A Morte do Caipora

Ontem eu estava em minha casa quando a porteira se abriu, por ela passou algo com a força de um rio. A primeira vista não soube o que era, mas quando entrecerrei os olhos e vi que a poeira baixava pude ver aquele estouro de boiada. Lá de longe vinha um vaqueiro com seu chicote em punho cantando modas de roça para alegrar os outros e dar ritmo ao passo dos bois. Veio feito raio, serpenteando entre os animais que pareciam indomáveis, mas perante tão bravo peão, eles se comportavam como novilhos frente seus pais. Antes de entrar na cocheira ele vinha falar comigo e perguntar sobre a família e sobre as chuvas que por vezes caiam tão poucas que nem sequer se ouviam as gotas batendo no telhado de barro com um ou outro cacto dando uma quebra nas cores tão uniformes.

Sempre as 6:00 ele vinha tangendo os bois juntamente com outros 2 peões, o mais valente se chamava Pedro, os outros dois eram Tião, filho de Pedro e Tomé, um amigo de longas datas e que veio de outra fazendo cujo dono havia morrido de forma um pouco misteriosa, dizem as lendas que ele falou mal do Caipora, o desdenhou e no outro dia acordou todo pintado de vermelho com seu próprio sangue sobre um formigueiro. Esse caso repercutiu de tal forma que sua esposa fugiu para a casa de amigos na capital que haviam oferecido pousada, juntamente com seus filhos mais novos, os mais velhos se embrenharam na mata querendo matar o tal do Caipora e nunca mais foram vistos. Não sei se é lenda ou não, mas isso já ocorreu há uns 5 anos e desde então nenhum deles nunca mais apareceu. Dizem que mataram Filho da Mata, outros dizem que ele se aquietou, mas de fato ninguém sabe o que ocorreu.

À tardinha depois de feitos os afazeres ,todos nós, juntamente com a patroa e meus filhos nos juntávamos com eles para comermos e falar sobre os causos. Um desses dias falávamos justamente sobre o caso de Coronel Ezequiel, aquele cujo sangue verteu pelas mãos do Caipora. Muitos se mostraram temerários sobre esse assunto, a mulher logo adentrou dentro da casa com o caçula, o mais velho ficou conosco ouvindo tudo, certas horas com certo desdém, outras horas tendo certo medo, mas disfarçando com uns certos olhares de como quem diz "não tenho por que ter medo disto, deve ser apenas uma lenda para os bobos para correr". Pedro sim que falava com desdém dizendo que se ela fosse valente que o encontrasse no sol poente frente ao batente de sua casa, pois seu peito fervia como brasa. Depois de falar deu uma risada de deboche. Todos o olharam com certo espanto sem saber se ele falava sério ou se ele estava apenas brincando, o alertaram que o Caipora anda muito arredio, vendo que enegreceram os rios e derrubaram as árvores, e qualquer um que o desafiar tem que ser muito macho por que sabe que o túmulo já o espera.

Com o passar da noite fomos mudando de conversa, abrimos uma garrafa de pinga e quando se menos esperava se ouviu uma estridente risada que vinha de dentro da mata, que ficava perto da casa, e essa risada seguiu-se de palavras de alarde dizendo para que Pedro se preparasse que o Caipora não é de agüentar desaforo e que ele se despedisse de seus entes, e que sem choro se preparasse, porquê quando menos esperar o Caipora estará a o observar e seu coro arrancará. Depois destas palavras ditas de forma ameaçadora minha espinha gelou, Pedro com seu jeito valente e bravio pegou seu revolver e da casa saiu disparando em direção a mata aceitando o desafio e dizendo que não tem medo daquilo que ele nunca viu. Seu filho temendo pelo pai o chamou para que voltasse para dentro da casa temendo que naquela noite seu pai fosse a caça. Eu sai com uma espingarda armada e chamei Pedro para que regressasse. As ávores cada vez mais se mexiam, se via entre as plantas altas madeixas vermelhas que a lua incendiava. Vendo esta flama que sua vista avistava deu 3 tiros que na madeira rangeram e o Caipora se atava a rir e a gritar mostrando que Pedro ele queria provocar.

Tentei trazer Pedro para dentro de casa novamente, mas fui empurrado, ele disse que o coronel que o Caipora matara era na verdade pai dele, fruto de um caso com uma escrava e que agora era a hora de ele se vingar, pediu com olhos suplicantes para eu o deixar. Entrei em meu lar, deixei com ele minha espingarda e fui com minha mulher rezar. Me ajoelhei frente a uma imagem de Nossa Senhora com um terço na mão com os olhos lacrimejando olhando vagamente ao chão, pedi a Deus por sua divina proteção. A mulher estava ao meu lado com o filho mais novo, o mais velho ficou olhando pela janela narrando o que lá fora sucedia.

Naquela noite não chovia, mas o vento com força as janelas batia, levando seu sopro frio para dentro da casa. O candeeiro tremulava sua luz fraca. Os cachorros ladravam e os animais da fazendo faziam seus sons. E lá fora frente ao Caipora estava o valente Pedro com seu revolver recarregado e um espingarda ao seu lado, na sua bota jazia um grande facão amolado único presente de seu pai. E o Caipora tomando seu arco em mãos deu disparos de alerta raspando no rosto do bravo homem que não se abalava. Vendo que ele não o temia o Caipora não mais a mata mexia. Pedro vendo isso bramiu um grito, chamou o ser de frouxo e de despreparado, que não honra a si mesmo e que por isso se amedrontou e que teimava em fugir.

Alguns coaxos depois o Caipora vendo que Pedro se virou de costas tirou seu facão e partiu para cima do bravo homenzarrão que sentindo o frio batendo nas costas abaixou e pegou o seu facão que passou raspando no peito onde mora o coração do Filho da Mata, ele vendo Pedro ser homem de força e de admiração, tentou uma trégua, para não falar em rendição, mas o peão valente recusou brandindo o facão na mão dizendo que queria a cabeça do Caipora para vingar a morte do pai, homem valente e de honra. Perguntou quem era o pai dele e ao dizer que era o Coronel, brevemente estremeceu e lembrou a luta que teve com aquele homem único e falou que seria uma honra lutar contra o filho do Coronel que tinha pompa de Capitão.

O caipora começando a pular, ergueu seu punhal de couro, madeira e osso, fitando Pedro nos olhos, aqueles profundos e negros poços, que o encaravam com raiva e indiferença. Saltou para cima de Pedro que jogou-se para o lado desviando do ataque de seu ofensor. De dentro da casa se ouviam os cochichos das rezas e do filho falando sobre o que ocorria. O caipora vez ou outra ria com escárnio. Pedro ficava sério com seu facão dançando em sua mão, e sem prévio aviso o Caipora outra vez o atacou, desta vez chispando facão com facão. O coração de ambos cada vez mais batia rápido, como dois bumbos compassados. O vento frio arrepiava o coro de Pedro e o Caipora ficava ora sério, ora rindo, pulando e chutando e socando e baforando seu cachimbo, e Pedro esquivava cada golpe com maestria, e cada vez que uma brecha surgia um ataque desferia, muitas vezes o Caipora o repelia.

A luz dos candeeiros ficava cada vez mais fraca, e o Caipora que no escuro tudo vê, ficava brincando com Pedro, esperando escurecer. Depois de uns minutos lutando a fio os candeeiros não mais iluminavam. A noite surgiu imperando, trazendo em seus braços algumas negras nuvens com uma garoa fina e fria, em cada mão jazia um relâmpago. O primeiro estrondou iluminando a tudo, mostrando a Pedro o ataque que de seu lado vinha dando-o a chance de escapar. Quando chegou em cima do pé de algaroba a mão da nuvem largou seu raio incendiando a frondosa árvore que ardia em chamas, fazendo com que com mortal combate voltasse a se igualar. Juntamente com a luz da árvore em chamas se unia as faíscas das duas lâminas mostrando dois rostos cansados e corpos levemente cortados, como se tivessem roçado em espinhos.

Depois de dois dias e duas noites de muita luta, de seus corpos estarem fatigados e de meus joelhos sangrarem e minhas pestanas pregarem de tanto eu rezar e da árvore ter virado somente pó, como minhas memórias mais antigas, o embate finalmente teve um fim. O Caipora deu facada certeira no bucho de Pedro que caiu no chão sangrando. Sem dar um grito de dor, o valente homem tombou. Do alto era respeitosamente visto pelo seu algoz que o fitava e dizia em alto e bom som com palavras que ainda hoje me lembro "aqui jaz um homem que valeu a pena matar, um homem de coragem e valentia, que não foge do combate como medrosa cutia (enquanto falava virou-se de costas para o homem que julgou ter matado) e que é sim como uma onça, que mesmo cara a cara com morte, dela não foge" enquanto dizia estas palavras Pedro vagarosamente levantava e arrancou de seu buxo que sangrava a faca de seu algoz, que ao olhar para trás só deu tempo para ver a lâmina cega que em seu pescoço era enterrada, como reluzente bala que se adentra no quente seio da terra.

Antes de tombar novamente Pedro olhou para o céu onde julgou ver o rosto de seu pai desenhando na brancura das nuvens. Pela terceira vez na vida ele chorou. Ajoelhou-se e antes de seus olhos se fecharem para sempre viu o Caipora se arrastando para dentro da mata com o pescoço banhado em vivo vermelho, sendo como nódoa em sua pele nua e escura, assim como carregada nuvem manchando a noite com seu negrume.

Podem até julgar ser mentira o que eu digo, mas depois desse dia nunca mais se ouviu falar em outras mortes de mando do Caipora. Muitos o maldizem por seus feitos no passado, mas continuam vivos, exceto o compadre Peixoto que amanheceu morto sendo lambido por seu cachorro.