todos os pedaços de madeira longe do mar, para que não apodreçam.

Do alto daquela pedra, quando não há ninguém por perto, o Menino fala, conversa sobre A Ilha. Todos na Aldeia o viam conversar com o vento, nunca ouviam sua voz e a voz do Menino era melodiosa.

Algumas vezes o Velho Pescador foi até perto da Pedra do Menino e perguntou pra que ele queria tanta madeira. O Menino só apontava para dentro do mar. Foram tantos anos indo e vindo, o menino juntava os poucos trocados que ganhava para comprar pregos e começou a fazer seu barco. Pouco a pouco os moradores da Aldeia começaram a perguntar ao Menino para que ele fazia um barco, o Menino simplesmente apontava o olhar mar adentro.

Os meses iam passando e a barqueta do Menino ia tomando forma e mais pessoas o perguntavam e mais vezes ele olhava mar adentro. O Menino continuava a conversar do alto de sua pedra. O Velho Pescador começou a sentar com ele, fazia-se silêncio, mas com o tempo o Menino passou a ignorar o Velho Pescador ali, como se fosse mais uma pedra da paisagem. Não conversavam nunca, o Velho Pescador apenas ouvia as histórias que o Menino contava da Ilha. A Ilha ficava além do que os olhos castanhos podiam ver, mas o Menino tinha olhos azuis e via a Ilha, lá não havia guerra e todas as Aldeias se encontravam ao fim dos dias para trocar os excedentes. Na Ilha existiam aldeias de brancos, de negros, aldeias misturadas.

O Velho Pescador ouvia cada história da Ilha que só o Menino podia ver porque tinha olhos azuis e contava para os outros da Aldeia. Um a um os moradores da Aldeia começaram a se reunir já tarde da noite, quando o Menino se recolhia para ouvir o que o Velho Pescador tinha a dizer.

O Menino conversava com o vento, e o Velho Pescador, parado como uma pedra ouvia. Na Ilha existiam outros meninos, grandes e pequenos, com pele e olhos de todas as cores. E todos brincavam juntos, e faziam barquetas e pipas que qualquer outro menino podia usar. As fiandeiras das aldeias da Ilha, passavam os dias conversando, mas nunca falavam mal de ninguém.

Os dias iam passando e mais pessoas se reuniam para ouvir o Velho Pescador contar as histórias da Ilha que o Menino via.

Na Ilha havia um lugar especial, onde os mais velhos ensinavam os mais novos como pescar, como escrever e os mais novos podiam perguntar sobre qualquer coisa que os mais velhos os ajudariam a descobrir. Na Ilha as pessoas eram felizes, todos tinham comida, mesmo que pouca e nunca se brigava ou se falava pelas costas.

As pessoas da Aldeia começaram a imitar as pessoas da Ilha, os pescadores começaram dividir a comida com os agricultores, e no final todos comiam mais. E pouco a pouco a Aldeia toda queria ir para a Ilha.

O Menino finalmente terminou a barqueta, juntou as poucas coisas que tinha e preparou-se para entrar para o mar, para ir a Ilha. O Velho Pescador o ouviu conversar com o vento, dizia que era estava pronto para ir para a Ilha. E que assim que o Sol surgisse no céu iria por a barqueta na água e ainda no fim do mesmo dia estaria abraçando os seus amigos da Ilha. Sorria de orelha a orelha, dormiu junto ao mar.

Era cedo da manhã quando o menino acordou e se viu cercado pelos moradores da aldeia. Estavam lá o Velho Pescador, as fiandeiras, as moças bonitas e suas mães, os pescadores ao lado dos agricultores, toda a aldeia se reuniu na praia. O Velho Pescador pediu para que o Menino os guiasse até a Ilha, mas o Menino apenas sorriu.

“Todos vocês querem ir para a Ilha?” – falou o menino, duas fiandeiras pediram benção aos céus. Muitos acenaram positivamente, um cochicho generalizado desafiava o sorriso do menino.

O Velho Pescador fez com que todos se calassem e pediu mais uma vez para o Menino os guiassem para aquele lugar tão maravilhoso, aquela Ilha de pessoas boas. O Menino sorriu: “Se todos vocês querem viver na Ilha, porque não a fazem aqui?” – muitos se espantaram, muitos zombavam da idéia. Mas o Menino falou baixinho, e ainda assim todos ouviram.

“A Ilha só existe na minha cabeça, só meus olhos podem ver. Se todos vocês vissem a Ilha nossa Aldeia seria diferente”. O Menino navegou na barqueta, por dez anos não voltou a Aldeia.

Nesse tempo o Velho Pescador morreu, e vários meninos e meninas nasceram, iam a escola e todos dividiam a terra, a comida; muitos se ajudavam e a Aldeia crescia. O Menino, agora homem comprou um barco e foi de férias a uma ilha. Lá viu uma multidão se juntando na areia para ouvir uma garota que falava da Aldeia. Era um lugar maravilhoso e ela construíra uma barqueta para navegar até a Aldeia e todos queriam que ela os guiasse. O Menino sorriu, sabia que a Aldeia existia apenas na cabeça da Garota, mas se aquelas pessoas quisessem poderiam transformar a Ilha.