A Caixinha
Caminhava de modo trôpego pela rua mal iluminada. As crianças do bairro se divertiam acertando as lâmpadas dos postes com tiros certeiros de estilingue ou lançando pedras à mão. Estava um pouco frio. O chão estava marcado por um rastro ainda fresco de chorume. O caminhão da empresa que recolhia o lixo estava na rua de cima, ou na de baixo, pois Davi, mesmo bêbado, conseguia ouvir o veículo.
Seus passos inconstantes faziam-no vaguear em ziguezague rua abaixo. Cheirava a cachaça, um cheiro característico, mais forte que o da cerveja. Não se lembrava do quanto bebeu. Isso não importava. Estava suficientemente embriagado para uma sexta-feira normal. Era uma tradição particular tomar esses porres toda semana.
Adiante, uma rua cortava aquele quarteirão ao meio. Havia um cruzamento. Ele parou. Olhou para todos os lados. O mundo girava. Continuou caminhando em frente. A esquina da direita era dominada por uma casa em construção. Havia um grande container amarelo para entulhos ao longo da calçada. Sempre ficavam alguns escombros soltos em volta. Era com eles que a criançada depredava os postes.
Na penumbra, bateu o pé direito com força em um pedaço consideravelmente grande de concreto. Desequilibrou-se ainda mais e caiu de quatro no chão. Sentiu os joelhos e as mãos ardendo. O pé começava a doer.
- Caralho. – Resmungou, levantando-se lentamente.
- Que boca suja, menino.
A observação veio acompanhada de uma risadinha irônica. A voz fina e suave havia partido da esquina da esquerda. O lote vazio era tomado pelo mato. Os moradores do quarteirão usavam-no como terreno baldio, despejando ali todo tipo de coisa imunda e velha.
Olhou na direção do lote. Uma garotinha de uns sete anos estava ali, deitada de modo aparentemente confortável sobre um sofá antigo cujo estofamento saía pelos inúmeros rasgos que apresentava. Usava um vestidinho azul-turquesa até os joelhos decorado com rendinhas nas mangas curtas, no colarinho redondo e na barra da saia. Uma infinidade de pequenos anéis feitos de metal, de madeira, de osso, com e sem pedrinhas, ornava seus dedinhos magros. Pesados brincos de pingente pendiam de suas orelhinhas, e ao redor do pescoço acumulavam-se dezenas de colares, que, como os anéis, eram feitos dos mais diversos materiais. O cabelo era imenso, abundante e tão louro que chegou a ferir os olhos de Davi com sua luminosidade intensa.
- Vai te catar, guria. Não te perguntei nada.
Ela deu outra risadinha e se sentou, fazendo os colares chacoalharem sonoramente. O sofá estava acomodado em uma pequena pilha de escombros da construção da outra esquina – muita coisa havia sido tirada de lá desde o começo da obra, pelo visto. Balançou as perninhas finas. Estava descalça. Tinha um nariz pequeno e afilado, um pouco arrebitado, e o lábio superior ligeiramente repuxado para cima, o que dava a ela uma aparência felina.
- Mas eu tenho a liberdade de falar com você, não tenho?
- Vai pro inferno!
- Para quê? Lá não é tão ruim assim. Nem é tão interessante, também. Prefiro ficar aqui e falar com você.
Ela sorriu. A menina tinha olhos grandes, bastante expressivos, suavemente amendoados e repuxados para cima nos cantos externos. Os cílios eram grandes e densos, tão louros quanto seus cabelos. Aliás, cachos dourados caíam como cascatas dos lados de seu rostinho de boneca; o resto parecia estar preso em muitas pequenas tranças unidas em um rabo-de-cavalo.
A impertinência da garota fez o sangue de Davi ferver. Abaixou-se e pegou uma lasca grande de concreto no chão, atirando-a na direção dela. Errou por pouco. A menina sequer se mexeu.
- Ah, por que está tão nervosinho, Davi?
Estava com outro pedaço de entulho na mão quando escutou ela falando seu nome. Os dedos afrouxaram a pressão, e o concreto caiu no asfalto com estrépito, soltando algumas lasquinhas.
- C-como você sabe o meu nome?
Ela soltou outra risadinha. Dessa vez, aquele risinho soou mais calmo. Um frio incontrolável percorreu a espinha do homem embriagado, eriçando os pêlos de seus braços e sua nuca. Ela ergueu a mãozinha direita, pôs o dedo indicador em riste e balançou-o levemente de um lado para o outro.
- Tsc, tsc, tsc. Querendo estragar tudo só para saber meus segredinhos? Não vou deixar.
Ela desceu do sofá. Começou lentamente a andar na direção de Davi. Algo refulgiu em sua cabeça, pouco acima de sua testa. Enquanto ela se aproximava, ele conseguiu ver o que era: uma tiara dourada, fina, toda decorada com pedrinhas incolores e brilhantes.
- Não quer se sentar, Davi?
De súbito, sentiu as pernas fraquejarem. Tentou manter-se de pé, mas foi inútil. Caiu pesadamente no chão, sentado. Sentia alguma coisa muito ruim vindo dela. A adrenalina corria freneticamente por suas veias. Não estava mais tonto. O efeito do álcool havia diminuído consideravelmente. Estava com a atenção totalmente presa à garotinha estranha.
A alguns passos dele, ela parou. Sorriu como se tivesse se lembrado de algo e deu uma batidinha na testa com a mão direita espalmada.
- Ah, nossa, que falta de educação a minha! Sou muito esquecida.
Ela segurou a saia do vestidinho, puxou-a para os lados e se curvou levemente, dobrando os joelhos. Meneou com suavidade a cabeça, como se o reverenciasse. Os colares em seu pescocinho penderam para frente, chacoalhando uma vez mais.
- Me chamo Aillini! É um prazer que me conheça, Davi.
O homem arrastou-se para junto do container de entulho, os olhos ainda fixos na garotinha. Sua pele era tão branca que Davi podia ver os sombreados das veias dela nas mãos, nos pés, nas têmporas e no pescoço. As unhas eram pintadas de um sólido azul-escuro e um pouco compridas demais, ainda que tivessem formas perfeitas.
Ela se endireitou e chegou mais perto do bêbado. Seus olhos eram verdes, e as pupilas, rodeadas por um visível halo dourado. Havia manchas douradas nas íris. Ela tinha um olhar feérico, hipnótico.
- O q-que você q-quer comig-go?
Ela sorriu, chegando ainda mais perto dele. Os olhos de Davi eram castanhos bem escuros, e estavam um pouco injetados. Ela sorriu um pouco mais. Levou as duas mãozinhas ao rosto dele, acariciando a barba rala e desgrenhada que se acumulava em seu rosto cansado.
- Eu quero aquela caixinha que você achou há alguns dias.
Ele engoliu em seco. Havia encontrado uma caixinha de madeira com pedrinhas engastadas e entalhes suaves. Era um trabalho de arte muito bem feito, e tinha um aspecto bem antigo. Levou-a a um antiquário que ficava perto de seu trabalho. O dono do estabelecimento ofereceu duzentos reais pela peça. Davi vendeu a caixinha e torrou o dinheiro na farra do último fim de semana.
Diante do aspecto paulatinamente apavorado do homem, o sorriso da garotinha começou a arrefecer. O olhar de Davi desviou-se para o chão. Ela segurou com firmeza a cabeça dele entre as mãos e forçou-o a olhar para si.
- Você ainda está com ela, não está?
Hesitante, ele balançou a cabeça em negativo. Sentiu um frio abissal aflorando em seu ventre.
- V-vendi.
Ela suspirou, aliviando a pressão no rosto dele. Olhou-o, um pouco tristonha.
- Ah, Davi. Que pena. Eu estava começando a pensar que íamos nos dar bem, sabe?
Ela segurou com força a cabeça de Davi. O homem sentiu o rosto queimando com violência. Berrou a plenos pulmões, mas voz alguma saiu de sua garganta. Escutava o som de sua pele tostando e sentia o cheiro de carne queimada.
A garotinha cravou as unhas no rosto do homem. Era tão fortes quanto garras. Trouxe o rosto dele para perto do dela, e encarou-o com profundidade. Começou a balbuciar uma oração silenciosa, cheia de fé nascida do desespero. A menina sorriu. Seus dentes, antes perfeitos, bem alinhados, haviam se transformado, todos eles, em pequenas navalhas pontiagudas de brilho frio. As manchas douradas nos olhos dela começaram a se mover pelo verdume das íris, traçando caminhos aleatórios como se fossem dotados de vida própria.
Tudo terminou em segundos. O corpo do homem havia sido reduzido a um cadáver carbonizado perfeitamente embalado nos trapos que vestia. A urina que havia escorrido de seu corpo acumulava-se em uma pequena poça entre suas pernas abertas. Os olhos estavam vazios, e a boca, escancarada. A garotinha enfiou a mão pela cavidade negra da qual brotavam os dentes tortos do morto e de lá retirou um anel pequenino. Colocou-o no dedo mindinho da mão esquerda.
Virou-se de costas para o cadáver. Ajeitou os cabelos louros que ladeavam seu rosto, revelando suas orelhas pontudas. O cheiro de carne queimada estava sendo carregado para longe por uma oportuna brisa noturna. Olhou para a lua crescente que, solitária, dominava os céus.
Lentamente, um par de asas delicadas brotou de suas costas. Tomou impulso do chão e alçou vôo. Segundos depois, com a ajuda daqueles auspiciosos ventos que sopravam com suavidade, a fadinha, agora uma pequena borboleta multicolorida, começou a singrar os ares, sem rumo, perdendo-se na noite.