LIVRO FALA
Naquele dia o vento não parava de soprar cada vez mais forte levantando poeira e trazendo e levando folhas secas, arrancadas do matagal em torno. Um ninho velho e abandonado despregou-se lá de cima e foi também levado pelo vento, até desaparecer no meio dos espinheiros. Depois do meio dia, nas horas mais quentes, vieram uns homens com serras movidas a óleo. Falavam muito e aos poucos foram cada um subindo nas arvores, retirando os galhos e usando ganchos para chegarem ao topo. As arvores assim desnudadas, parecia paliteiro sem tampa com suas pontas delgadas apontando para o infinito azul... Aos poucos os troncos cortados foram caindo e sendo fatiados em pedaços menores, espalhados por todo chão. Passaram-se dias até que veio uma máquina grande que apanhou os troncos, colocou num caminhão e fomos levados para o rio que passava lá em baixo. Fomos despejados n’água. Boiando, descemos o rio até que chegamos a uma barragem aonde outros homens com ganchos na ponta de varas longas iam fazendo a manobra até sermos apanhados por esteira cheia de dentes que nos encaminhavam para uma máquina trituradora. Daí fomos para a caldeira fervente com ácido que nos transformou em pasta e a pasta foi passando por espaços cada vez mais estreitos até ficarmos em forma de folhas delgadas, enroladas em bobinas enormes, que eram levadas para um galpão escuro e empoeirado. Dias depois, sai dali para uma oficina cheia de maquinas. Fui colocado numa delas e a principio lentamente depois numa velocidade alucinante, fui recebendo impressão de muitas coisas escritas, dobrado, cortado, empilhado, grampeado, blocado e encadernado. Hoje moro nesta biblioteca onde sou muito visitado. Às vezes mãos sujas, às vezes limpas passam sobre mim. Tem um rapaz magro de cabelo em desalinho que toda vez que me pega, risca as páginas sob as linhas impressas, faz anotações... Eu não entendo porque ele faz isso. E se outras pessoas não se interessarem pelo que ele ressaltou? Como é que eu fico? Tem gente que olha e passa... Tem gente que me pega para logo depois deixar sobre a mesa, sem nem abrir a primeira página... Outros não, passam horas lendo as minhas paginas impressas, reparam os detalhes dos desenhos... Eu tenho uns desenhos coloridos no final. É fácil de achar, tem o nome anexo I... Eu gosto mesmo é quando me deixam naquela mesa grande dali do meio, antes que o empregado da biblioteca venha pegar para devolver para as prateleiras, podemos trocar idéias com outros livros. É muito divertido. Tem um livro bem grosso que é muito solicitado. Ele vez por outra sai da biblioteca e passam-se dias até que o devolvam. Ele contou que geralmente os jovens passam as noites acordados foleando para frente e para trás. Chamam-no livro texto. A vida dele é muito emocionante. Já ajudou muita gente. Outro dia ele foi levado para a oficina, trocaram a capa, limparam as folhas sujas, repregaram as que estavam soltas. Ele voltou quase novo. Mas eu gosto mesmo é de passear naquele carrinho que está junto à mesa. O rapaz nos pega e vai recolocando cada um no seu lugar. Eu acho que é por causa do selo que a moça que fica logo na entrada, aquela loura, calada e de cara fechada, como se estivesse sempre com raiva do mundo, colou na capa. Ele tem umas letras e números, eu não tenho idéia do que seja aquilo, mas toda vez volto para a mesma posição na mesma prateleira. Eu gostaria de ficar numa prateleira de onde pudesse ver a luz do sol...
- Oh! Rapaz vá dormir em casa. A biblioteca já fechou...