Introdução a Raleht, o Plebeu (in: Raleht, o plebeu)
Há muitos séculos, no tempo em que quase não havia fome, quase não havia guerra, passou-se despercebida a saga de um homem chamado Raleht, que morava em um feudo distante, de um reino distante, de uma ilha distante.
Tanto ninguém se importava com Raleht que sua existência quase foi esquecida pela História, se não fosse por mim, árduo pesquisador, que se aprofundou nas mais preciosas informações e relatos do passado, para resgatar a vida e o percurso deste homem, que nasceu, viveu, e morreu no mesmo feudo, e nunca conheceu outro lugar, nem nunca foi alguém importante. Por isso, em memória deste ser insignificante que foi coberto pela poeira do tempo, dou-lhe ao menos a dignidade de resgatar sua passagem neste mundo.
Antes de tudo, sinto que é meu dever advertir aos leitores que Raleht não foi um herói, nunca fez nada inteligente, não casou com a mulher mais bonita do reino, e é dispensável dizer que não morreu feliz. Raleht foi o mais comum dos homens comuns, e não aprendeu a ser gente. Porém, a quem interessar conhecer a tragédia - ou a comédia -, de vida que levou este camponês, é convidado, primeiramente, a remeter-se ao seu tempo e ao seu meio, para que se compreenda sem preconceitos sua desprezível jornada.
Existia um reino, portanto, muito rico e muito belo, onde se ergueu o castelo de um conde. Locke era o seu nome, e ele possuía muitas terras em nome do santo rei, muitos animais, e muitas riquezas amontoadas; seus filhos viviam sempre sorridentes e viajavam para muitos lugares e compravam muitas coisas; bebiam e comiam de tudo. Em uma das terras do conde Locke, administrava um de seus feudos um lorde chamado Noblerrier, que cuidava de muitos camponeses, e de suas colheitas também. O lorde desfrutava dos campos e dos animais, vestia roupas finas, passava os fins-de-semana nos pátios floridos do conde, e fortalecia os seus filhos com leite de vaca e com as primícias da laranja e do trigo.
Raleht Peartreex era um humilde camponês, que nasceu às margens do córrego de Eastgoats e cresceu sobre as campinas de um dos feudos de Noblerrier. Apaixonou-se por uma também humilde camponesa, que tinha quase todos os dentes, seus cabelos nem fediam tanto, e casou-se com ela, Mary Rachel Hannah O’Silver.
Parecia que os dois gostavam de passar fome, porque tiveram nove empiolhados e queridos filhos. A primeira chama-se Mary Alice, a segunda, Catarina Juliana, e nem se passou um ano e nasceu John. No ano seguinte uma seca assolou a safra de milho e as gêmeas nasceram tão mirradas que resolveram dar-lhes os nomes de Manjuba e Girina. Na estação seguinte nasceu Peter, o vesgo. Depois, quando nasceu mais um menino decidiram fazê-lo mais importante ainda que no nome e batizaram-no Noblerrierington, e à menina que veio na colheita do meio do ano chamaram Condelocka. Em seguida, engravidou novamente, mas após uns meses, abortou. E, por último, nasceu a caçula da família, que por falta de nome foi chamada Nê. Quando esta nasceu, o lorde Noblerrier presenteou a família com uma cabra, que por acaso não dava leite e era estéril, mas que passaram a criar como de estimação, que cresceu junto com um cachorro que já criavam, que se chamava Cachorro mesmo.
A Raleht foi dado o privilégio de viver no feudo do conde, nas terras do lorde, usando-a para plantar milho, trigo e arroz. Também criava alguns porcos e galinhas. Sua esposa conseguira plantar uma horta no quintal, onde cultivava tomate e repolho, o prato do dia de todos os dias da casa, casa esta que tinha um único cômodo: a sala; então sua casa não passava de uma sala modesta com telhado de madeira, de forro de palha e couro de boi.
É uma pena que, quando comecei a testemunhar no passado o cotidiano de Raleht, meu tempo de pesquisas nos arquivos da biblioteca municipal se esgotara, portanto escreveria agora mais sobre Raleht, o plebeu, mas o dia se declina nas planícies do reino e deixo para a próxima vez as aventuras desse camponês, ficando a introdução como um prenúncio do que há de acontecer.
Antes de dormir, Raleht ouve de longe os cantares do menestrel, tocando sua cítara, acompanhado do seu pajem com seu tambor, que anunciam um teatro que viajava pelo norte da ilha e passaria uma temporada pelas vilas do centro da cidadela do feudo do lorde:
- Achegai-vos todos com muita atenção, amanhã é dia de diversão. Vede quão bom é o vosso rei, melhor do que ele não encontrei; ele tudo vos dá todos os dias, e também provê paz e alegria. O teatro é belo e só faz sorrir. Não faltai, que ele vem aqui. Vinde todos, sois convidados: vilões, servos, freis, casados.
As crianças se amontoam nas janelas para vê-los passar, e logo que desaparecem pelas campinas e não se ouve mais seu cântico, fitam um pouco de tempo o pôr-do-sol e voltam-se para suas camas. Raleht olha seus filhos se espremerem no tapete de lã, e cochila sorrindo, orgulhoso, imaginando que não pode existir época melhor do que essa. E dorme. Durma, Raleht Peartreex, que amanhã é mais um dia de trabalho. Descanse, que sua vida não se repetirá pela história, raro plebeu de meus estudos.