O DELFIM E O OUTRO BARBEIRO
O DELFIM E O OUTRO BARBEIRO
Embora em início de vida conjugal, certo casal, ainda jovem e muito bem casadinho em razão de amor prometido, ele, operário da construção, quando havia trabalho, ou na falta, como trabalhador sazonal, e ela, em trabalhos assalariados domésticos e de campo, apesar de se parecerem pessoas simples, revelavam maturidade acrescida, comparativamente com os pares da época. O facto de afilharem “muito” não era indicador de ignorância, descuido, mas de opção concertada dos dois e que supostamente poderia explicar-se pela educação religiosa recebida de pais de ambos e complementada em acções que frequentaram. A vida íntima do casal havia recebido formação pré-nupcial nos centros de apoio e preparação para o matrimónio patrocinado pela diocese e posta em prática pela pequena paróquia onde viviam. Esta sensibilização era ministrada por casais que traziam aos mais novos as suas experiências de vida e lhes relatavam as vantagens das mesmas. Como enfoque principal e central dessas acções o tema do aborto tinha abordagem especial bem como os métodos ajustados ao planeamento familiar de inspiração religiosa católica.
Posto que já bem formados, decidiriam dar início à multiplicação da espécie. Toda a programação natalina não iria ser resultado de acasos tão normais da vida conjugal em casais do seu tempo, mas em obediência a critérios absorvidos avidamente nas ditas formações para o matrimónio e conscientemente postos em prática. Assim, nasceria a firme intenção de se fazerem pais muitas vezes e muitas vezes isso aconteceria.
A primeira maternidade traria à luz do dia uma menina. Uma saudável e desejada criança, como era expectável. Mais quatro nascimentos haveriam de ocorrer, de modo que os cinco filhos foram encarados como número ideal.
Lembra-se que há época, na terra, grassava extrema pobreza reflexo da crise subsequente à guerra civil Espanhola com repercussões na economia de Portugal e também por consequência da última Guerra Mundial e que originou falta de trabalho e longos racionamentos de alimentos. Mesmo assim, os nascimentos ocorreriam em bom ritmo, tal como os funerais de recém nascidos, que há época trazia para baixo o índice de longevidade. Nem todos os casais, direi mesmo a maioria, frequentaram as acções patrocinadas pelo Centro de Preparação para o Matrimónio, de modo que o casal Alberto e Beatriz levavam vantagem para os outros, os quais não se cansavam de exaltar o que lá aprenderam sempre que tinham ocasião para o fazerem. E oportunidades não escasseavam. Os nascimentos enchiam as casas e se por um lado lhes levava pobreza, por outro também a enchiam de vida. Não raro, os casais mais pobres eram os mais prolíficos. Associada à miséria entre paredes uma nova gravidez trazia consigo uma dificuldade ou mais que uma: encontrar padrinhos era uma das com que se deparavam.
Na terra e ao tempo, havia vários profissionais artesãos, desde alfaiates, a cesteiros, ferreiros, sapateiros e outros, sendo que entre estes havia dois barbeiros. O Delfim, casado e pai de vários filhos e o Benjamim, um solteirão e pouco achacado a mulheres, não porque se lhe conheça qualquer episódio homossexual, mas por opção resultante de se deixar ficar por casa em apoio à mãe, viúva de muitos anos e de muita idade. Entre eles havia de se cavar grande rivalidade profissional com o objectivo de captar simpatias e clientes. Delfim, conhecedor da antipatia pelo feminino, do rival Benjamim, resolveu cativar e captar clientes tomando como ponto de partida os inúmeros nascimentos ocorridos e a dificuldade que as famílias tinham para encontrar padrinhos disponíveis. Enquanto isso, Alberto e Beatriz sensibilizavam os outros casais em conversas informais para a necessidade de estabelecerem limites aceitáveis aos nascimentos. Não raro, o número de filhos ia acima de dez e em alguns casos chegava aos quinze. Incidia particularmente nestes casais, a tarefa de sensibilização que eles faziam à revelia do que o pároco e a filosofia da igreja preconizava e ainda da estratégia delineada por Delfim para fidelizar clientes.
Tomando como verdade, que a ausência de recursos próprios depaupera a socialização, os vários casais pobres e não eram poucos, encontrariam por via disso muitas indisponibilidades para apadrinharem os filhos. Sabedor dessas dificuldades, Delfim e mulher tornar-se-iam padrinhos oficiosos dos filhos dos malquistos, dos indigentes, das mães solteiras ou das classes de baixos rendimentos, de tal modo que não raro todos os meses e várias vezes, eram solicitados para apadrinhar esse sacramento. A solicitação para apadrinhar cada vez mais se fazia sentir à medida que a pobreza grassava, tudo levando a crer que existiria forte relação entre pobreza e natalidade. Perante tal avalanche de baptizados, Delfim haveria de elaborar um código de conduta o qual sujeitaria os interessados, que nesta altura já iam além da fronteira da freguesia e se passava às limítrofes. Para isso, pediria a um jovem estudante que lhe redigisse um texto que usaria como edital, afixando-o no interior da barbearia e que rezava o seguinte:
EDITAL
Para que conste e em face de continuados convites para apadrinhar as proles emergentes, resultantes de acalorados encontros noctívagos de casais ou amantes sequiosos de deleite carnal e do qual resultam inequívocos resultados na continuidade da espécie, os signatários declaram absoluta disponibilidade para acudir a todas as dificuldades de recrutamento de padrinhos, desde que se cumpram os requisitos abaixo:
1 - Os filhos varões receberão para a posteridade o nome do padrinho, ou seja, Delfim, sendo que sem este requisito cumprido se inviabilizará a disponibilidade acima referida.
2 - As meninas receberão para a posteridade o nome da madrinha, ou seja, Rosa, sendo que sem este requisito cumprido se inviabilizará a disponibilidade acima referida.
3 - Os signatários abaixo assinados também declaram não se responsabilizarem pela educação, segurança e alimentação dos afilhados.
Delfim Maria Travassos
Rosa Maria Almeida
Foi desta forma algo rebuscada que Delfim e mulher se proclamavam e aceitavam ser padrinhos por uma questão solidária e também por estratégia profissional.
Por ambos não saberem ler, os signatários assinariam por aposição de testemunho de impressão digital.
Sabedor de que a sua subsistência também dependeria e muito, dos nascimentos, Delfim não se cansava de exaltar a virtude da natalidade e Rosa, a sua mulher, que todos os dias ia à barbearia fazer a recolha do cabelo cortado, varrer o chão térreo e recolher tolhas e toalhetes para lavar, também o ajudava no positivismo e virtude dos nascimentos. Eles, quase sem excepção eram os primeiros conhecedores das gravidezes em gestação. O padre Manuel ou Manel, como dizia o povo de modo simples e familiar, também ele cliente quinzenal para cabelo, já que quase sempre desfazia a barba em casa, era uma extensão do conhecimento das gravidezes em curso. As idas ao barbeiro do padre, além da necessidade de acertar quinzenalmente a coroa que exibia no cocuruto, já que o corte de cabelo só o fazia a cada dois meses, também era uma oportunidade para passar o tempo, conversar sobre as banalidades do dia-a-dia, tais como o ano agrícola, a qualidade do vinho, a caça ou pesca, que quando em vez fazia com os íntimos, que por acaso eram os “senhores” da terra e ainda sobrava tempo para informar-se das “realidades” mundanas.
- Veja se Pade Manel, o que por aí dizem…!!! Então não consta que o Teodoro anda metido com a Russa…!!! Olhe que ele podia muito bem ser pai dela…O mundo está perdido… Um velho, quase com os pés para a cova…
- Não dês ouvidos a tudo, mulher. Não sabes que parte do que se fala quase sempre é mentira…Além do mais, Teodoro é um homem doente e muito de igreja…Por esse, ponho eu as mãos no lume. Pela moça, não direi o mesmo… nunca a vejo pela igreja… embora ele pague os direitos eclesiásticos. Isso por si só, já é uma virtude.
- Sim, sim…doente!!! A doença dele todos a sabem… O se pade não faz ideia como o mundo anda apodricado... E olhe, que se lhe fosse a contar tudo o que sei…
- Ora ora, Rosa…nada que tu saibas, eu não saiba. Mas também não exageres, nem tudo o que reluz é ouro….
- Olhe que o Se Pade Manel não sabe tudo…aqui eu e o meu FIM, era assim que na intimidade tratava o marido, sabemos pela certa quais são as mulheres que estão em cuidados e até nos parece que desde que pusemos o edital o povo não se cansa de …percebeu?
Muito embora esta parte final do diálogo lhe interessasse, Padre Manuel não alimentaria a conversa e a vontade de Rosa em noticiar-lhe o que lhe pareciam ser notícias em primeira-mão. Sabia muito bem travar os impulso de Rosa mas não enjeitava saber quais as mulheres que andavam grávidas, por uma questão de “contabilidade”. Tal como o barbeiro, também parecia haver interesse comum nos nascimentos, o primeiro para fidelizar clientes, e o padre para ver materializado um dos objectivos do sacramento do casamento.
Sem se saber ao certo se os casamentos dispararam porque há a certeza de haver padrinho para os filhos, a verdade é que a barbearia de Benjamim manifestava acentuada queda no número de clientes e acentuada revolta do mesmo.
Benjamim era um homem solitário, avesso a tudo o que cheirasse a igreja, particularmente a confissão. Em relação a este acto religioso fazia chacota e até lembrava alguns episódios que lhe chegavam aos ouvidos e dizia mais: mulher que eu tivesse não se confessava a padre nenhum e muito menos ao padre Sebastião. Bem, do padre Manuel não se ouvem coisas, mas ele também não deve ser nenhum santo, pelo menos que o diga Teodoro cantoneiro que além de bêbado era um noctívago que não tinha horas para se deitar e que sabia de muitas coisas que escapavam ao comum dos mortais. Consta, pela boca dele que o padre Manuel tinha caso… mas nunca se provou. Teodoro, por ser um pobre diabo e alcoólico não era tido como fiável para bem do padre Manuel. Mas quanto ao padre Sebastião, não há dúvidas. Ele era um atrevido nas confissões, chegando a perguntar às mulheres quantas vezes faziam sexo e pior ainda, se elas eram pentelhudas. Bem sei, que não se pode julgar a acção de um padre, pelo todo, senão, eu diria que o mundo estaria perdido mesmo.
Seja como for, a queda drástica de clientes trazia Benjamim preocupado quanto ao futuro profissional. Ele, em criança frequentaria a instrução básica com aproveitamento e até se dizia que era dos melhores e que fazia a inveja de muitos pais ricos por não terem filhos tão inteligentes, mas a ausência de ambição e o sentido filial inibiu-o de abandonar a casa paterna, antes ficando junto da mãe até à hora da morte, desta. Isaura, assim se chamava a velha mãe, continuava a tratá-lo com mimo como se ele não tivesse crescido e isso via-se no tratamento de nome, que se generalizou entre os cidadãos da terra. Benjamim, a quem todos tratavam por MIM nunca mais voltaria a ser o mesmo desde a afixação do edital. A sua revolta tirava-lhe o sono e uma sede de vingança germinava na sua cabeça, só ainda não sabia como a pôr em prática.
Entretanto, chegara-lhe aos ouvidos testemunho do conteúdo do edital afixado na barbearia do “inimigo” Delfim e colocado junto ao espelho, ao pequeno e já estalado espelho cuja moldura plástica o ajudava a manter-se ligado e que tantas vezes era observação de clientes para o substituir por o mesmo dar imagens distorcidas pela quebradura e que desfigurava quem nele se observasse, por retirar conexão entre as partes projectadas.
As respostas engendradas por Benjamim para vingança quase sempre tinham cariz maldoso, as quais não passaram, nunca passariam de fantasia. A sua consciência, a sua recta consciência travavam-lhe a materialização dos pensados actos, tais como matar-lhe as galinhas ou pombas, com mistura de farinha grossa com sal e para as quais se perguntava porque é que os pobres animais tinham que ser as vítimas da sua animosidade? Já de consciência mais reflectida e confrontado com a realidade acabava por não ver mal algum na estratégia que Delfim pensara para cativar clientela. Afinal, ele tem uma grande família para alimentar…e eu apenas só tenho de pensar em mim, dizia para si e acrescentava, a concorrência faz parte da vida profissional e eu terei de saber confrontar-me com ela e de procurar estratégias para recuperar a clientela entretanto perdida ou ainda, trazer novos clientes. Este pensamento positivo levá-lo-ia a reflectir sobre o modo correcto, sensato e ético de afrontar a concorrência. Percebeu que não poderia enveredar pelo mesmo caminho porque esse já estava definitivamente conquistado por Delfim mas outros estariam por explorar e que poderiam reequilibrar a clientela ou vê-la regressar. Foi a pensar na reconquista dos clientes que pensou em comprar uma máquina de fazer café para presentear os clientes. Se melhor pensou melhor o fez e com esse propósito dirigiu-se ao Jaime Electrodomésticos para adquirir a dita. Posto que já comprada, uma coisa teria de vencer e que era a sua vergonha de pôr em prática a campanha e outra, a língua da mulher de Delfim, muito treinada em maledicência. Esta, era sem dúvida a maior barreira psicológica com que alguma vez se haveria de confrontar e que teria de superar para materializar o desejo de praticar concorrência leal. Como homem envergonhado que era não publicitou a presença da máquina e o seu real fim, na barbearia, antes disfarçando-se como estando ali para tomar um cafezito de vez em quando.
- Com que então uma maquininha de fazer café, Benjamim!!!
- É…comprei-a para tomar um cafezinho de vez em quando…e já agora, também se algum cliente desejar…Que acha Sr. Vilela?
- Boa ideia… Ah, não sei se sabes que o Delfim se ofereceu por edital para ser padrinho de bebés. A esta, achei muita graça. Pelo que vejo há falta de padrinhos, mas para fazer meninos parece que não…só tu nunca fizeste nenhum…
- Também soube disso e pelos vistos a mulher não se cansa de fazer campanha…
- Olha, uma coisa te aviso: A Rosa tem uma língua…que quando souber desta modernice que tens agora na barbearia…
Perante a observação do Sr. Vilela, Benjamim ficaria como que suspenso e pensativo no ridículo em que a mulher do Delfim o virá, supostamente, a pôr. Entretanto a barba já estava quase no fim bem como o “aperto” em que o barbeiro se achava. A descompressão viria a seguir.
- Então, poderei fazer-te companhia e tomar contigo um cafezito?
- Mas claro que sim. Ah, digo-lhe mais…só a liguei à meia hora e ainda está por estrear. O Sr. Vilela vai ser o primeiro…
- Melhor ainda. Mais gosto tenho em tomar o café e se for bom, não me cansarei de te elogiar a ideia e de a tornar pública. Verás que até irás ter mais clientes, doravante…
- Esse não foi o meu propósito, mas tão-só …enfim, tomar um cafezito de vez em quando…
- Não tenhas complexos com a ideia que, diga-se, é louvável e pioneira. Não conheço nenhuma barbearia a dar café aos clientes!!! Além da simpatia do gesto ainda te pode render clientes…
- Então, quer dizer que o Sr. Vilela aprova a ideia?
- Aprovo claramente e digo mais: brilhante ideia. Ah, se me é permitido acrescentar mais uma ideia, acho que deverias ter um Jornal diário e de cobertura nacional.
- Já pensei nisso...já tenho o semanário regionalista Fala-Barato, mas também lhe digo; está tão fraquinho que os leitores mal lhe pegam na leitura.
- Vai por mim…
Terminada a conversa e até ao atendimento de novo cliente, Benjamim ficaria a pensar nas palavras do Sr. Vilela, as quais lhe dariam incentivo para as levar por diante bem como outras mais lhe ocorreriam em turbilhão, contudo, prefere que se consolidem estas, para passar à fase seguinte. Sem dúvida que me sinto feliz com a ideia que em boa hora tive, dizia para si e que suponho, me irá trazer de volta novos clientes. Na verdade, nem sempre fui capaz de pensar correctamente por um flash de inveja que me tentava assaltar e para as quais as galinhas e pombas não tinham culpa. A certeza de ter usado ponderadamente da razão permitiu-me estar agora de consciência tranquila e os juízos que fiz da Rosa do Delfim acerca da conduta que ela viria a ter para comigo também não se verificariam. Mais uma vez percebi quão fácil é fazer juízos errados sobre as outras pessoas e que na prática se revelam injustos.
A pequena localidade teria doravante muitos Delfins e Rosas e dois barbeiros felizes por terem sabido buscar na imaginação a solução para a perda de clientes.