O menino e o pássaro

Havia, certa vez, num lugar inominável e numa época qualquer, um moço cuja única companhia era a de um pássaro muito belo. O moço ficara só quando criança, e arranjara o pássaro para viver consigo resgatando-o do meio do bosque, ferido na asa e incapaz de voar. O pássaro, também criança, receoso inicialmente, não tardou render-se aos cuidados carinhosos de seu amo. Curou-se a asa, mas pássaro e menino estavam apegados um ao outro de modo que não se puderam separar. Passaram a viver pois juntos, o pássaro numa enorme gaiola que o menino construíra como casa.

Era permitido ao pássaro deixar a gaiola, naturalmente. O menino lhe tinha muita estima, não suportaria fazê-lo sofrer. O pássaro, por sua vez, apreciava em demasia o menino, e para o deixar alegre, voava somente quando em sua companhia, sem ir aonde os olhos desse não alcançassem. Se o menino estava triste, o pássaro cantava para alegrá-lo. Se o pássaro não estivesse contente, o menino saía com ele, brincava, fazia-o cantar outra vez.

Assim passaram-se anos. O jovem homem saía cedo e o grande pássaro azulado o aguardava. O jovem, percebendo a infelicidade do pássaro por sua ausência, decidiu, não sem pesar, soltá-lo para sempre. "Eu o liberto", dizia o moço, "liberto de mim, da gaiola que construí, da necessidade de ti para meu riso, liberto tuas asas para irem além de onde enxergo e teu canto a lugares onde me será inaudível". O pássaro não podia compreender de todo aquelas palavras, pois não conhecia a vida de que o moço falava. Sua vida era estar com ele e era o bastante.

O moço não deu ouvidos à indiferença do pássaro. Pegou a gaiola com as duas mãos e carregou-a, com a precaução de quem carrega um filho, até o bosque onde encontrara o pássaro na infância. Andou o mais longe que pôde da própria casa. Entre as altas árvores, abriu a gaiola e tomou o pássaro nas mãos; abraçou-o, beijou-o, olhou fixamente a seus olhos e, derramando lágrimas, disse: "és um pássaro e deves ser livre. Não posso eu ser egoísta a ponto de o manter comigo, quando sequer posso estar contigo o suficiente. Tornaste-me feliz desde que te encontrei e ainda alegras minha vida com tua presença majestosa e teu canto singular. Contudo, é chegada a hora de nos separarmos, bem sei, e não pense que isso não me causa dor. É para mim como se amputasse um membro, é um sofrimento pelo que ainda não passara, uma vez que perdi os meus recém-nascido e aprendi a ser só. Tu me ensinaste o amor, tu és a criatura que mais significa minha existência. E por essas coisas é que te libertarei. Para que voes e viva, pássaro, viva como jamais seria possível junto a mim. Vá, vá, não te vou esquecer, é preciso que vá agora".

O pássaro sabia o que o moço estava dizendo. Permaneceu parado, um tanto surpreso, sem saber ao certo o que devia fazer. O jovem a quem mais amava o rejeitava. Era incapaz de ver que o pássaro seria mais feliz a seu lado. Porém, amava ele demais o jovem para sentir raiva ou negar-lhe o pedido. Entendia, assim, que devia ir, era chegada a hora, a que mais temera talvez, desde o início. Assistiu o moço virar as costas carregando a gaiola de volta para casa.

Escureceu no bosque e o pássaro ainda não saíra de onde estava. Barulhos estranhos quebravam a calma da noite. O pássaro não conhecia a escuridão nem os sons selvagens. A primeira noite foi quase terrível; não pôde dormir, cada farfalhar ínfimo ao redor era um sobressalto.

Durante o dia, sentindo-se mais seguro, o pássaro dormiu. No tempo seguinte, foi descobrindo o bosque, que era demasiado grande, mas de que passou a não ter medo, ao menos não com tamanha intensidade. Passou a voar com mais freqüência. Conheceu alguns animais: a coruja, quieta; os ratos, confusos; a cobra, irônica e perigosa. A cobra certamente era o animal mais vil de que já tivera notícias. Escapava dela por saber voar e por sua esperteza. Conversara com a cobra e de todos os jeitos ela o quis bem perto, mas ele safava-se inventando empecilhos. Achava interessante, contudo, conhecer o comportamento da cobra. Vira vários ratos serem devorados por ela. Vira semelhantes seus também o serem. Quando possível, alertava-os.

Passaram-se cinco dias, e parecia um tempo imenso. O pássaro não podia suportar mais a ausência do moço. Voou, então, quase instintivamente, de volta para casa, sabendo que não era o que devia fazer. Chegando lá, viu a gaiola intacta. Entrou nela e aguardou. A primeira coisa que o moço fez ao chegar em casa foi ir até a gaiola. Sentia falta do pássaro e olhar a gaiola por alguns instantes era uma forma de lembrar-se de seu maior amigo.

Não pôde esconder o sorriso ao que encontrou. Embora contente com o inesperado, ralhou com o pássaro, afinal de contas, o combinado era que se separassem e vivessem as próprias vidas. Aquela noite o pássaro ficaria. Mas pela manhã haveria de levá-lo de volta.

De manhã bem cedo, antes de ir trabalhar, o jovem pegou a gaiola com o amigo e disse: "é para seu bem, meu caro. Se voltares não aprenderemos a viver um sem o outro, e é isso que quero, ensiná-lo a viver por si mesmo. Precisamos nos aproximar de nossas espécies. Não pertencemos ao mesmo mundo, tu bem sabes". Cobriu a gaiola com um pano escuro a fim de que o pássaro não pudesse ver aonde era levado e, pensava o moço, não conseguisse retornar a casa.

Mais uma vez o moço chorou, pediu com fervor ao pássaro que o deixasse ir embora e não o seguisse, e saiu correndo. Mais noites e dias se passaram, o pássaro foi conhecendo mais sobre o bosque, os de sua espécie e os de outras espécies. Dessa vez, conseguiu distrair-se por tempo maior. Achou até ser capaz de viver só. Entretanto, vinha-lhe à lembrança o menino. Afastava-o, afastava para não sofrer. Então o pássaro adoeceu. Os da sua espécie trataram-no, dispensaram os cuidados necessários a sua reabilitação. Quando estava bem, agradeceu aos amigos e disse que precisava partir. Sem entenderem aonde ia, os amigos desejaram-lhe sorte.

Viajou por longo tempo até encontrar de novo a casa. Contudo, ao chegar, deparou-se com o lugar vazio: não havia nada nem ninguém na casa perto do bosque, a mesma que fora sua um dia. Chorou e teve mágoa do menino que o fazia sofrer tanto. A mágoa arrefeceu logo porque o amor que sentia era grande demais; perdoava o menino sem saber de suas razões. Encontrá-lo-ia e, com essa certeza, saiu sem rumo em busca de seu amigo.

Dias se passaram até que o pássaro encontrou o moço em outra aldeia, dirigindo-se à nova casa. Esperou que entrasse e, sutilmente, pulou uma das janelas. Não foi nem visto nem ouvido. A gaiola, qual não foi a surpresa do pássaro, permanecia no canto da sala, sobre um pilar de gesso, tão importante quanto antes. O jovem estava parado a fitá-la, como sempre fizera. Voou o pássaro e colocou-se sobre a gaiola. O menino sorriu, incrédulo: "amigo, como me encontraste? Tomei as devidas precauções para não mais atrapalhar tua vida. E estás aqui novamente". "Estou onde senti que deveria estar, caro amigo", retorquiu o pássaro. "Não, belo pássaro, deverias estar voando por aí porque és uma criatura feita para viver livre, não dentro de uma gaiola, como eu fiz contigo. Sabes porque eu expliquei e porque és inteligente o suficiente para compreender por ti mesmo, que eu o deixei porque foi preciso, para que nós seguíssemos em frente".

"Eu o sei, mas vejo as coisas de modo um pouco diferente. Salvaste minha vida quando eu era filhote e passamos a viver juntos. Eu já sabia voar quando me fizeste a gaiola, e já estava recuperado. Passei um tempo fora dela em condições de fugir, se quisesse, mas não o quisera. Mesmo quando engaiolado, eu sabia que era livre. Tu me deixarias voar para longe e não mais voltar, se eu assim desejasse. Entretanto, ficarias entristecido. Tive vontade de voar para bem longe, é certo; mas não o fiz, não por falta de coragem, não por falta de desejo, apenas porque as tuas lágrimas arderiam dentro de mim corroendo-me como um ácido e eu suportaria menos que tu a isso. Então eu permaneci perto de ti, sempre onde podias ver. Não era uma obrigação, eu sentia que precisava fazer isso, então estava certo. Jamais, meu amigo, fizeste de mim um ser diferente do que eu devia ser. Ao contrário, justamente porque existes, acabei por tornar-me quem sou.

Porém, esta é a parte deprimente, quiseste tu desfazer o que estava feito. Eu compreendo tuas boas intenções mas foste ingênuo, porquanto seria impossível quebrar os laços que nos unem simplesmente por manter-me longe. Obrigaste-me a ser livre e voar para onde não queria, e isto não é deixar-me livre, na verdade. Senti-me encurralado por não poder fazer o que queria realmente. Contudo, isso é importante e portanto escute com atenção, contudo eu o faço de bom grado caso seja o que desejas, caso minha presença vá atrapalhar tua vida, caso minha existência aqui o impeça de viver plenamente. Digo-te que viveria plenamente se pudesse simplesmente estar aqui e voar um pouco de vez em quando, nos momentos em que assim quisesse, enquanto estás trabalhando ou junto aos teus. E voltaria para minha gaiola novamente todos os dias. Não viveria plenamente assim se isso fosse motivo para frustrar a tua vida. Por isso é que preciso de tua resposta, amigo".

"Pensava eu que a vida para ti seria melhor no bosque, pássaro. Olho para a gaiola todos os dias porque sinto tua falta aqui. Teu canto acalmava-me e revigorava, tua cor alegrava-me e tua beleza enchia meus olhos. Eras uma doce companhia da qual lembrei a cada dia em que estivemos separados. É estranho que tu, que nada tem em comum com a minha espécie, sejas para mim a família que não tive. Pensava eu que assim não podia ser. Eu não sabia que não podia controlar o que se sente, pássaro".

"Não, não se pode. E digo-te ainda mais: um pássaro engaiolado desaprende a viver no bosque. Já diziam os especialistas que criam aves em cativeiro. A sobrevivência fora dele é penosa. Foi por isso que eu esperei mais dias para voltar dessa vez. Quis ter certeza de que voltava não pelo costume de viver nesse ambiente, não pelo medo do outro, novo, mas porque aqui era meu lar. Descobri que consigo viver no bosque, já salvei meus amigos das garras de cobras cruéis, e salvei minha pele inúmeras vezes delas e de pássaros predadores. Confesso que a vida no bosque é encantadora e gosto bastante dela. Só que gosto ainda mais de viver aqui".

Jovem humano e pássaro olharam-se calados por alguns instantes. Era em silêncio que os dois mais se compreendiam. E o silêncio durou longo tempo. Até que o pássaro entrou na gaiola e pôs-se a cantar, enquanto o menino ria, cantarolando junto e dançando. Os dias se seguiram, o pássaro e o jovem indo e vindo. Os dois perceberam que, uma vez que laços fortes são criados, não se consegue dissolvê-los.

Clarissa de Baumont
Enviado por Clarissa de Baumont em 24/12/2008
Reeditado em 05/03/2009
Código do texto: T1351224
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